revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

Minhas memórias de Antonio Candido e Gilda: anedotas, encontros e alguns desencontros

 


Escrever sobre um grande homem, por ocasião da sua morte, contando as conversas e os contatos que tivemos com ele, é um exercício perigoso. O narcisismo espreita. O narrador fala mais de si mesmo – em geral, bem – do que do homenageado. Não vou escapar à regra, porque a derrapagem narcisista parece fazer parte do gênero. Mais do que isso: vou abusar do gênero. O que vem ai é uma miniautobiografia, recortada pela narrativa de encontros com Candido e Gilda. De qualquer modo, não vou me furtar ao exercício. O leitor fará o devido desconto. De resto, os testemunhos serão muitos, e o Antônio Candido “de verdade” – para utilizar uma expressão que ele explicitamente apreciava, em substituição ao pedante “histórico” – há de surgir da multiplicidade dos perfis egocentrados.
Eu devia estar começando o segundo ciclo do ensino médio – acho que nesse momento eu e meu irmão mais velho já tínhamos passado do entusiasmo pelo democratismo udenista para a simpatia pelo socialismo democrático – quando meu irmão me falou de um certo candidato do recém fundado Partido Socialista Brasileiro, que ele vira na livraria Pioneira, quando subira até a livraria (esta ficava num andar elevado, em um prédio do centro da cidade). É o Antônio Candido, disse ele, e acrescentou – o que me impressionou muito – é professor de ciências sociais na Faculdade de Filosofia. Professor de ciências sociais. Meu irmão deve ter votado nele nas eleições que ocorreram algum tempo depois. Eu ainda não tinha idade para votar.
Os anos se passaram, terminei o secundário, prestei exame para a Faculdade de Filosofia e para a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e entrei nas duas. Politicamente, já havíamos abandonado o socialismo, e andávamos de namoro com o marxismo.
Antonio Candido, que era professor em um dos departamentos de Sociologia, era encarregado de um curso semestral de introdução à sociologia, para os alunos – creio que do segundo ano – de filosofia. No segundo semestre entrava Gilda de Mello e Souza, que pertencia ao departamento de filosofia, e cujo curso se chamava meio pomposamente (mas o curso era despretensioso e muito interessante) “estética sociológica“.
Candido falava consultando um caderno. O curso era meio escolar mas inteligente. Candido falava de Comte, de Durkheim, de Montesquieu, de Turgot, de Saint-Simon, de Marx. Muita coisa vinha talvez dos seus mestres franceses. Há uns poucos anos, conversando com uma amiga francesa, autora de uma importante tese sobre Comte, e coeditora de Saint-Simon, falei de um personagem do entorno de Saint-Simon, uma figura bastante obscura, em todo caso pouco conhecida pelos não especialistas. A amiga estranhou: mas como, diabo, você ouviu falar desse sujeito? Era memória das aulas de Cândido.
Nas aulas, às vezes inseria alguma historieta sobre si mesmo. Não sei se para reconfortar os estudantes, gostava de dizer que fora mau aluno na Faculdade de Direito. Não me lembro se na sala de aula ou fora, uma vez, nos fez a narrativa de um exame oral, em que, sendo ele já um pouco conhecido como crítico literário, o velho professor da Faculdade de Direito (ou “lente”, como se dizia então), constatou as suas insuficiências em matéria de Direito (afinal, não sei se o candidato foi reprovado nesse exame, acho que não). Candido contava: “O mestre suspirou – e, sendo certamente leitor do folhetim literário de um grande jornal de São Paulo (a incisa é minha) ­–, observou: ‘Antonio Cândido, grande critico literário, jejuno em leis”.
Havia bem poucos rapazes na aula de sociologia. Naquele tempo, as moças eram amplamente majoritárias na faculdade. E aqui engreno um episódio narrado por Antonio Candido (aviso o leitor, de que vem aí narcisismo da minha parte). Na classe – dizia Cândido – havia só dois rapazes. Um deles, era atento, acompanhava visivelmente a minha exposição. E devia tirar proveito dela. O outro, pelo contrário, estava sempre longe, olhando o teto, ou contemplando o horizonte, através da janela. Um aluno um pouco estranho. No final do semestre – é sempre Candido quem fala – havia um exame, e quando me pus a corrigir as provas, vi que de fato só havia dois nomes masculinos. Pus-me a corrigir os trabalhos de toda a turma, da dezena de moças, e dos dois rapazes. Como não conhecesse o nome de ninguém, era difícil estabelecer alguma correspondência entre as figuras dos alunos, cujas fisionomias já me eram habituais, e o conjunto de trabalhos apresentados. Isso valia, em geral, tanto para as moças, como para os rapazes. Só que no último caso, eu tinha uma chance em duas, de fazer uma atribuição correta. Ora, acontecia que uma das provas era muito medíocre, mal escrita e com muitos lugares comuns. Já da outra, gostei muito. Pensei: a prova ruim há de ser do menino aturdido. O bom trabalho corresponde seguramente ao rapaz atento e interessado. Vou confirmar no dia em que devolver as provas aos alunos, não sem antes comentá-las. Pois não é, ó surpresa, que a prova medíocre correspondia ao aluno desperto e o bom trabalho era o exame do menino cujo olhar que vagava pelo teto da classe, senão pelos espaços infinitos. – Desculpe, leitor, o menino que sonhava na classe e apesar (ou por causa) dos sonhos escrevera um bom texto, era o autor dessas linhas.
Nessa época – como disse – meu irmão mais velho e eu já tínhamos abandonado o socialismo democrático. Por causa da leitura de certos livros (de qualquer modo, tínhamos escolhido essas leituras) havíamos nos tornado simpatizantes de Trotski. Quando um colega do meu irmão na Faculdade de Direito, depois de se declarar “trotskista“ (tratava-se, de fato, de um militante do embrião da Quarta Internacional, no Brasil), perguntou ao meu irmão qual a sua posição política, para surpresa do interlocutor, este respondeu que também era trotskista. Seguiu-se um convite para uma reunião numa sala do prédio Martinelli, e mais tarde, um segundo convite para uma outra reunião, no mesmo lugar. Só que para essa segunda reunião, com o consentimento do grupo, o convidado levou o seu irmão adolescente, que ainda não havia terminado o colégio. Resumo a história. Passados uns dois anos, e em circunstâncias que seria longo narrar aqui, de simpatizantes ativos, os dois irmãos acabaram sendo recrutados, como se dizia então, e se tornaram militantes do Partido Operário Revolucionário (!), seção brasileira da Quarta Internacional.
Antonio Candido não era trotskista, e, até onde sei, nunca o foi. Entretanto, tinha contato com militantes trotskistas, e talvez amigos trotskistas. A verdade é que o nome dele constava da lista de pessoas que contribuíam mensalmente para a nossa organização. O pagamento era em dinheiro, e quem se encarregava cada vez do achaque era o jovem militante que compartilhava o território frequentado por Candido, o prédio da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia. Assim, depois de me informar, talvez com ele mesmo, do horário das suas aulas, cada mês lá estava eu, esperando o final da aula, para receber uma contribuição das mãos de Antonio Candido.
Esses encontros eram frequentemente a ocasião para breves conversas entre o jovem professor e o muito jovem aluno da faculdade. Lembro-me de que, uma vez, caminhando no pátio interno da faculdade, falamos de literatura. Ele me disse que escrevera um texto, “Ficção e confissão”, sobre a obra de Graciliano Ramos, texto que o Graciliano pedira par incluir na edição da sua obra “completa”. Não sei se falei de literatura revolucionária ou algo sim, acho que me referi ao El Mundo es Ancho y Ajeno, de Ciro Alegria. Candido disse que tudo bem com a ficção participante, de resto “o senhor está fazendo a sua experiência política. Mas em literatura, a forma é tudo”. Uma outra vez, ele me deu um conselho: olha, quando você começar a publicar, não faça como certas pessoas que dizem – “você sabe, como escrevi naquele meu livro”, supondo que o interlocutor teria lido obrigatoriamente a sua obra completa. O outro em geral não leu; lê-se pouco o que os outros escrevem.
Numa dessas ocasiões, em que fui buscar a contribuição para o grupo trotskista, recebi dele 200 cruzeiros e, em seguida, fui para uma reunião da organização. A primeira coisa que fiz chegando à reunião foi anunciar que estivera com Candido, que este me dera 200 cruzeiros, pondo os tais 200 cruzeiros na mão do chefe. O chefe em questão era Guillermo Alemeyra, vulgo Manuel (mas só conhecíamos o nome de guerra). Era um rapaz de uns 26 anos, para mim, um velho, pois eu devia ter 19. Manuel era um personagem curioso. Relativamente culto, pelo menos para aquele meio político – sabia francês, lia Gide e provavelmente Baudelaire – mas principalmente tinha uma grande cultura política, à maneira dos radicais anti-stalinistas da época. Lembro-me de quando ele chegou da Argentina, e fez a sua primeira “charla”, falando da desestalinização e da hipocrisia que afetava a operação (“Kruschev foi o responsável pela desgraça de Kossior” etc etc.). Ele nos impressionava muito, e víamos a sua chegada um pouco como a chegada de Trotski ao ocidente. Pois Manuel pegou o dinheiro com ar encantado. Como se sabe, essas organizações viviam sempre no vermelho. Editavam pequenos jornais que custavam mais caro do que os seus recursos, depois pediam mais ajuda aos simpatizantes, gastavam o dobro, e assim por diante. Guardando o dinheiro, o danado do Manuel, em vez de agradecer à generosidade do Candido, embora reconhecendo que a contribuição chegava em muito boa hora, não deixou de lembrar o que havia de insólito naquele gesto, vindo de parte de um intelectual social-democrata. Fez, assim, uma afirmação meio “oximórica”, em todo caso muito divertida no seu efeito, reforçado pelo sotaque hispânico: “Bendita incoerência do Antônio Cándido, nos dêo duzêntos cruzeiiros”. Muitos anos depois, estando eu hospedado por uns dias na casa de Candido, em circunstâncias que esclarecerei mais adiante, evoquei o episódio, imitando a tirada do Manuel. Candido ouviu com muito interesse, parecia se demorar na anedota, mas não disse nada. Continuou a conversa, narrando histórias que o envolviam, não me lembro bem do conteúdo delas. Mas, a certa altura, ele contou um episódio em que se revelara “gauche” (desajeitado), e ingênuo, diante de gente não muito leal. Então, referindo-se em tom autocrítico à reação que tivera, fez este comentário final: “Deve ter sido por causa daquela bendita incoerência do Antonio Candido”.
Por essa época, o Estadão criara um Suplemento Literário, e embora jornalão (bom) de direita, confiou a direção deste ao grupo histórico de Clima. Décio de Almeida Prado se tornou diretor do Suplemento. Antonio Candido escrevia nele, e suponho que tivesse bastante peso na direção. Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio, escreviam também no Suplemento, além de Livio Xavier (que fazia a Revista das Revistas), Anatol Rosenfeld e outros.
Acho que foi o Antonio Candido que me convidou para escrever na sessão de resenhas. Ele próprio fazia algumas, e fez questão de me explicar que não subestimava essa seção do Suplemento. Aceitei o encargo, não me lembro se com muito entusiasmo, mas o resultado, com exceção do último episódio foi desastroso. Na época, eu, literalmente, não conseguia escrever. As frases saiam desconexas; mesmo se às vezes internamente bem compostas, o conjunto remetia a uma prosa insossa e infantil. Na realidade, não conseguia me concentrar o suficiente para a escrita, escrevia a frio, como quem exerce uma corveia. O pior é que o conteúdo também não prestava. No estilo dos nossos ideais da época, eu queria ser epistemólogo, o que era um projeto válido, dentro de certas condições. Só que eu me punha a escrever sobre livros de epistemologia da física, campo em que era duplamente incompetente. Assim, juntando mau conteúdo com péssima forma (ou vice-versa), produzia uns materiais mais ou menos ilegíveis, em todo caso muito insossos e inodoros. Eu criava um problema para Décio e Candido. Mas eles foram extremamente simpáticos: publicaram vários textos (o que – com exceção da última publicação, de que falarei logo mais – foi certamente um erro), não me fizeram críticas (o que também foi um erro), enfim, trataram de não pisar em plantas tenras (o que deve ter sido um acerto). Acho que logo no início do nosso contato, Candido me propôs uma resenha de um dos livros do meu professor Livio Teixeira, creio que foi do livro sobre Descartes. Eu escrevi uma crítica, como sempre mal escrita, e não muito menos incompetente do que as outras resenhas que fiz (não se tratava de física, mas, na época, embora aluno do departamento de filosofia, por várias razões eu era muito verde na matéria). O pior ­– ou talvez o melhor, não sei, enquanto atitude – é que por trás das minha considerações elogiosas, aparecia uma certa desconfiança (em grande parte ilusória) em torno do trabalho minucioso de análise dos textos clássicos que fazia Livio (ou talvez, menos mal, quanto ao peso excessivo que ele dava, no livro, a esse tipo trabalho). Creio que alertado pelo Décio, Candido veio falar comigo. Muito generosamente, disse que ele cometera uma gafe: me encarregara de fazer resenhas dos meus professores (de fato, ele havia proposto também uma resenha de um livro do Cruz Costa; não sei quem afinal se encarregou disso). Se bem me lembro, ele considerou a minha atitude como séria e corajosa, mas disse que era melhor não publicar o artigo, porque publicando-o, eu corria o risco de prejudicar a minha carreira. Só acertei (relativamente), numa última resenha, cujo objeto era um livro-panfleto do ensaísta Jean-François Revel, Pourquoi des philosophes?, que, na época, ainda era de esquerda. Nesse caso, havia pelo menos uma real afinidade entre o autor e o resenhista. De fato, eu andava num vezo antifilosófico, e o panfleto caia bem com as minhas preocupações. O resultado foi uma resenha, que eu não diria boa – aliás, ousei republica-la como memória, num livro de há uns dez anos atrás – mas que tinha, pelo menos, bastante vida no conteúdo e alguma na forma. Depois dessa publicação, como que tomando consciência do desastre anterior, resolvi não enviar mais textos para o Suplemento.
Minhas memórias de Antônio Candido continuam no momento em que, já licenciado – fora então contratado como professor pela recém-criada Faculdade de Filosofia de Rio Claro, hoje campus da Unesp, mas continuava mais ou menos ligado à faculdade – eu era candidato à bolsa de estudos de viagem à França, que o consulado francês oferecia à Universidade. Eu organizava o meu dossiê de candidatura, e, precisando de cartas de recomendação, pensei em procurar o Antonio Candido. Mas hesitei um pouco – será que ele me conhece o suficiente? – quando alguém do Departamento me aconselhou a vê-lo. Candido me recebeu com a maior cordialidade. Eu perguntei com certa ingenuidade se ele me conhecia suficientemente para escrever uma carta de recomendação. Ele disse que sim, com um grande sorriso, e foi provando que, de fato, conhecia bem, não só a mim, mas também os demais jovens candidatos a assistentes (e assistentes) do Departamento de Filosofia. Fui me dando conta de que ele e o Cruz Costa (de quem eu era candidato a assistente), tinham traçado as grandes linhas do nosso destino intelectual... Você há de fazer isso – adivinhava ele – e fará muito bem, o outro será professor de tal disciplina, que é aquilo de que ele gosta etc etc. Tudo com a maior boa vontade e generosidade, mas num registro muito utópico e superestimando visivelmente as nossas eventuais qualidades. De qualquer maneira, era comovente: os dois professores (a acrescentar, não esqueçamos, o Livio Teixeira) funcionavam na realidade como protótipos dos anti-mandarins. Se a regra geral nas universidades é dar alguma chance aos jovens, mas com parcimônia, tomando cuidado para que não façam sombra aos velhos, os três jogavam uma carta diferente: estendiam um tapete vermelho aos meninos, arranjavam-lhes quantas bolsas e facilidades estivessem ao seu alcance, e fosse o que Deus quisesse.
Tendo obtido a bolsa, parti para a Europa. A minha viagem fora mediada também pelo professor Gilles Gaston Granger, da Universidade de Rennes, professor que eu conhecera em São Paulo, e que, com o Cruz Costa, assegurava o marketing das nossas candidaturas a bolsistas do Consulado. O projeto normal dos bolsistas era o de um semestre em Rennes, mas infelizmente, com o frio úmido da Bretanha, e a péssima comida do restaurante universitário, cai doente, e não cheguei a completar o meu semestre “rennais“. Saindo do hospital, decidi antecipar a minha estada em Paris. Creio que foi nessa ocasião que Antonio Candido deu uma aula na Sorbonne, sobre literatura brasileira. Lembro-me de que falou com ternura dos nossos poetas românticos (“quem os lerá se nós não os lermos?, há que proteger essas plantinhas frágeis” etc ), e terminou fazendo um juízo geral sobre a literatura brasileira: “Não é uma grande literatura, mas uma literatura que tem grandes obras”.
De volta ao Brasil, tornei-me assistente (ou instrutor, como se chamava na época), de pleno direito, do departamento de Filosofia e não mais assistente-escravo sem ganhar nada. Nesse período, eu via frequentemente Gilda, que era nossa colega de Departamento, mas não me lembro de encontros com Antonio Candido. Era um período difícil para mim. Porém chegava sempre a mim o eco de observações muito favoráveis a meu respeito feitas pelo casal. Não sei o que eles realmente pensavam, mas pelo menos em suas manifestações exteriores, eu não ouvia eco de decepção pelos meus magros resultados. Os dois pareciam sempre confiantes no que eu poderia fazer, e não paravam de me estimular, ainda que indiretamente, com as suas observações generosas. Na realidade, eu, como outros, aliás, tínhamos sempre a impressão de que Candido e Gilda “torciam“ por nós.
Então veio o movimento de 68, ocasião em que já estava casado pela primeira vez. Envolvi-me bastante no movimento das paritárias na faculdade, de que Candido também participava. Lembro-me das reuniões em que estavam ele, o professor Simão Mathias (de quem Candido dizia, com razão, que era “um homem reto”) e outros professores e alunos. Candido levava muito a sério o trabalho das paritárias. Empenhava-se em elaborar e corrigir os projetos (inclusive a forma, bem entendido). Em certa ocasião, alguém escrevera num projeto de programa: “evento a realizar na tradicional Semana da Pátria”. Candido fez questão de tirar o “tradicional”, que era evidentemente de mau gosto. Quando houve a guerra da rua Maria Antônia, entre nós e os alunos do Mackenzie, um policial brecou o Antonio Candido na porta da faculdade. “O senhor quem é?”. “Sou professor”. “Professor de quê?” “Professor de letras.” Não sei se foram as “letras”, mas o policial o deixou passar e não o incomodou mais.
Durante a votação para eleger a comissão paritária da faculdade (portanto uma cena que se passa antes do que narrei acima), lembro-me que no meio daquela balbúrdia, ouvi alguém, atrás de mim, que dizia a um outro universitário (lá vem mais narcisismo): “Eu já tenho candidato. O meu candidato é o Ruy Fausto”. Virei a metade do rosto para ver de quem se tratava. Era o Paulo Emílio. Eu já o ouvira em conferências, mas nunca conversara, nem jamais conversei com ele. Dos outros membros do grupo, além da Gilda, nossa colega, fui aluno do Décio de Almeida Prado, quando ele deu algumas aulas sobre teatro (de resto, eu já o conhecia, via Suplemento Literário, como contei). Não tive contato maior com o Lourival Gomes Machado, que via passar pelos corredores da Faculdade. Ouvi o Ruy Coelho arguindo candidatos a doutorado, e acho que ele foi meu examinador, em algum exame. É tudo o que posso dizer em matéria de conhecimento pessoal do grupo.
Eu não estava ligado diretamente a nenhum grupo armado, nem a qualquer partido. Fora abandonando progressivamente a organização trotkista, e já estava fora dela, quando da minha volta da Europa. Mas, se eu não estava ligado, pelo menos diretamente, a minha primeira mulher estava. Ela acabou sendo presa distribuindo panfletos com um camarada. Isso alguns dias depois da proclamação do ato 5, a partir do qual se desencadearia a repressão. Por sorte, o delegado que a prendeu se deixou convencer (?) de sua inocência, e ela acabou sendo solta alguns dias mais tarde. Nós já estávamos morando fora de casa, mais precisamente no apartamento de Paulo Eduardo Arantes e Otília Beatriz Fiori, que, na ocasião, estavam na Europa. Quando a libertaram, a minha ex-mulher veio me encontrar nesse apartamento. Mas como havia risco de que ela voltasse a ser presa, e a minha situação também não era muito sólida, resolvemos deixar o apartamento dos Arantes, não muito seguro, e nos instalar em outro lugar. Começou então uma sucessão de estadas em diferentes casas, já que era delicado propor uma permanência de muitos dias. Tivemos a experiência de gente muito solidária, de outros que eram bem menos, embora naquele momento,os riscos em dar abrigo a subversivos parecessem limitados. Estivemos na casa de uma colega que ensinava na USP mas morava no Rio, alugamos por alguns dias uma casinha em Campos do Jordão, estivemos em mais de um lugar em São Paulo, e, finalmente, fomos parar na casa de Antonio Candido e Gilda. Os dois nos receberam muito bem, com muito boa vontade e alegria. Conversávamos bastante à mesa, mas eu não me lembro bem do conteúdo das conversas (fora uma anedota que já narrei). Depois de alguns dias, ficou claro que era necessário sair do pais. Quando esteve presa, minha ex-mulher, inquerida, dissera que o marido era professor de filosofia. Ora, a polícia sabia, porque já começara a prender e torturar, que havia um professor de filosofia que era um quadro importante de uma das organizações. Eles não tinham o nome dele, porque os militantes só conheciam os nomes de guerra. Mas fizeram a ligação, e o tal professor de filosofia deveria ser eu... A confusão era da maior gravidade: procuravam o colega ativista – aliás um personagem que aprecio pouco – com intenções evidentes de eliminá-lo, ou de prendê-lo e torturá-lo. Claro que eles não iriam se preocupar muito com a identidade do preso. Martirizariam o peixinho, depois iriam atrás do peixão. Nessas condições, pareceu-nos melhor deixar o país. Tudo foi organizado, vendemos um carro “queimado”, e também o outro que havíamos comprado no lugar daquele (era um fusca depois de outro...). Meu colega Vitor Knoll ofereceu-se muito gentilmente para nos levar de automóvel até Porto Alegre, de onde tomaríamos um ônibus até a cidade fronteiriça de Santana do Livramento. Estava tudo certo, quando me bateu um certo medo de que, na altura do pedágio, houvesse algum controle de um carro com três pessoas relativamente jovens. Ocorreu-me então a ideia de perguntar ao Candido se poderia nos levar com o seu carro até um ponto pouco além do pedágio, onde passaríamos para o carro do Vitor. Depois de nos despedir da Gilda, partimos, e tudo se passou como previsto. Cruzamos o pedágio, passamos para o carro do Vitor, nos despedimos de Candido a quem agradecemos muito todos os favores, e tocamos para Porto Alegre. Lá o colega tomou o caminho de volta, depois de nos deixar nas boas mãos dos irmãos de Otília Beatriz, na casa de um dos quais pernoitamos. No dia seguinte, tomamos o ônibus para Santana, com algum medo, mas não houve controle na viagem. Fomos de taxi de Santana a Rivera (trata-se da mesma cidade, a fronteira é uma rua). E de lá, rumamos de ônibus, para Montevidéu, onde ficamos uns dois ou três meses. Troquei cartas com Gilda, entre Montevidéu e São Paulo. Entre outras coisas, perguntei, como andava o Departamento. Ela me respondeu com extrema modéstia e finura (o Departamento perdera quatro professores, Gilda aludia a personagens menores de uma peça famosa): “O Departamento? Estamos tentando encenar Hamlet só com Guildenstern e Rosenkranz...”
Não tendo conseguido passaporte no consulado brasileiro em Montevidéu, fomos para o Chile (era possível viajar até o Chile só com a carteira de identidade), onde ficamos quase dois anos. Lá me beneficiei de novo da proteção da família da Otília: o pai dela, o filósofo Ernani Fiori, foi quem me arranjou um emprego bastante bom na Universidade Católica. Do Chile, fui parar na Europa (era em princípio uma viagem de alguns meses, mas fui pego – ou antes, felizmente não fui pego pelo golpe de Pinochet – e acabei ficando por lá). Nessa ocasião, o meu casamento já tinha terminado. Durante os anos que passei na Europa depois desta segunda viagem, não tive contato, que me lembre, com Antonio Candido ou com Gilda. Voltei ao Brasil pela primeira vez, no início dos anos 1980, e retomei, algum tempo depois, o meu ensino na USP. Mas não rompi a ligação que tinha com a Universidade de Paris 8, onde lecionava. A verdade é que acabei me aposentando pela USP, e decidi continuar morando na Europa, embora ressalvando pelo menos uma viagem anual obrigatória ao Brasil.
Foi nesse tempo que ouvi histórias sobre a viagem, ou sobre as viagens, a Cuba, de Antonio Candido e Gilda. Também sobre a opinião favorável ao regime cubano, que tinham os dois amigos. Como é meu hábito, acabei fazendo uma referência crítica à posição deles num artigo que publiquei na revista Lua Nova, em 1997, referência que não hesitei em conservar quando inclui o artigo no meu livro A esquerda difícil (editora Perspectiva), publicado no mesmo ano. A passagem falava de “uma certa indulgência do grande crítico literário do grupo (Clima), em relação a determinados governos burocráticos do Terceiro Mundo, indulgência que desconcerta um pouco alguns dos seus amigos e discípulos (entre os quais me incluo), que estavam habituados a uma outra lição”. A publicação desse artigo me valeu uma reação bastante violenta e um pouco surpreendente por parte de amigos comuns. Republiquei o artigo em A esquerda dificil, epus uma nota, na altura da passagem em questão. A nota começava assim: “Essa referência crítica a meu mestre e amigo Antonio Candido provocou uma verdadeira tempestade por parte de alguns, excessivamente zelosos”. Encerrei a nota com essas palavras:

pareceu-me útil deixar [manter] a referência. Ela serve contra um mau hábito brasileiro de passar por cima dos problemas e das divergências, em nome de pretensas exigências de “cordialidade”. No caso presente, não posso deixar de assinalar que, sob diferentes aspectos, meus contatos com o grande mestre e amigo foram desde o início marcados pela política e pela discussão política.

Não sei se essas considerações chegaram ao conhecimento de Candido e Gilda. De qualquer modo, não tive eco de reação por parte deles.
Uma última anedota. Deve ter sido nessa época que a Gilda me contou a seguinte história. Um bedel – o termo deve ter caído em desuso, mas era corrente, na época – veio falar com ela, muito agitado e sem jeito. Encontrara uma série de fotos.... do... bem... parece que eram do professor Antonio Cândido... Mas... Ele não estava certo. Tremendo muito, entregou a Gilda a folha com a série de fotografias. Lá estava um personagem que, diante do Fotomaton, fazia caretas de morrer de rir... Era Antonio Cândido, em pleno delírio infantil diante da câmera automática. Gilda desatou a rir, para alívio do bedel. Onde teriam ido parar essas fotos de Antonio Cândido? Seria preciso exibi-las como troféus e testemunhos contra o esprit de sérieux, isto é, não contra a seriedade enquanto tal, mas contra os que se levam excessivamente a sério.
No último período, encontrei poucas vezes com Candido e Gilda. Com ela, tive um encontro casual muito comovente numa agência de correio. Gilda, como sempre, fez-me muita festa. Como ela se declarasse “velha”, eu fiz questão de dizer que também eu já tinha “certa idade”. Ela retrucou: “certa idade? eu poderia ser sua mãe...” Despedimo-nos com muita emoção. Acho que foi a última vez que encontrei Gilda.
Antonio Candido já viúvo, fui ouvi-lo numa conferência de memórias da universidade e da intelectualidade. Havia muitos estudantes presentes, e ele foi acolhido com enorme entusiasmo e simpatia. Do conteúdo da conferência, lembro-me de que, falando da companhia cinematográfica Vera Cruz, e lembrando que a iniciativa da criação dessa produtora vinha dos burgueses de São Paulo, Candido observou: “Vocês não gostam da burguesia, mas às vezes ela faz coisas boas...”.
Acho que foi o meu último encontro com Antonio Candido.
Fico feliz por ter conhecido Antonio Candido, e por ter contado com a sua amizade e o seu apoio generoso, como fico feliz também por ter contado com a amizade e o apoio de Gilda. Lamento não ter tido um contato maior com eles, mesmo se encontrei com alguma frequência Gilda, minha colega de departamento.
A minha homenagem a essas duas grandes figuras, que foram também dois grandes amigos.

São Paulo, junho/julho de 2017

 

 

 

 

    
    

 









fevereiro #

10