revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Brasil, ano zero

 


E sabe-se como o fato de numerosos mapas quinhentistas e seiscentistas mostrarem as águas do Amazonas e as do Prata unidas no nascedouro, através de uma grande lagoa central, levou o historiador Jaime Cortesão a sugerir ultimamente a ideia de uma “ilha Brasil”, que teria sido concebida entre os portugueses da época sob a forma de mito geopolítico.

Sergio Buarque de Hollanda, Visões do paraíso

 

Desde o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, há pouco mais de um ano, que em tempo lógico parece ter ocorrido em outra era geológica dada a enorme diferença qualitativa que irrompeu entre o antes e o depois, o Brasil parece ter-se submetido a uma cruel repetição de si mesmo, sob cuja tentação retórica somos todos prestes a capitular. Expliquemos: nada mais recorrente entre nós que as rupturasinstitucionais ou de governo a cada 25 anos (ou 30 anos, a depender do relógio da ciência política), replicando-se como a famosa constante de Kondratiev a calcular os ciclos de longo prazo do crescimento econômico, a última perfazendo sempre (porque constante) ciclos50 anos. Ainda que sem um nome ou uma curva apropriada que lhe descreva, o nosso ciclo em questão se repete mais ou menos conforme as datas chaves64, 45, 30, 89 (essa última subtraindo, digamos, dez anos para saldar os fauxfrais do golpe da república, ainda no século XIX).
Assim, a primeira impressão, por definição a impressão mais retórica e não necessariamente a que deve permanecer, não deixa de nos conduzir às preliminares de 1964, com seus elementos mais óbvio, tais como a retórica classista e pró-desigualdade, completamente explícita, a emergência de uma malta de ideólogos da cretinice a mais descarada e descomplexadatomando de assalto aquilo que chamaríamos (mesmo duvidando muito do alcance e escopo da expressão) de agenda pública, e por fim, não menos importante, uma clara disposição antidemocrática mascarada sob as mais variadas figuras (todas velhas conhecidas da pretensamente educada direita brasileira): parlamentarismo, as vantagens de não se ser popular, as “reformas”, custe o que custar do que ainda se chamaria democracia. De fato, não espanta, na verdade que intelectuais (para ficarmosem torno de meu partido e de minha cozinha) até dez minutas atrás autodenominados e reconhecidos como “progressistas” tenham virado “repentinamente” o que viraram, colaboracionistas dos mais enfáticos – vale dizer que, entre nós, o partido dos intelectuais, as maiores preocupações com o “curso do mundo” se dá sob a intensidadeda ênfase, sob as mais variadas formas. A ênfase é nosso quase ganha pão, vendida aqui e ali, conforme a ocasião.
Enfim, nesse teatro patético, se não fosse profundamente trágico (com seus quase 13 milhões de desempregados e às portas de uma regressão social em termos de direitos social inédita, mesmo entre nós) tudo seria, não cômico, mas ridículo.
Ocorre que talvez haja outras linhas de força que poderíamos acompanhar para melhor entender, não do que se trata, mas de como nos tratam e de como podem nos tratar tão assim sem cerimônia, linhas de força menos retóricas ainda que não menos relevantes.
Antes da diferença, vamos à semelhança. Entre 2016 e 1964 há uma convergência importante em termos projetos radicais de reforma do estado, ainda que sob esse guarda-chuva caiba muita coisa, mesmo muita coisa díspar. Nos dois casos, reformas de importante alcance regressivo, com nuances diferentes vale dizer, do ponto de vista social e dos direitos comuns. Há igualmente uma cristalização, uma formalização antidemocrática de base, comum, cuja filigrana é simples e clara, a saber, a escolha da maioria não vale e não deve valer. Daí que a comunicação oficial, diligentemente cuidada pelos donos da voz e da palavra (e dos outros gêneros poéticos e para poéticos relevantes) venha, já há algum tempo, deslocado o debate político para o debate econômico, de modo a legitimar o golpe mediante uma pretensa racionalidade econômica incontornável, de que ele seria, gostemos ou não, portador. Isso, porém, é apenas epifenômeno, na verdade, epifenômeno que sugere, porém, uma verdade mais profunda: o quanto a representação política enquanto tal, e sob a égide da qual se disputa sobretudo a gestão do poder e não o próprio poder,  ainda que com toda a sua imperfeição e inadequação, e estamos falando de nossa representação, vinte e tantos partidos, eleições proporcionais, etc., etc., etc., não falando, em tese, o quanto esta representação, instância híbrida por excelência, foi tirada de circulação, eis o efeito mais notório e ainda sim o mais opaco do golpe. Sendo assim, diríamos simplesmente que ela foi tomada e instrumentalizada como mera extensão dos donos do poder, o que não é de pouca monta e igualmente significauma ruptura com o pacto (tácito ou explícito) firmado em 1988. Note-se, aqui não se trata apenas do impedimento de uma presidenta democraticamente eleita, por expediências absolutamente casuístas, mas de como o impedimento deu sequência a um amplo projeto de reforma constitucionalinédito, liderado por forças, ainda que o juízo seja problemático, periféricas e à margem da representação, ao menos na aparência. A mais importante consequência desse processo institucional e para institucional é a profunda desorganização que produziu na própria mobilização política pelo simples fato de que não há mais nada em disputa. Aí queremos chegar, mas ainda não agora.
Note-se: se entre 1964 e 2016, nosso caso paradigmático de comparação, há um projeto explícito e antidemocrático de tomada do poder e reforma do estado (no último caso, contra a CF de 1988), o fundo em que se dá essa operação caseira não é definitivamente o mesmo. Para ficarmos no óbvio,  o plano Campos-Bulhões se dá sob o fundo de um mundo ainda sob a ordem gloriosa do pós-guerra e do crescimento econômico de que era sucedâneo. Se há naquele momento a discussão de nossa modernização (todos os golpes de que somos e seremos testemunhas operam sob essa palavra mágica, quasemaussiana no efeito), tal discussão significava simplesmente de que modo participaríamos das benesses do capitalismo mundial ordenado e expansão, digamos, benigna, isto é, keneysiana.  Agora, o quadro é completamente outro. Estamos sob o fundo de uma crise bastante clara e típica, (talvez um longo ciclo deflacionário, que começou com o fim do ciclo de valorização das commoditese seguiu, tal crise de certa modo assemelhada com a crise do capitalismo do fim do século XIX e início do XX,  cujo termo só foi realmente regrado no fim de trinta anos de guerra, já em 1945) e sem muito promessa de suspiro e recato de curto prazo, senão sob o preço do imenso sacrifício humano, porque isso aqui é, afinal, capitalismo, o que os agentes locais da tirania vêm fazendo com dedicação exemplar, sob o guarda-chuva da melhor racionalidade de ocasião. Evidentemente, isso é uma componente política não descartável para linha de conta de profetas e oráculos em atividade, e vai dizer muito a respeito do desfecho possível do sequestro da representação, cujo resgate, ao que tudo indica, será pago mediante as mais escabrosas exigências.
Nosso modesto propósito, porém, é olhar um pouco mais para o passado próximo e entender o quanto do esgotamento do pacto de 1988, sob a égide de do descarte sem cerimônia da CF 1988, em liquidação, pode indicar tanto a natureza daquele pacto quando à urgência de sua destruição neste momento, depois de pouco mais de 12 anos de governos progressista e os fieis fiadores daquele pacto de 1988, o PMDB.

Retomando o fio da meada, lembremos de antemãoque a transição que se deu por meio da CF de 1988, enfim, aparentemente coroamento de um processo mais amplo, repetia o script de redemocratização da América Latina, no que, afinal, quase nada teria de original. Antes, o debacle  sincronizado dos governos de esquerda agora faz par com o esgotamento das ditaturas de antanho, e reforçaria uma ilusão (ou não) comum de origem. A primeira constatação e, por que não, tentação, é por em dúvida o escopo e a amplitude da CF 88 como chave para nossa transição “pacífica”. É evidente que não se trata de chutar cachorro morto, no caso a CF 88,  mas de repensar o quanto o “clima de 88” pode nos ter engando – e engando no melhor sentido –, e, tal como as expectativas em torno do selecionado nacional, em 1882 e 1986, fizeram parecer mistério intangível o fato de não termos ganhado as respectivas Copas do Mundo, aquilo que parecia ser uma excepcionalidade notável – transição pacífica e reconstituicionalização do país para a democracia –, pode ter sido apenas um blefe bem jogado pelos ganhadores de sempre, de modo a valer a máxima de que a letra da CF só valeria se fosse e continuasse morta. O fato da então Assembleia Nacional Constituinte ter ampla maioria conservadora, com o MDB detentor de incríveis 260 das 487 cadeiras da Câmara dos Deputados, então já PMDB, realizando a passagem a que estava destinado desde o AI 2, com a supressão do pluripartidarismo, de ser um centro anódino, não ideológico e de vocação, porque não ideológica, clientelista (não tecnocrática porque sempre foi de sua natureza operar no varejo), em relação ao qual os extremos do espectro político disputariam seu peso morto, eis o grande feito e resultado da, por assim dizer, reforma política em sentido amplíssimo da ditadura, a realizar, desse modo o permanente trabalho de “desideologização” do debate político nacional, enfim, o fato da ANC ter ampla maioria conservadora não foi suficiente para dar caráter conservador para a carta, em uma inversão inusitada. Lembremos de que no momento exato da ANC, a parte mais viva e volátil da antiga Arena, vulgo PDS, já havia migrado em peso ao MDB. O ator novo, barulhento, mas mínimo, era então o PT, com uma bancada de oito deputados. O trabalhismo lutava contra o tempo histórico, sendo como foi o grande derrotado em 1964, ainda que patrocinado pela única (para não dizer última) liderança política pré-golpe de 1964 ainda com sobrevida, Leonel Brizola, vitima que fora da sanha muito meditada das elites do golpe em expulsar qualquer conteúdo popular da representação política, nos idos das “reformas de base”. Nesse quadro de prognóstico aparentemente sombrio, o resultado não poderia ser mais impressionante: um constituição francamente progressista, feita por uma maioria conservadora, a tal constituição cidadã, e muito cidadã na espírito e na letra, ainda que não efetiva.
Como isso parece ter sido lido por nossa ciência política: como um pacto realmente existente para nossa a transição democrática, sob bases, pelo menos assinaladas formalmente, de reconhecimento de igualdade material e política como solo comum ao nosso novo ciclo democrático.
O que ficaria fora do pacto: os militares, sob todos os aspectos, e o passado dos mais variados e flagrantes abusos aos direitos humanos, isto é, o passado sombrio da ditadura, militar e civil, além de alguns notórios vencedores do golpe, como, por exemplo, as grandes empresas de comunicação social. Acabara-se de aprovar uma anistia fraudulenta, que servira de maneira torta, porém, para tirar das “últimas” garras da ditadura (seriam mesmo as últimas?) os últimos presos políticos, ainda que sob o custo de anistiar os perpetradores de crimes contra os direitos humanos. Todos poderiam parecer satisfeitos, o que era evidente mentira e falsificação.
Também parecia não assustar tanto o fato de que a primeira e a prima pauta política da direita pós 88, quase sua pauta permanente, foi, era e continua sendo a “reforma” da constituição, com o velho bordão hoje repetido com ares de falsa novidade, a constituição não cabe no orçamento. O que asseguraria os limites dessa sanha: o PMDB, fiador por excelência da CF de 1988, e centro político por natureza e vocação, a bloquear qualquer movimento mais brusco do sistema que pudesse dar ares de “radicalismo”.
Ocorre que o mundo gira e a lusitana roda. A estabilização de fato do processo de transição se deu um pouco mais adiante, quando houve condições políticas para a formação de um grande arco político para fins de estabilização social e econômica pós ditatura, um arranjo só possível pós turbilhão dos anos oitenta com Sarney, Collor e quejandas misérias. Tal estabilização, sob a tópica de controlo da inflação, mas cujo sentido mais amplo indicava a passagem para outro “modelo” econômico, que não o legado pela ditadura, foi armada e ancorada por um conjunto de forças de centro direita, de centro e de direita, de tal modo que um partido de perfil tecnocrático de centro esquerda, o PSDB, que se descobriu rapidamente sem votos, salvo se se instalasse na máquina e no poder instituído, somado aos setores mais astutos da direita histórica, vencedores em 1964, o então PFL, se unissem em um projeto comum de gestão, o que só foi possível mediante umanotável moeda de troca: as “reformas” constitucionais, que entraram no bojo das panaceias pró estabilização do país. O então nascente PSDB encamparia as reformas, fazendo a mediação com o centro propriamente dito, e com a esquerda “atrasada”, o PT, e a esquerda “datada”, o PDT e o que restava de trabalhismo, com o benefício de liderar o processo e dar forma, em ambiente democrático, às negociações tipicamente políticas da nova república, a nossa nova modernização política stricto sensu. O custo seria seu movimento de pêndulo em direção ao centro e mesmo à centro-direita. Há quem veja aqui o troco que Doutor Cardozo dá em Mário Covas, combativo relator da comissão de sistematização da CF de 88, figura notável no processo constituinte, e liderança inconteste do PSDB até a eleição para presidente, sob as condições já mencionadas, de Cardozo.
Entrementes, a esquerda do “atraso” vinha de seguidos sucessos eleitorais e o PT, em perspectiva, só recuou eleitoralmente após a AP 470, já “aparentemente”(e bem aparentemente talvez) encastelado no poder.  Como lidar com a possibilidade de um novo ator, nesse mundo confortável do Brasil pós CF 88 e pós estabilização (monetária, mas não só)? Não sem razão parte importante do esforço de reforma eleitoral e política no Brasil pós 88 (e que segue e sob o qual temos o privilégio, hoje, de ser testemunhas oculares) se dá sob a modesta verdade de que sempre se tratou de evitar a eleição de Lula à presidência. Tanto a emenda da reeleição (comprada, mas com a finesse da inteligência de Higienópolis) quanto a instauração de dois turnos (antes da emenda da reeleição) tem uma clara intenção de instalar um assimetria no processo de modo a tentar dificultar as possibilidades eleitorais e de poder de uma ator específico. Não há marca diacrítica mais evidente do que esta, na história que se repete em nossos tempos, quando hoje o possível e cada vez menos provável processo eleitoral do próximo ano se estrutura sob o fato de Lula ser ou não candidato à presidência. Diria o Doutor Cardozo, com a empáfia simpática que o caracteriza, “são os custos da governabilidade”.
O fato é que, parece, com a entrada do PT como ator “legítimo” do processo, o que se deu com o importante custo do adesismo ao partido, com o ônus e o bônus que isso oferece, habilitado a coordenar a gestão do poder, o arranjo inicial, de fato, que se articulava em torno da CF 1988 somada ao arco de estabilização de centro-direita que, acreditava-se, tocaria o estado por muito tempo, deteriorou-se irremediavelmente. Os remanescente dos vencedores de 1964 foram reduzidos ao mínimo e o partido dos tecnocratas, por óbvia razão de sobrevivência, teve de aderir a uma pesada disputa eleitoral, para a qual mal havia se preparado. Sobreviveram melhor onde mais penetraram na estrutura do estado, de modo a ter à disposição uma panaceia de instrumentos para eleitorais que tornava possível a intervenção “invisível” nos pleitos. Ora, o efeito do PT no poder, arrastando e arrastado pelo centro mdbista, o arranjo que se cristalizou pós AP 470,  de quem era devedor e credor simultaneamente, pode ter levado a esse desarranjo fatal. A razão pode ser simples: ainda que assimilidado aos “grandes esquemas”, portanto, já como convidado a se sentar à mesa, o PT não poderia prescindir de prestar contas mínimas a que representava: essa sua mais importante qualidade. Logo, estava descartado, por princípio, como parceiro de estrita confiança nas rodas de poder.  A direita mediada, representada pelo PSDB e seus acólitos cairia no vazio, mas não no vácuo: continuaria representando os super representados, o que lhe dá sobrevida mas quase nunca votos suficientes para recuperar sua miragem de hegemonia. Isso somado, pressionou o mdbismo a, tangencialmente, ir ocupando a posição de direita, da direita cuja a agenda era inventada pelos meios de comunicação, mas com as característica diversas do arco PSDB/PFL ou mesmo PSDB/PMDB. Para bem e para mal, seja com AP 470, seja com Lava Jato, o ônus e bônus da maioridade do PT (sem puritanismo, a “ilegalidade” da gestão do poder no Brasil, tal qual, é sinal de maturidade política, é o “custo” que todos pagam –vejam, a frase é evidentemente capciosa – apesar do discurso histriônico e moralista da boca para fora dos agentes do sistema, evidentemente. Os contribuintes e o cidadão comum tem direito (ainda, a supor válido o artigo 5, CF 1988) a todo tipo possível e imaginável de moralismo e crítica moralista, ainda que modestamente, creio eu, nada sai dessa cumbuca, em termos de rendimento analítico para a situação que estamos vivendo,
Voltando ao raciocínio, esse desarranjo decorreu, seguindo a hipótese, assim nos parece em juízo ligeiro, ao fato de que a Constituição de 1988 não poderia valer, ou melhor, ela só valeria se não pudesse ser efetivada. Isto é, o verdadeira acordo tácito da transição seria, mantemos tudo, e damos o que nada vale, até que valha. Quando valer, tomamos de volta.
Estamos por aí.

Dizia mais, que no Brasil se haveria de levantar o Quinto Império, e, para maior escândalo dos inquisidores, que o Dilúvio não foi universal, já que poupou o Brasil, que não interveio Deus Padre mas só o Filho e o Espírito Santo na criação do mundo, e que as pessoas divinas tinham corpo, posto que espiritual, como também os anjos e a Senhora, uns com mais, outros com menos perfeição e espiritualidade.
Sergio Buarque de Hollanda, Visões do Paraíso.

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ