revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

A tragédia de outubro: descontruindo os mitos em torno da insurreição bolchevista de 1917

 


I. O quiproquó de outubro

1. O movimento que, em outubro de 1917, leva ao poder os bolcheviques foi considerado durante muito tempo como uma grande revolução proletária, a primeira revolução proletária vitoriosa. Mas ao se comemorar o seu centenário, o mínimo que se pode dizer é que essa visão se tornou problemática.
Revolução? Golpe de Estado? E revolução ou golpe de Estado, em proveito de quem? Nada disso pode ser considerado óbvio hoje em dia.
Na realidade, essa alteração de perspectiva que vai da leitura do movimento em termos de revolução proletária, à de uma insurreição de uma minoria dirigida por um partido de estilo autocrático, segue um caminho inverso, se considerarmos não a opinião pública (a de esquerda, principalmente), mas a leitura dos historiadores.
De fato, a primeira historiografia sobre a insurreição bolchevique de 1917, contando principalmente com historiadores liberais, insistia antes na dificuldade em considerar o outubro russo como uma revolução proletária, e mesmo como uma revolução. Foi anos depois que surgiu uma literatura seguindo o caminho inverso. De modo geral, essa nova historiografia defendia a ideia de que, de uma forma ou outra, teria havido mesmo uma Revolução de Outubro. Curiosamente, essa tendência foi chamada – ou se autodenominou – revisionista (sem nenhum sentido pejorativo).

2. A quantas estamos hoje? O argumento central da tese de que o movimento de outubro não teria tido um caráter revolucionário remetia principalmente ao número de participantes, sobretudo quando comparados com os que teve a revolução de Fevereiro de 1917, que derrubara o Tzar.1 Em Fevereiro, deve ter havido mais de 100 mil operários nas ruas de Petrogrado e mais de 200 mil grevistas. Uma porcentagem importante da população operária, sem falar nos militares, que intervieram depois, participou diretamente da revolução. Ora, em outubro, no dizer dos próprios dirigentes do movimento, foram para a rua, em Petrogrado, no máximo 25 ou 30 mil operários e soldados, para uma população global de soldados e operários da ordem de 500 ou 600 mil (a participação foi da ordem de 5%). A proporção em escala nacional não deve ter sido maior.
O argumento é forte, mas talvez não seja suficiente. Em si mesmo, outubro não foi certamente uma revolução. Mas podemos separá-lo do conjunto de acontecimentos que marcaram a vida russa e a de Petrogrado, em particular, de fevereiro a outubro de 1917? Uma justificação possível seria a seguinte: certo, em outubro havia pouca gente nas ruas, mas na quase insurreição fracassada que ocorreu em julho de 1917, havia mais ou menos o dobro (sem dúvida, ainda pouca coisa, perto da multidão que esteve nas ruas em fevereiro, porém bastante gente, apesar de tudo). Por outro lado, é verdade que os bolcheviques tinham o apoio (mas que tipo de apoio?) da maioria do proletariado (as eleições para as dumas – assembleias distritais – o comprovam, e eles tinham ganho a maioria nos sovietes de Petrogrado e de Moscou). Além disso, logo depois da insurreição, no dia 30 de outubro, houve uma mobilização importante para enfrentar os cossacos numa batalha que ocorreu nas imediações de Petrogrado.
Tudo isso não dá conta do abismo que existe, sem dúvida, entre a grande massa que saiu em fevereiro e as duas ou três dezenas de milhares de soldados e soldados que participaram de outubro. Entretanto, a crítica não fica por aí.

3. Há duas questões essenciais que devem ser discutidas nesse contexto. A primeira – já evocada – era: em que sentido as massas “deram apoio“ aos bolcheviques, no outono astral de 1917? A segunda é: a que visava a direção do partido bolchevique (e em particular: que visavam Lênin e Trotski) quando encaminharam o partido na direção da tomada do poder?
Sobre o primeiro problema, poder-se-ia objetar que ele é excessivo. Seria válido nos perguntarmos quais teriam sido os objetivos exatos dos participantes de uma revolução, de forma a comparar a sua visada com o que fizeram efetivamente os dirigentes dela, uma vez no poder? Entretanto, no caso russo, pelo menos, a questão é válida, porque tudo indica que houve de fato um “mal-entendido”. Vários autores exploraram esse tema, mas talvez tenha sido o historiador francês Nicolas Werth, quem o desenvolveu da maneira mais rica.2 Werth fala nos “quiproquós” de outubro. Eles seriam três, e é o primeiro o que mais nos interessa aqui. As fontes revelam que, se amplas camadas da população operária queriam a queda do Governo Provisório instaurado em fevereiro, não há razão para supor que elas desejassem um governo de partido único. Ora, excetuado um breve período em que os socialistas revolucionários de esquerda vieram a participar do poder (mas como grupo minoritário e com um raio de manobra muito limitado) foi o que aconteceu.3 Então o primeiro e grande mal-entendido foi o da “tradução” do slogan de “todo o poder para os sovietes” (slogan que por um período os bolcheviques apoiaram), pela realidade de um todo poder ao partido bolchevique. E a substituição vale não só para o soviete, mas também para outros órgãos de poder popular, como os comitês de fábrica. Os outros dois mal-entendidos foram: o que se instaurou entre uma promessa de autodeterminação para as nações não russas do Império e uma política centralizadora que, sem dúvida, concedeu alguma autonomia às nações não russas, e respeitou até certa data a independência de outras, mas isso muito nos limites dos interesses do poder central (ver a invasão da Geórgia, da Ucrânia e da Polônia, para falar de três casos, de resto, bastante distintos); e, em terceiro lugar, o mal-entendido com os camponeses. Os bolcheviques tinham como projeto a nacionalização e a coletivização da terra, projeto pouco apreciado pelos camponeses. Mas no momento da tomada do poder, por razões de oportunidade politica, ele dá lugar a um outro, que era, na realidade, o programa dos socialistas revolucionários: a entrega da terra aos comitês camponeses, para que a sua posse fosse atribuída segundo as necessidades de cada família. Entretanto, muito cedo, pressionados pelas circunstâncias, mas obedecendo, por outro lado, às suas tendências autoritárias, o poder bolchevique envia brigadas armadas ao campo, para obrigar os camponeses a entregar os estoques de grãos de trigo excedentes. E, depois de uma trégua de quase dez anos, em que se estabelece um imposto, primeiro em espécie e depois em dinheiro, mas assegurando considerável liberdade na disposição das colheitas, o bolchevismo volta a mostrar a sua terrível face primitiva, com a coletivização forçada instituída na passagem dos anos 1920 aos anos 1930, de que resultaram deportações e prisões em grande escala, e depois a liquidação de alguns milhões de camponeses.
4. Voltando ao centro da discussão. A segunda questão, que é, de certo modo, simetricamente oposta à primeira, se propõe a elucidar o que pretendia Lênin ao levar adiante o projeto de tomada do poder. Digo Lênin, porque, como se sabe, houve, durante muito tempo, grande oposição a essa política, no interior do partido bolchevique. Na realidade, havia de um lado a maioria do partido, que se opunha à insurreição, e de outro, Lênin e Trotski, “recém-convertido” ao bolchevismo, pois aderira ao partido em junho de 17 (a posição de Trotski significou provavelmente uma simples variante da posição de Lênin). Sabe-se que desde o momento em que chega a Petrogrado no dia 3 de abril, logo depois da Revolução de Fevereiro que leva ao poder o primeiro Governo Provisório, de ampla maioria liberal, e já antes da sua chegada, Lênin propõe, contra a quase totalidade do partido, a derrubada do Governo Provisório. A Rússia estava em guerra contra os Impérios Centrais, e aquele projeto, que implicava no armamento dos operários, estava ligado também à exigência de uma paz imediata. Em seguida, sem sofrer uma modificação essencial, a sua posição ganha, entretanto, alguma flexibilidade. Ele deixa claro que não está propondo uma ação imediata. Seria preciso que as condições amadurecessem, o que se supõe, deveria ocorrer a curto prazo. A dificuldade residia no peso relativamente pequeno do bolchevismo no primeiro semestre de 1917. Os bolcheviques não dispunha de maioria nos sovietes e seu prestígio junto às massas permanecia relativamente limitado. (Acho que havia alguma ambiguidade na posição de Lênin. Lênin aceita a palavra de ordem “todo o poder aos sovietes”, mas o que ele acentua é a derrubada do Governo Provisório. Subsistia alguma obscuridade, creio eu, na formulação do destino final e do mecanismo dessa mudança de governo).

II. A “curtocircuitagem” do congresso dos sovietes

1. Em junho, o primeiro ministro do terceiro governo provisório, Alexandre Kerenski, que pertencia ao partido “trabalhista” – o grupo dos trudovik, próximo dos socialistas revolucionários – tentara uma ofensiva contra as tropas dos Impérios Centrais, ofensiva que terminara em desastre.
Em julho, como fruto do descontentamento provocado por várias circunstâncias incluindo o fracasso da ofensiva, há uma radicalização das bases comunistas (e anarcocomunistas). Esta leva a uma quase insurreição, mal sucedida, a qual o partido bolchevique alimenta, mas da qual ele recua no último momento. Segue-se um violento período de repressão, em que vários líderes do partido, e também Trotski, são presos, e no qual os bolcheviques são acusados de conluio com o governo alemão. Nesse momento, diante da situação e do fato de que a maioria dos sovietes continuava nas mãos de mencheviques e socialistas revolucionários, Lênin propõe e impõe o abandono da palavra de ordem “todo poder aos sovietes”. Numa carta dirigida ao Comitê Central, ele escreve, agora: “os bolcheviques devem tomar o poder”.                

2. Entretanto, depois do período de repressão da quase revolução de julho, houve uma tentativa de contragolpe reacionário que seria dirigido pelo general Kornilov, nomeado comandante em chefe do exército russo por Kerenski (este começa a se envolver numa espécie de putsh, mas acaba denunciando Kornilov). O primeiro ministro se vê obrigado a mobilizar todas as forças revolucionárias e os bolcheviques vão se revelando então a força hegemônica. Com isso, a derrota de Kornilov vem a ser, ao mesmo tempo, a derrota de Kerenski. Os bolcheviques ganham grande prestígio e passam a ser majoritários nos sovietes de Petrogrado e de Moscou. Lênin e o partido bolchevique relançam então o slogan de “todo o poder aos sovietes“. Lênin considera seriamente (e não apenas formalmente), durante um período muito curto, ­­de duas semanas mais ou menos, a possibilidade de uma tomada do poder por via pacífica, através dos sovietes, apoiando o que fora sempre o projeto de Kamenev e de outros bolcheviques moderados. Há, assim, um interregno, marcado por um clima excepcional de entendimento entre as diferentes forças revolucionárias.

3. Mas o intermezzo não dura mais do que essas duas semanas. Lênin volta a propor a tomada do poder pelo seu partido, projeto que, no fundo, fora sempre o seu. Mas, agora, este significa precisa e objetivamente que o partido deveria passar por cima dos sovietes (o paradoxo aparente é que, nesse momento, os bolcheviques são majoritários no soviete; porém maiorias implicam em minorias, que de algum modo têm de ser representadas, e a isso Lênin era alérgico). A partir desse momento, Lênin, que fora obrigado a se refugiar na Finlândia – depois em Petrogrado e imediações, depois de novo na Finlândia – prega obstinadamente a tomada imediata do poder.

4. Ocorre que estava marcado para o dia 20 de outubro o segundo congresso pan-russo dos sovietes (o primeiro ocorrera em junho). Dado o enfraquecimento progressivo do Governo Provisório e das forças que o apoiavam, após o fracasso da ofensiva, previa-se não só um bom resultado para os bolcheviques nas eleições para o segundo congresso, como estava no ar a ideia de que o congresso acertaria as suas contas com o Governo Provisório, propondo como alternativa um governo do soviete. Por isso, muita gente, dentro e fora do partido bolchevique, desejava esperar o congresso, para que este resolvesse o problema do poder. Não era essa a posição de Lênin. De um modo cada vez mais insistente, quase obsessivo, Lênin reclamava, do fundo do seu refúgio finlandês ou fronteiriço, a derrubada imediata do Governo Provisório, o que significava – “detalhe” não sem importância –: derrubada a ocorrer antes da abertura do congresso dos sovietes. (Trotski queria que os dois eventos coincidissem. Sua preocupação era muito provavelmente também a de garantir o primado do partido, mas julgava que a simultaneidade das duas decisões – não uma iniciativa primeira do soviete – seria a melhor tática, porque, com isso, ter-se-ia uma cobertura “legal” para o golpe).

5. De fato, por que essa insistência? Uma hipótese que foi frequentemente levantada pela historiografia oficial (digo, a pro-leninista), é a de que Lênin temia uma iniciativa da contrarrevolução. Para preveni-la, seria necessário mobilizar imediatamente as forças revolucionárias disponíveis. Entretanto, sem excluir de forma absoluta essa leitura (observe-se que se o risco de um ataque eficaz da direita era remoto depois do fiasco de Kornilov, Lênin, ausente de Petrogrado, poderia estar superestimando esse perigo), é praticamente certo que havia também uma outra razão, esta fundamental: Lênin sabia que uma tomada do poder pelo soviete através do congresso dos sovietes implicaria, de imediato, num governo pluripartidário, enquanto que uma insurreição vitoriosa anteriormente à instalação do congresso daria o poder não ao Soviete mas ao partido bolchevique. Se os historiadores liberais não duvidam disso, esta é também a explicação dos autores que eu chamaria de “críticos”, como Nicolas Werth e Orlando Figes. Mesmo quem tenha boa acolhida em certos meios pró-leninistas, como Alexandre Rabinowitch – e ainda que subsista um zesto de incerteza no seu argumento – opta notoriamente por essa explicação. Assim, Lênin dá um golpe na revolução. Outubro não foi apenas revolução e golpe, como se costuma dizer, no sentido de que a revolução necessitava de uma manobra militar para que se efetivasse, mas foi revolução com um golpe dentro dela, golpe que logo comprometeu a revolução. Sem dúvida, como veremos, houve uma iniciativa de Kerensky, no último momento, que complicou ainda mais o quadro (ele tenta abortar a insurreição, com medidas de contrarrevolução) mas não creio que haja razões para abandonar, por isso essa leitura do acontecimento.

III. Crônica do golpe de outubro

1. O congresso dos sovietes, que fora marcado para o dia 20 de outubro por decisão da antiga Comissão Executiva, foi adiado para o dia 25 de outubro (7 de novembro, pelo calendário moderno). Isso facilitou a jogada de Lênin. Numa reunião do Comitê Central, realizada no dia 10 de outubro, e que contou com a presença de só uma parte dos membros, Lênin conseguiu enfim um voto majoritário – esmagadoramente majoritário: 10 a 2 – para a sua proposta de tomada do poder mais ou menos imediata. Somente Kamenev e Zinoviev votaram contra. Seguiu-se uma luta política violenta entre Lênin e esses dois companheiros de direção, principalmente depois que, através do jornal de Gorki, eles revelaram os planos de Lênin. Este quer expulsá-los do partido, mas não consegue apoio para essa medida. No soviete de Petrogrado, agora já com maioria bolchevique, havia se constituído um Comitê Militar Revolucionário (CMR), destinado em princípio a elaborar um plano de defesa de Petrogrado diante do avanço alemão. O Comitê, cuja constituição fora proposta, aliás, na origem, e ainda com outro nome, por um menchevique, tinha, assim, inicialmente uma função de defesa contra um perigo externo. Mas os bolcheviques o manobram progressivamente, e Trotski, o novo presidente do soviete, vai utilizá-lo como instrumento de insurreição. O comitê substitui os antigos comissários do governo junto às tropas pelos seus próprios representantes, e obtém que nenhum movimento de tropas fosse autorizado sem a contra-assinatura do CMR.

2. Nesse momento, a situação se precipita, com as iniciativas de Kerenski. Como a eventualidade do golpe bolchevique aparecia como cada vez mais provável, este resolve se antecipar: no dia 24 de outubro (6 de novembro) manda invadir o jornal bolchevique Pravda, e ocupar alguns pontos chave em Petrogrado. O Comitê Militar Revolucionário se mobiliza, mas, como observa o historiador Alexandre Rabinowitch, ele toma, de início, medidas essencialmente defensivas, de neutralização dos atos do adversário: o Pravda é reocupado e protegido, restabelecem-se serviços que haviam sido interrompidos etc. O Comitê passa à ofensiva, ocupando outros pontos-chave na cidade, no momento em que Lênin precipita a sua volta a Petrogrado (noite de 24 para 25 [6 para 7 de novembro]). A partir daí, vai–se configurando o golpe militar. Na manhã de 25, ocasião em que o Governo Provisório tinha ainda um núcleo de resistência em Petrogrado, o Palácio de Inverno, sede do governo, Lênin redige um documento em nome do Comitê Militar Revolucionário, anunciando a destituição do Governo Provisório. O congresso dos sovietes só se reúne na noite de 25, pouco antes das 23 horas. A sessão é aberta no momento mesmo em que o cruzador Aurora começa a bombardear, sem provocar vítimas, o Palácio de Inverno.
3. Os bolcheviques tinham elegido 300 dos 670 delegados, os SR 82 (mais da metade eram da esquerda SR), os mencheviques tinham 82, dos quais 14 eram internacionalistas. As condições da eleição haviam beneficiado os bolcheviques (peso dos sovietes do norte, excesso de representação de certos contingentes pró-bolcheviques etc). Depois de eleger o novo Comitê Executivo, passa-se à questão do poder. Se há acordo quanto ao estabelecimento de um governo do soviete, resta saber sob que forma. Martov propõe um governo com representação de todos os partidos de esquerda, como alternativa a uma inevitável guerra civil. Aplauso geral, Lunacharsky declara que os bolcheviques não estão contra. Mas um grupo de mencheviques e socialistas-revolucionários protestam contra a “aventura criminosa“ dos bolcheviques declaram que seus partidos (na realidade, sem as alas esquerdas, uma delas já independente) se retiram do congresso. Martov tenta relançar a proposta de um governo plural. Mas recebe, então, a famosa resposta de Trotski: “aos que saíram e aos que querem compromisso dizemos que eles são [indivíduos] lamentáveis em bancarrota (...) vão para onde deveriam ir – para o lixo da história”. “Então, saímos”, grita Martov. (Para um bolchevique que o interpela, de lado, na saída, Martov responde: “Um dia vocês se darão conta do crime de que estão participando”). De fato, a intervenção de Trotski decidia, em parte, o curso da história. O que há de grave nessa intervenção é, como observam dois autores em um livro que acaba de sair na França4 – o episódio e seu significado são velhos conhecidos, mas a fórmula é original – é que Trotski amalgama duas posições diferentes. Ele joga na lata de lixo tanto aqueles que não querem participar do governo – os quais, por abusiva que tivesse sido a atitude dos bolcheviques se antecipando à decisão do congresso, cometeram um erro histórico retirando-se da sala – como os que, como Martov, não se retiram, mas querem um governo plural. Apesar de toda a desconfiança que tinham em relação aos bolcheviques, os últimos se dispunham a participar do governo. Mas Trotski só tolera quem aceita um governo de partido único. A deriva do poder chamado impropriamente de “soviético” começa cedo. Os socialistas-revolucionários de esquerda não se retiram do congresso, mas se recusam a participar de um governo que dividiriam só com os bolcheviques. Eles se decidirão a participar do governo em dezembro e farão parte dele até março, quando ocorre a ruptura, por causa do seu desacordo com o tratado de paz de Brest-Litovski, que os bolcheviques assinariam com os Impérios Centrais.
4. A sessão do congresso dos sovietes termina às 6 de da manhã do dia 26 (8 de novembro) umas três horas depois do anúncio, por Kamenev, da queda do Palácio de Inverno. Os ministros do Governo Provisório são presos. Kerenski fugira num automóvel camuflado, para tentar obter reforços no front. Lênin redige então três decretos, que são aprovados por unanimidade pelos delegados bolcheviques, e que serão apresentados ao Congresso, que reabriu na noite de 26, às 22:40. Trata-se do chamado decreto da paz, que propõe armistício aos beligerantes, condena a diplomacia secreta, e faz um apelo aos beligerantes em favor de uma paz sem anexações e respeitando o princípio de autodeterminação das nações. O projeto sobre a terra, que, como se costuma dizer, “rouba” o programa Socialista-Revolucionário; não propõe a “nacionalização“ (era, até então, a palavra de ordem bolchevique a propósito da terra), mas a transferência da posse da terra aos comitês camponeses, que a distribuiriam segundo as necessidades dos camponeses. O terceiro projeto visava a constituição do governo, o Conselho de Comissários do Povo (Sovnarkom). Lênin será o presidente; Trotski o ministro das relações exteriores; entre os demais, todos membros do partido bolcheviques, está Stalin, a quem cabe as questões aferentes às nacionalidades. O Comitê Executivo Central do Soviete é renovado, cabendo 62 lugares aos bolcheviques, e 29 aos socialistas revolucionários de Esquerda,10 ficariam com pequenos grupos de esquerda. Teoricamente, esse seria o parlamento do país.

IV. A responsabilidade dos “moderados”

Se o percurso do leninismo no golpe de Outubro é indefensável, é evidente que os mencheviques (não internacionalistas) e a direita socialista-revolucionária também têm a sua parte de responsabilidade na tragédia. Se o leninismo peca por voluntarismo, se se quiser, por subestimar a inércia da história (da história futura, em particular), socialistas revolucionários e mencheviques de direita pecam por superestimar a inércia da história do presente. Por que insistir numa aliança com os liberais, (aliança que, nas condições de extrema radicalização dos operários e camponeses se revelava fatal)? Se deixarmos de lado explicações em termos de “oportunismo”, ou de interesses excusos de uma outra ordem, as explicações podem ser duas. Por um lado, a posição que assumem resulta da teoria – conforme ao que reza o marxismo canônico, mas não todo o pensamento de Marx – de que a revolução teria de ser burguesa, porque a Rússia era um pais atrasado. Nessas condições, no interesse mesmo da revolução socialista, seria preciso deixar o poder aos liberais. Esse argumento era o dos mencheviques, mas a sua esquerda (Martov) vai progressivamente tomando distância em relação a ele (na realidade, os dois partidos que invocavam o marxismo, acreditavam que havia que começar resolvendo as chamadas “tarefas democratico-burguesas“, porém, desde o início, para Lênin e Trotski, isso não implicava a aceitação de um governo liberal; Martov rompe com a tese menchevique clássica a partir do começo de julho de 1917).
A segunda razão era a obsessão pelos riscos por que passava a revolução, junto com a ideia altamente ilusória, nas condições do ano de 1917, de que a melhor garantia contra um golpe contrarrevolucionário era a aliança com os liberais. Não percamos de vista que, por um lado, a revolução de Fevereiro serviu de estímulo a uma mobilização camponesa que, retomando ciclos anteriores de luta, começou reivindicando vantagens econômicas e, a partir do verão, foi se tornando mais violenta, com ocupação de propriedades dos nobres e até violências físicas contra eles; e que, por outro lado, os operários, que foram os grandes agentes da primeira revolução, se mobilizaram o ano inteiro. Os conflitos operários, greves, demonstrações, aumentaram muito, nas condições de inflação e de uma crise geral do abastecimento. Provavelmente, pesava no raciocínio conciliacionista dos “moderados” a memória das derrotas ou semiderrotas das revoluções passadas. Para eles – aqui o engano – uma aliança com os liberais deveria garantir a retaguarda das forças revolucionarias e parar o carro da contrarrevolucão. Nada mais ilusório. A condição para fortalecer a revolução era, na Rússia de 1917, uma política de aliança de todas as forças de esquerda, excluindo os liberais. Só uma política desse tipo estaria em condições de garantir o apoio dos operário e das massas camponeses que constituíam mais de 80% da população. Em relação aos bolcheviques, os dois partidos tinham razão em desconfiar: não era difícil entender que planos tinha, pelo menos, Lênin. Mas suas críticas ao leninismo se faziam de um ponto de vista muito ambíguo, a posição deles diante de forças muito conservadoras era, na realidade, capitulacionista, pelo menos se levarmos em conta as condições reinantes naquele ano de grande ebulição revolucionária. Mais realista eram certamente Martov e os mencheviques internacionalistas (assim como os SR de esquerda, mesmo se estes cometeram muitos erros): a desconfiança e a crítica do leninismo não os impedia de tentar algum tipo de entendimento com eles, com vistas a uma coalisão das esquerdas.
Entretanto, se tanto os “moderados” como os leninistas merecem críticas e se completam compondo o cenário da tragédia russa do ano de 1917, creio que a responsabilidade maior cabe aos bolchevistas leninistas. No sentido de que eram eles finalmente que tinham os trunfos na mão e que poderiam ter levado o movimento a um desfecho revolucionário, no melhor sentido do termo. Mas isso eles não fizeram. Os outros erraram muito também, mas, pelo menos a partir de uma certa data, não tinham mais condição para dirigir o processo. Por isso, e também por causa do peso que teve afinal o bolchevismo na tragédia mundial da esquerda no século XX, parece-me justo apontá-los como os maiores responsáveis. Os outros funcionaram um pouco como coadjuvantes inábeis. O que não quer dizer que a esquerda não continue assombrada pelos dois demônios, o do neototalitarismo (e formas afins, incluindo o próprio populismo, na sua variante mais radical), e a adesão ao sistema dominante. De fato, a tragédia russa do ano de 1917 de certo modo se repete na política de hoje, tanto na dos países mais avançados, como na dos países emergentes.

V. Tentativas de um governo plural. Repressão e resistência

1. Tentativas de um governo plural se prolongaram ainda por algum tempo. A mais importante é a do Vikzhel, a comissão executiva do sindicato dos ferroviários que ocorre, a partir de 29 de outubro de 1917, poucos dias depois da tomada do poder pelos bolcheviques. Os ferroviários ameaçaram com uma greve geral, caso os bolcheviques não aceitassem um governo plural. Como a situação ainda era difícil – a resistência em Moscou, que foi mais importante do que a que houve, também, em Petrogrado, ainda não terminara; além do que, travava-se, nos arredores de Petrogrado, uma batalha entre cossacos e forças vermelhas – os bolcheviques tenderam a aceitar um acordo, o que era a solução desejada pelos bolcheviques moderados, como Kamenev e Riazanov. Os mencheviques e SR também participam dos encontros. O projeto de um governo plural teve amplo apelo popular. Prova disso foram a inúmeras petições em favor dele enviados por sindicatos, comitês de fábrica e guarnições militares. O Pravda anunciava mesmo a probabilidade de que se constituísse um governo desse tipo. A certa altura, propõe-se um governo de coalisão de esquerda, em que entraria o partido bolchevique, mas sem Lênin nem Trotski. Kamenev chega a considerar essa proposta. Mas a ideia de um governo socialista plural era a última coisa que desejavam Lênin e Trotski. Um pouco afastado das negociações, Lênin se reinsere nesse processo, reagindo violentamente. Chega a propor a prisão dos representantes do Vikhsel e de dirigentes SR, e uma intervenção nos jornais mencheviques. Exige um compromisso escrito de lealdade à sua linha por parte de todos os membros da direção, o que produz a demissão de cinco desses membros (Kamenev, Zinoviev, Rykov, Miliutin e Nogin), e, em seguida, a renúncia de um terço dos membros do governo. Estes assinam uma segunda carta junto com outros dirigentes bolcheviques, em que se fala que um governo puramente bolchevique levaria ao “terror político” e “à destruição do partido e do país”. Mas, com a derrota militar – em Moscou e nos arredores de Petrogrado – das forças do antigo regime, Lênin assegura a vitória da sua posição. As discussões são interrompidas em 6 de novembro.
2. A história do poder bolchevique é a de uma política de repressão constante, primeiro contra os seus adversários liberais e, depois, contra todas as esquerdas dissidentes. A polícia política é criada em 7 de dezembro. Fecham-se jornais, os quais tentam depois reaparecer, em condições difíceis, através da mudança do título.
A história da Assembleia Constituinte, velho sonho de socialistas e liberais, é propriamente trágica. No dia 12 de novembro começam as eleições para a Assembleia Constituinte, previstas, para datas sucessivamente prorrogadas, desde o primeiro semestre, e que têm como resultado a vitória dos socialistas revolucionários (os bolcheviques obtêm boa votação, um quarto dos votos; ganham entre os operários, e entre os soldados acantonados nos grandes centros). No dia 5 de janeiro, a Assembleia se reúne, elege um presidente SR (Viktor Tchernov), vota um certo número de resoluções, mas é obrigada a interromper os trabalhos, de madrugada, pela intervenção dos marinheiros determinada pelo comando bolchevique. Foi a única sessão desse primeiro órgão realmente democrático da Rússia.
As razões aduzidas por Lênin, para justificar o fechamento da Assembleia Constituinte (ele assistira à sessão única, do fundo do camarote oficial) serão principalmente duas: a Assembleia Constituinte devia dar lugar a uma forma mais autêntica de representação popular que seriam os sovietes. Por outro lado, num plano mais específico, ele denuncia um elemento de deformação do resultado das eleições, o fato de que o partido SR apresentara uma lista única: de fato, o partido ainda estava unificado quando as listas foram elaboradas; já, na situação presente, havia dois partidos SR, com linhas diferentes, senão opostas. A este último argumento, Rosa Luxemburgo que teve o imenso mérito de se opor ao fechamento da Assembleia Constituinte, objetaria afirmando que bastava dissolver (diríamos: e, não, dispersar ou liquidar) a Assembleia, procedendo em seguida a novas eleições, como se fez muitas vezes, em diversos países e ocasiões. Quanto à superioridade dos sovietes sobre a Assembleia Constituinte, os acontecimentos que se seguiram mostraram o quanto era pouco sério o argumento de Lênin: longe de substituírem a Assembleia Constituinte como mediadores da vontade popular, os sovietes sofreriam o mesmo destino que teve a Constituinte, ainda que por outros caminhos. Eles seriam progressivamente dominados pelos bolcheviques. Entenda-se: não é que os bolcheviques foram ganhando força e obtendo maioria nas eleições para os sovietes, como apregoa a tese oficial. Foi o contrário o que aconteceu: em poucas semanas, eles vão perdendo o apoio popular para os mencheviques e socialistas revolucionários; e, em consequência, vão empregando métodos cada vez mais grosseiros para dominar os sovietes e também os sucessivos congressos panrussos dos sovietes. Um historiador estrangeiro, radicado nos Estados Unidos, Vladimir Brovkin,5 faz um balanço detalhado das intervenções violentas do poder dito “soviético” (!) nos sovietes de diversas cidades russas. Lá onde eles não obtém maioria, os bolcheviques arrancam a direção do soviete através de manobras sucessivas, ou simplesmente enviam uma força armada, frequentemente policial, para derrubar as direções democraticamente eleitas. O destino dos sovietes não foi essencialmente diferente do que teve a Assembleia Constituinte, foi diferente na forma.
3. Também os partidos de oposição vão sendo progressivamente neutralizados, não sem alguns vaivéns, de interesse mais ou menos episódico. O ponto forte desse tipo de neutralização é a expulsão de mencheviques e SR do Comitê Executivo dos Sovietes (eles tinham voltado a participar desse organismo), no dia 14 de junho de 1918. Há também uma sucessão de fraudes e manobras ilegais tanto nas eleições para os sovietes, como para os congressos dos sovietes. É esse tipo de manobra que acaba levando ao choque decisivo com os SR de esquerda. Estes decidem participar do governo em dezembro (eles haviam se recusado a participar, por ocasião do golpe de outubro, por exigirem um governo realmente plural), mas se retiram no momento da assinatura do tratado de paz com os Impérios Centrais. Os SR de esquerda, que aliás haviam apoiado o fechamento da Assembleia Constituinte – apesar de erros como esse, a atitude deles foi em geral positiva, no sentido de que tentaram moderar, mesmo se com resultados limitados, o autocratismo bolchevique – continuavam acreditando, entretanto, que poderiam impor certo equilíbrio de poder aos bolcheviques. Eles confiavam na possibilidade de obter maioria no quinto congresso dos sovietes, reunido em Moscou em 4 de julho. Mas uma série de manipulações e fraudes assegura aos bolcheviques uma maioria confortável. Nesse momento, os SR de esquerda voltam a ceder ao fantasma do terrorismo, sua velha e nefasta tradição política, que remontava ao tempo dos narodniki. (Antes dessa viragem, em 20 de junho, um SR assassinara o dirigente bolchevique Volodarsky, e haveria, no final de agosto, um atentado contra Lênin, praticado por uma simpatizante SR, sem que se tenham provado, entretanto, que ela tivesse tido maiores conexões com o partido).Como o grande ponto de discórdia com os bolcheviques era a paz de Brest-Litovsk (os SR de esquerda – como muito mais gente, aliás, na esquerda e na direita – eram a favor da continuação da guerra, para a esquerda uma “guerra revolucionária“ contra os Impérios Centrais),6 eles tomam a iniciativa de assassinar o embaixador alemão Von Mirbach, supondo que isso relançaria a guerra entre os dois países. Mas o governo bolchevista logo se comunica com o governo alemão, que se abstém de tomar medidas de retorsão, e assegura o prosseguimento do “estado de paz” entre russos e alemães. A partir daí, dá-se a progressiva ruptura entre os bolcheviques e os SR de esquerda. Vários socialistas revolucionários são executados, muitos são presos, e o partido vai perdendo progressivamente o seu peso. O governo de partido único ganha a sua forma mais pura. É nesse momento que começa o Terror. A polícia política mata e executa milhares de pessoas, sem julgamento ou com um simulacro dele, na maioria dos casos gente que não tinha nenhum tipo de atividade política. O Terror se desencadeia, assim, no segundo semestre de 1918, mas isso não significa que o primeiro semestre já não tivesse sido sangrento, mesmo se a violência não atingira então os recordes que alcançaria depois.

4. Deve-se destacar, nesse processo, a atuação de um movimento operário antibolchevique cada vez mais ativo, movimento que se cristaliza na formação das chamadas Assembleias de Representantes, espécie de organismo paralelo que substitui os sovietes, já transformados em quase caixas de ressonância do bolchevismo. A Assembleia de Representantes chega a planejar, para o início de julho, uma greve geral em torno de reivindicações tanto econômicas quanto políticas (havia os que queriam a Assembleia Constituinte, outros preferiam o poder dos sovietes, mas um poder democrático autêntico). A greve fracassa, como não poderia deixar de fracassar, dadas as condições, e a polícia procede a várias prisões. Mas ficaram as declarações públicas do movimento. A experiência da Assembleia de Representantes não pode ser apagada dos registros da luta pela emancipação.
O acontecimento que representa o ápice da resistência de baixo ao poder bolchevique foi a revolta dos marinheiros de Kronstadt em 1921. Essa base naval, situada numa ilha no golfo da Finlândia, a pouco mais de 30 quilômetros de Petrogrado, tinha uma tradição revolucionária notável, que já se manifestara durante o ano de 1917. De fato, o soviete de Kronstadt, onde a influência anarquista e SR era importante, se caracterizara pela sua independência e radicalismo. Os bolcheviques contaram com eles como um dos seus esteios, mas entre outubro de 17 e março de 21, abrira-se uma brecha entre os anseios dos marinheiros radicais de Kronstadt e a “comissariocracia” bolchevique. O levante ocorre numa situação de grande tensão social, de que dão prova as greves sucessivas de operários em Petrogrado, com os quais os revoltosos estavam em contato (muitos deles tinham também assistido às violências do poder no campo). Os marinheiros da base, incluindo as tripulações de alguns navios de guerra se revoltaram exigindo uma série de medidas de ordem econômica e política, entre as quais a liberdade de mudar de emprego, de cultivar livremente a terra (sem trabalho assalariado), a formação de cooperativas, o fim das brigadas militares de trabalho, a liberdade para os partidos – de esquerda – e sindicatos, e principalmente a realização de eleições livres para o soviete (eles não são favoráveis à recondução da Assembleia Constituinte). O movimento que passou para a história como o grande ato de resistência de esquerda à ditatura “comunista” instituída em outubro de 1917, foi esmagado, depois de tentativas infrutíferas, pela tropa oficial comandada por Tukhachevski. Trotski instou os revoltosos a se renderem, pois, se não o fizessem, “seriam liquidados como pardais”. A repressão foi brutal, centenas de execuções, em geral sem julgamento. Os demais foram enviados a prisões ou ao campo de concentração de Solovki.7 Ao esmagamento da revolta de Kronstadt segue-se a repressão dos camponeses, em Tambov. O mesmo Tukachevski emprega aviões e gazes asfixiantes contra as populações camponesas. A revolta, que não foi a única rebelião camponesa (a de Makhno, que termina em 1921 ficou muito mais conhecida) provocou umas 15 mil mortes e a deportação de uns 100 mil camponeses.

VI. Repressão e guerra civil

Muito se falou sobre a relação entre a repressão bolchevista e a guerra civil. Na versão oficial (stalinista ou trotskista), os bolcheviques teriam sido obrigados a reprimir por força da situação, principalmente por causa da mobilização militar das forças contrarrevolucionárias e das intervenções estrangeiras. Isso é essencialmente falso. Sem dúvida, é difícil dizer exatamente quando começou a guerra civil. De certo modo, ela começa logo depois do golpe de outubro, com as escaramuças em Petrogrado e a resistência de mais peso em Moscou, além da batalha que os cossacos travam em Pulkovo, nas imediações de Petrogrado, em 30 de outubro. Mas todos esses episódios terminam com a vitória do novo poder, de tal modo que Lênin poderá declarar, pouco tempo depois, que a guerra civil havia terminado. É verdade que vai se organizando no sul uma força de resistência, o Exército de Voluntários, mas ela é neutralizada, e só vai representar um real perigo no verão de 1917. Um episódio curioso que marca o que poderíamos considerar como o início da “guerra civil efetiva” foi a mobilização antibolchevique de uma tropa considerável, de algumas dezenas de milhares de membros, constituída por soldados tchecos, em grande parte ex-prisioneiros de guerra do exército russo. Os tchecos haviam obtido autorização do governo bolchevique para se dirigir a um porto que acabou sendo o da longínqua Vladivostock, na Sibéria, para, de lá, rumar para Europa, e se juntar às forças da Entente. Um incidente de certa importância, mais uma declaração desastrosa de Trotski provocou um levante dessas tropas, que iriam se unir a um governo que se formara em Samara, por iniciativa dos SR, governo que contava, entre outros, com ex-deputados da Constituinte que o poder bolchevique liquidara. Começa então uma guerra civil, de considerável amplitude, que ameaça os vitoriosos de outubro.
Porém, seria impossível afirmar que a repressão dependeu disso, porque, como vimos, ela começou muito antes, logo depois da tomada do poder. Não houve relação causal entre os dois fatos, e se pode dizer até mais que isso. Um autor americano Allan Wildman, autor de estudos sobre questões militares no ano de 1917, afirmou que em vez de afirmar que a guerra civil provocou a repressão, seria melhor e mais verdadeiro dizer que a repressão provocou a guerra civil. De fato, a política notoriamente repressiva do governo de Lênin e Trotski, se não provocou, pelo menos acirrou consideravelmente a oposição entre os dois campos, e foi virtualmente responsável pelo desencadear da guerra civil (Lênin não só não temia a guerra civil, mas provavelmente a desejava). Quanto à intervenção militar, valem os mesmos argumentos de ordem cronológica. A acrescentar que o primeiro desembarque de tropas estrangeiras (os ingleses, em Murmansk), se fez com o acordo do governo revolucionário que temia um avanço alemão. Mais tarde houve sim intervenção de várias potências (Grã-Bretanha, França, Estados-Unidos, Japão), mas ela ocorre depois que a política repressiva dos leninistas já tinha dado todas as suas provas (a acrescentar que, embora real, a intervenção estrangeira foi mais ou menos limitada, em virtude das divergência e da desorientação das potências “imperialistas”).


VII. Interregno crítico sobre dois autores

Entre os autores publicados no Brasil, em 2017, comemorando o centenário do outubro russo, vou me ocupar de dois, para desenvolver algumas considerações críticas, antes de concluir. Trata-se de autores de estilo e formação muito diferente: uma autora de origem australiana e um brasileiro.
A Revolução Russa, de Sheila Fitzpatrick, que a editora Todaviaacaba de publicar, é obra de uma eminente historiadora, que lecionou em Chicago e assinou vários livros importantes sobre a Rússia.
Há algo que me incomoda nesse volume, cujos méritos, deixo claro, são evidentes. Eu diria, simplificando, que é a visão de conjunto da chamada “revolução de Outubro” que tem a autora; se se preferir, a filosofia da história que ela professa e que subjaz às suas análises propriamente históricas. Que filosofia da história é essa? Para dizer em duas palavras, Sheila Fitzpatrick tende a ler o objeto singular “revolução russa” (ou como quer que se o chame) sobre o fundo – ou talvez mais do que sobre o fundo – de um objeto universal chamado “revolução”. A primeira aparece com uma certa frequência e intensidade como que à maneira de uma instância da última. Poder-se-ia pensar que essa tendência se justifica, já que a “revolução russa” é, em princípio pelo menos, um caso singular do universal “revolução”. Entretanto, as coisas são mais complicadas. Há aí certa dificuldade. Diria, de um modo que pode parecer injusto (isso porque a autora, e mais de uma vez, compara revoluções, mas o efeito dessas comparações é ambíguo), que cada revolução é uma, e melhor ainda, que a chamada “revolução russa” é, certamente, um caso muito especial. É a razão pela qual, creio eu, pensá-la muito no registro do “destino das revoluções”, implica o risco de produzir um achatamento analítico nefasto. É assim que, em mais de um momento do seu livro, mas principalmente no início, ela se refere ao ritmo das revoluções, à “febre” revolucionária que sobe e desce, à perda de impulso ou à sua retomada pelos revolucionários, e outras coisas que tais. Esse tipo de consideração deve frequentemente a uma literatura consagrada ao fenômeno revolucionário em geral. Ora, pelo menos para um caso tão anômalo – a meu ver – como o do Outubro russo, esse procedimento, em vez de ajudar a compreender o seu objeto, pode obscurecê-lo. Assim, ela escreve (devo fazer uma longa citação, os grifos são meus, salvo os nomes próprios): “Em sua Anatomia das revoluções, Crane Brinton sugeriu que as revoluções têm um ciclo de vida que atravessa fases de crescente fervor e zelo pela transformação radical até atingir um clímax de intensidade, seguido pela fase “termidoriana” de desilusão, declínio de energia revolucionária e movimentos graduais rumo à restauração da ordem e à estabilidade. Os bolcheviques “temiam uma degeneração termidoriana” [o que é exato, RF] no momento em que foram obrigados a fazer um “recuo estratégico” com a “introdução da Nova Politica Econômica (NEP) em 1921”. Mas “no final dos anos 1920, a Rússia se viu imersa em outra turbulência – a ‘revolução de cima’ de Stálin, associada com o impulso industrializante do Primeiro Plano Quinquenal, a coletivização da agricultura e uma “Revolução Cultural” dirigida (...) contra a velha intelligentsia – cujo impacto (...) foi ainda maior que o das revoluções de fevereiro e outubro (...) e o da Guerra Civil (...) só quando essa turbulência termina (...) sinais de um Térmidor clássico podem ser percebidos, enfraquecimento do fervor e da beligerância revolucionária, novas diretrizes destinadas à restauração da ordem e da estabilidade (...)”. Porém “numa derradeira convulsão interna, ainda mais devastadora que os surtos anteriores de terror revolucionário, os Grandes Expurgos de 1937-38 eliminaram muitos dos velhos revolucionários (...) efetuaram uma mudança (...) de pessoal no seio das elites (...) e mandaram mais de um milhão de pessoas para a morte ou para a prisão no Gulag”.8
O que me parece perturbador nesse texto é que ele se constrói em torno da ideia geral de “fervor” ou de “turbulência” revolucionária (junto com o seu oposto, a “restauração da ordem e da estabilidade”). Mas nos perguntamos se conceitos como “fervor” e “turbulência” (e em geral o esquema da “febre” que sobe e desce) mesmo se como ponto de partida da apresentação, teriam força, eu não diria explicativa, mas mesmo descritiva, para dar conta dos fenômenos que eles pretendem subsumir, a saber: 1) A revolução de fevereiro; 2) O golpe de outubro; 3) A guerra civil entre vermelhos e brancos, depois entre vermelhos e “verdes”; 4) A coletivização forçada e o genocídio dos camponeses pela política stalinista; 5) A liquidação dos velhos bolcheviques e de grandes contingentes da população civil em processos políticos delirantes. Estou convencido de que, mesmo como uma introdução ao tratamento propriamente substantivo do seu objeto (e, salvo erro, aquele registro paira como uma sombra sobre toda a obra), esse tipo de consideração é contraproducente, porque introduz inevitavelmente não um mas dois efeitos negativos: primeiro, o de apagar, em alguma medida, as diferenças que existem entre esses cinco fenômenos, diferenças que não são pequenas e, em segundo lugar, o de pensá-los sobre o fundo de uma quase essência das revoluções, cujo protótipo seria dado, sem dúvida, pela Revolução Francesa. Como resultado, não se tem apenas o risco de um déficit de originalidade na descrição e análise daqueles eventos históricos, mas também um provável enfraquecimento da atitude crítica diante deles. De fato, assim tratado, o objeto aparece finalmente como alguma coisa, digamos, já conhecida, e duplamente conhecida, primeiro através da história passada (o modelo da Revolução Francesa), e depois através da experiência cotidiana: de fato, não há nada aparentemente mais claro e evidente do que o fenômeno do “entusiasmo”, “do fervor”, junto com o seu contrário, o esfriamento e a perda de entusiasmo.
Para não prolongar muito esse texto, limito-me a mencionar só mais um topos, estemetodológico, que está muito presente no inicio do livro, e tem alguma afinidade com o anterior: a ideia de que ainda é “cedo” para julgar aqueles fenômenos. Esse tipo de prudência metodológica introduz uma carga considerável de relativismo. Relativismo que se combina com a ideia oposta – para o longo prazo –, a de que vamos entender bem o fenômeno quando tivermos uma suficiente distância temporal em relação a ele. Que tal supor que é cedo demais para entender o nazismo? Seria razoável supor que só o tempo nos permitirá uma boa aproximação da verdadeira essência do nazismo? (Dir-se-á que o stalinismo não é idêntico ao nazismo, o que é um fato, mas em alguns dos seus aspectos – pense-se, por exemplo, nos campos de além círculo ártico, descritos por Shalamov – o stalinismo não ficou muito longe dele). De resto, poder-se-ia observar que em 1918, no decorrer do primeiro ano do poder bolchevista, já se tem um livro muito interessante sobre o seu significado e fundamentos: A ditadura do proletariado, de Karl Kautsky.
O segundo autor é o historiador brasileiro Daniel Aarão Reis, de quem a Cia das Letras publicou, também, no ano do centenário, um livro intitulado A revolução que mudou o mundo, Rússia, 1917. Daniel Aarão Reis é autor de outros livros sobre o mesmo tema. Quero comentar este seu último livro, considerando também entrevistas suas, em particular uma entrevista que ele deu ao Globo,em 30 de setembro do mesmo ano,e ainda intervenções que fez em um colóquio (o colóquio promovido pelo departamento de russo da FFLCH da USP, em junho de 2017).
O último livro de D. A. Reis tem certamente um aspecto crítico. Este lado parece ser mesmo mais desenvolvido do que o que se encontra em um livro anterior do mesmo autor, As revoluções russas e o socialismo soviético.9 De fato, se, por exemplo, em As revoluções russas..., ele já toma uma posição simpática em relação à revolta de Kronstadt, e se nele já se encontra também o tema do “golpe ou revolução”, o livro de 2017 parece ampliar o tratamento que dá aos dois temas e em boa medida reforçar o lado crítico. Assim, A revolução que mudou o mundo... tem uma posição não ambígua em relação à revolta de Kronstadt, que o autor considera como um movimento autenticamente revolucionário, e dedica um tópico à mencionada alternativa interpretativa.
Mas antes de desenvolver o que, apesar de tudo, parece-me ser insuficiente no livro, diria que as intervenções orais de Daniel A. Reis em colóquio,10 e também a entrevista que ele deu ao Globo, decepcionam-me um pouco: imputação de “liberal“ à leitura não ortodoxa de 1917, uma visão muito simplista, e de (enganoso) senso comum, sobre o “ciclo” das revoluções, um uso perigoso da “história social” que, ao contrário do que ocorre com os autores a que ele se refere, “engole” a história política e serve para escamotear o trabalho crítico, além da tentativa de justificar o golpe de outubro pela afirmação de que a alternativa seria a vitória da extrema-direita (tese falsa, já que a alternativa mais provável, em outubro de 1917 era a de um governo dos sovietes).
Mas o próprio livro de Daniel Aarão Reis não me convence inteiramente. Pode parecer “dogmatismo antidogmático”. Porém, apesar do verniz heterodoxo que a obra exibe, bem examinado, ele aparece (para mim, pelo menos) como um bom exemplo do que talvez se pudesse chamar de “crítica reformista ao leninismo” (“reformista” não tem aqui nenhuma conotação histórica, quero dizer apenas que a crítica que oferece o livro não ameaça os alicerces do leninismo).
O autor introduz a pergunta, que já se tornou clássica, houve revolução ou houve golpe?, e opta pela resposta que dá o historiador Marc Ferro, a de que houve as duas coisas.11 Mas, como já vimos, até aí morreu Neves (não comprometo com isso o trabalho do historiador M. Ferro, que assume uma posição afinal muito crítica): a questão não é saber se houve ou não houve manobra militar (golpe) – o próprio Trotski o assevera à sua maneira. O problema é o de saber se houve golpe contra a revolução, e, caso a resposta vier a ser positiva, o de determinar em que medida esse golpe contra a revolução determinou o processo, tanto naquele momento, como mais tarde. Daniel Aarão Reis dá certamente alguns passos nesse sentido. Assim, ao comentar a atitude de Lênin em 1917, observa que, para Lênin, é o partido e não o soviete que tem legitimidade para falar em nome da revolução: “Evidenciam-se ai as raízes de um pensamento antidemocrático e golpista, de fundas tradições, e que teria grande futuro ao longo do século XX”. E alguns parágrafos mais adiante: “Nas dobras da revolução, ainda temporariamente submergidos por seu movimento avassalador, já espreitam o autoritarismo antidemocrático e a ditadura política”.12
Essas passagens não bastariam para afirmar o caráter crítico do livro de Daniel A. Reis? Seria demais pedir que ele fosse mais longe do que efetivamente foi? Minha resposta é negativa. Senão vejamos. Entre as duas citações, pode-se ler: ‘‘Todavia não há dúvida de que em outubro ocorreu uma revolução. As profundas transformações revolucionárias consagradas pelos decretos aprovados do II Congresso (paz e terra) e pelos que vieram depois (controle operário, direito à secessão etc) certamente mudaram a face da história daquela sociedade”. Desse modo, embora se desfazendo de algum lastro, o discurso de Daniel Aarão Reis não escapa do universo da literatura historiográfica ortodoxa que celebra “a revolução que mudou o mundo”. Há ai duas dificuldades que, de certo modo, se completam. A primeira: essas mudanças foram efetivas? Certo, a Finlândia logo iria se separar da Rússia, e depois de uma guerra civil terrível permanecerá independente. Mas a Finlândia é um caso. Será preciso examinar o conjunto. Quanto ao controle operário, ele é desde logo neutralizado pela intrusão do Estado que se autodenomina “proletário”. De tal modo que se poderia dizer (é a segunda dificuldade, ou, preferindo, a segunda vertente da dificuldade): é verdade que houve mudança. Não se voltou ao statu quo ante. Surgiu certamente uma constelação social nova. Mas o novo foi algo melhor? Ou algo pior? O pensamento progressista dominante não conhece a palavra “regressão”. Ela está ausente do seu léxico.
O tom geral da análise a que procede o historiador é o dos críticos moderados do leninismo, do início do “degelo”.13 A questão tem, aliás, dois aspectos: primeiro, que diagnóstico se deve fazer da insurreição bolchevista de 1917? E, depois, qual o balanço a fazer do conjunto da experiência russa e comunista em geral? A resposta de Reis à primeira pergunta é: houve revolução mas ela continha, em suas “dobras”, “entrelaçamentos” (não determinantes) de golpe... A minha resposta é outra: houve golpe sobre o fundo de uma revolução (como escreve Werth), ou, houve golpe na esteira de uma revolução. Parece sutil, mas essas últimas formulações são muito diferentes das do autor, e, principalmente têm outras implicações politicas. Porém creio que, para além dessas fórmulas, a melhor formulação seria a que mobiliza a diferença dialética entre pressuposição e posição (não em sentido lógico usual; no interior da dialética, a diferença remete, respectivamente, a algo como uma realidade “fraca” e uma realidade “forte”). Eu diria: em outubro, houve revolução pressuposta egolpe posto. Essas categorias dialéticas dão plenamente conta da complexidade real e lógica do que aconteceu. (Depois de girar bastante, buscando uma formulação rigorosa do evento, dei-me conta de que ela residia precisamente na distinção dialética entre o pressuposto e o posto, da qual me ocupei muitas vezes – observe-se que o pressuposto é algo como uma auréola sombria envolvendo o posto –, e que está no centro da lógica dialética, bem interpretada).
Até aqui, no que se refere aos acontecimentos de outubro de 1917. E para o futuro? O diagnóstico histórico que faz o autor, no tópico sobre “golpe ou revolução” e nas páginas finais do livro, parece-me ser o de um balanço globalmente positivo. No final, ele indica dois argumentos, sem dúvida, como possíveis instrumentos de legitimação: a ajuda que o campo “soviético” teria prestado ao movimento de descolonização; e os efeitos supostamente benéficos do impacto produzido, junto aos governos ocidentais pela chamada experiência “soviética”. Em mais de uma ocasião (inclusive naquela que evoquei acima) eu mesmo indiquei – como advogado do diabo – esses dois argumentos e mais um terceiro, como justificativas históricas possíveis do “comunismo de caserna”. No desenvolvimento final desse texto, vou me ocupar de novo – e agora desenvolvendo a crítica – dos três argumentos. Por ora, acrescento duas ordens de observações a respeito do livro de Daniel A. Reis. Uma, de caráter mais empírico é a de que, se o resumo que o autor oferece da Rússia dos vinte e poucos primeiros anos do século passado, e em particular dos processos revolucionários, é relativamente rico, há, nele, algumas omissões de certa gravidade. Dessas omissões, uma se situa na descrição que ele faz da primeira sessão do IIº Congresso dos Sovietes, episódio em cuja significação não é necessário insistir. Ao narrar esse episódio, Daniel Aarão Reis omite a famosa resposta que Trotski deu à segunda intervenção de Martov, na qual ele envia ao “lixo da história” tanto os moderados mencheviques e sociais-revolucionários que haviam se retirado do congresso, como o internacionalista Martov, que não havia abandonado a sessão.14 E, como vimos, essa reação de Trotski não foi uma tirada de interesse meramente retórico, foi, pelo contrário, um ato de grande significação, do qual, se poderia dizer – já que o autor gosta da fórmula – que ele decidiu o curso da história do mundo. Lembremos também o que segue, a exclamação premonitória de Martov, ao deixar a sessão – adianto que o seu interlocutor era um jovem operário bolchevique, Ivan Akulov, que desapareceria nos grandes expurgos stalinistas dos anos 1930 15 –: “um dia vocês se darão conta do crime de que estão participando”.
Outra omissão do livro de Daniel A. Reis se refere à Assembleia Constituinte. Assim, lê-se a propósito do que ocorreu depois da dispersão da Assembleia Constituinte: “A maioria dos constituintes, evidentemente, protestou, no entanto não houve força para organizar nenhum movimento social expressivo a favor da sua manutenção”.16 Sem dúvida, imediatamente depois da dissolução da Assembleia não houve reação expressiva. O problema é que houve antes. E o autor não fala disso (talvez não a considere expressiva). Houve, aliás não uma mas duas manifestações – há dúvidas sobre o número exato de participantes, em todo caso, algumas dezenas de milhares –; e o que é mais importante, a segunda delas foi recebida a bala pelo poder “soviético”, do que resultaram 21 mortos, segundo uma declaração oficial (Sverdlov). Daniel Aarão Reis também não se refere, ou muito pouco, à repressão contra os sovietes, e às fraudes e mutretas na preparação dos congressos (ele deve saber disso, entretanto, enquanto leitor de Alexandre Rabinowitch, historiador que, diga-se de passagem, faz menos “história social” do que “história sociopolítica” – o que é um pouco diferente – e que, bem lido, aparece como muito mais crítico do leninismo do que supõem os neoleninistas 17 ).
Para completar esse ponto, no livro de D.A. Reis não há referência ao muito importante movimento da Assembleia Extraordinária de Representantes das Fábricas de Usinas de Petrogrado (1918) (conforme os autores, também chamada pelo acrônimo inglês de EAD, ou como “assembleia de plenipotenciários”) – no entender do historiador Orlando Figes, “de longe, a ameaça mais importante que os bolcheviques sofreram por parte da classe operária”.18 . Como escrevi acima, esse movimento criava um novo órgão de representação operária, numa situação em que os sovietes já haviam sido mais ou menos neutralizados pelo poder. Observe-se que as três omissões se referem ao período que vai do golpe de outubro ao momento que representa, propriamente, o início da guerra civil. Isso é sintomático. A análise desse período é o calcanhar de Aquiles do livro de D.A. Reis. Como para ele, o mediador da inflexão burocrática e totalitária é a guerra civil, tudo o que aconteceu antes dela há de ser mais ou menos escamoteado. Werth observa, a contrário, que até junho de 18, já tinha havido mais de mil execuções. E a máquina repressiva estava montada, tendo no seu centro a política política. Detalhes? De detalhe em detalhe, o quadro global se modifica.
Mas, além dos problemas da narrativa, há uma passagem que mostra insuficiências na perspectiva global. O historiador escreve, nas considerações finais (numa passagem que, é verdade, tem tonalidade crítica):

Ao longo do século XIX, as propostas socialistas (...) combinavam-se com os princípios democráticos. Nem todos os democratas eram socialistas, mas todos os socialistas eram democratas. O socialismo era considerado por seus adeptos o regime que iria aprofundar necessariamente os valores democráticos num nível que o capitalismo era incapaz de empreender.19

Será? Em todos os casos? É verdade que havia muitos democratas na esquerda, e que o nome genérico dela era mesmo “democracia”. Mas, e a vertente mais fanática do anarquismo, como também uma parte do movimento populista russo (pense-se em alguns autores e ativistas que Lênin apreciava)? O próprio Marx – sem confundir marxismo e leninismo – não era propriamente um democrata, e, mesmo se se discute sobre o real conteúdo da sua “ditadura do proletariado”, o seu projeto se aproximava sim da suspensão pelo menos provisória dos direitos democráticos (na realidade, nos autores e homens políticos que defendiam tal tipo de projeto, tratava-se de suspensão provisória, e, além disso, atingindo somente as ex-classes dominantes; mas esse “provisório” – como já se sabia no século XIX – “poderia” virar definitivo, e a restrição do seu âmbito vir a ser levantada). Como o autor parece datar a deriva antidemocrática do segundo semestre de 1918 e do início dos anos 1920, seria preciso lembrar o ethos de Que Fazer? e de Um passo à frente dois atrás, os dois panfletos que Lênin publica no início do século XX. A democracia não é certamente a sua “xícara de chá”. Há aí um problema fundamental. De qualquer forma, não creio que o livro de Daniel A. Reis seja uma pedra no sapato de leninistas e trotskistas. Eles aceitarão certamente a revelação dos “entrelaçamentos” e das “derivas autoritárias” do movimento. Com esse tipo de crítica – que avança até certo ponto, não nego, mas só até certo ponto – eles perdem os anéis, mas salvam os dedos. Uma salvação que, nas condições atuais, é certamente um mau negócio para o movimento socialista.

VIII. Conclusão: a tragédia de outubro

1. A chamada Revolução Russa de outubro de 1917 foi, na realidade, um golpe de Estado, mas “um golpe de Estado que teve como pano de fundo uma vasta revolução multiforme e autônoma” (Nicolas Werth). Essa fórmula crítica toma distância tanto em relação à tese liberal de que houve simplesmente um golpe, como relativamente à explicação oficial ou “marxista” que mobiliza a ideia de revolução proletária. Ou, mais rigorosamente – em linguagem dialética – em outubro houve golpe posto e revolução pressuposta. Se é assim, estamos diante de um fenômeno histórico um pouco especial, por muito que a “ambiguidade” das revoluções não seja um fenômeno novo. Porém. aqui não se trata de uma revolução que não realizou plenamente os seus objetivos, nem de uma revolução que foi freada e anulada por uma reação “termidoriana”. A chamada revolução russa de 1917 é imediatamente uma estátua de Janus, uma imagem com duas faces – mas duas faces que não têm o mesmo peso. Ela não é apenas revolução e golpe de Estado, mas revolução com golpe contrarrevolucionário sui generis no momento mesmo da revolução.
Em si mesmo o evento de outubro foi muito pouca coisa, uns 25 ou 30 mil homens mobilizados, não mais, para uma população de operários e soldados 25 maior. (Em fevereiro, pelo menos a metade da população operária de Petrogrado entra em greve, e pelo menos um quarto sai à rua).20 Como assinala Pipes, à sua maneira, pequenos acontecimentos históricos – porém, atenção, o “pano de fundo” pressuposto não era pequeno – podem ter consequências imensas. Na história não vale o adágio adotado pela filosofia clássica de que deve haver tanta realidade na causa como no efeito. Uma pequena causa pode ter efeitos enormes, ainda que se deva insistir no fato de que, se a mobilização efetiva em outubro constituiu um pequeno evento, o back ground era de outra ordem.
Não há dúvida de que a tomada do poder pelos bolcheviques veio mudar a face do mundo. Contudo, o problema é o de saber o que significou essa mudança. Mudança não é a mesma coisa que progresso. Há regressões históricas.

2. Do leninismo, o regime descamba progressivamente ao stalinismo (com muitas peripécias, em primeiro lugar o interregno da Nova Política Econômica). De certo modo, passa-se de Robespierre a Gengis Khan. Não vou entrar nos detalhes desse processo, que comentei alhures. Limito-me a dizer que, sem dúvida, há descontinuidades entre leninismo e stalinismo, mas há também muitas linhas de continuidade: repressão, campos, ausência de liberdade. E Lênin fez a cama de Stálin, nomeando-o para o cargo criado ad hoc de secretário geral, mesmo se, no final, parece ter-se arrependido disso...
Porém, tudo somado, o balanço do leninismo-stalinismo teria sido, apesar dos pesares, positivo? Ou, menos do que isto, teria havido um lado positivo no resultado? Seria preciso comparar o bolchevismo não com o tzarismo, mas com as alternativas possíveis a ele que se gestavam nas forças de oposição ao ancien regime.
Frequentemente, os adeptos da tese do “balanço positivo” costumam aduzir algumas razões, que mereceriam ser discutidas. Essas razões são principalmente três: a ajuda que a Rússia leninista-stalinista teria dado à revolução colonial; o papel “intimidador” que teria tido o “campo soviético”, isto é o grau de pressão que esse campo implicitamente teria exercido sobre os países capitalistas, levando-os a fazer concessões às massas populares; o papel da URSS na guerra contra o nazismo. Entramos em discussões de história contrafactual, mas é errado supor que, observadas certas exigências, a história contrafactual não possa ter razoável rigor.

a) Sobre o primeiro ponto, seria a considerar o fato de que provavelmente a luta colonial, de uma forma ou de outra viria a ser vitoriosa. A acrescentar que, no caso da África (mesmo se não no da Ásia), os americanos tinham posições críticas em relação aos velhos imperialismos, e não facilitaram, no último período, a política colonial. Também a refletir o lado bastante manipulativo que sempre teve a política russa em relação àquelas lutas, como foi o caso também em outros contextos. Mais grave do que isso: o peso da política soviética transformava movimentos de libertação nacional em projeto de governo burocrático-totalitário. Pense-se no exemplo do Vietnã e também no do Camboja.
b) Quanto à pressão implícita do “comunismo” sobre os governos capitalistas levando-os a uma maior souplesse diante das reivindicações populares, ela foi real. Mas ela foi compensada, amplamente compensada, creio, por tudo o que representou de negativo para o movimento socialista a figura de um Estado dito revolucionário e comunista, em que ocorriam coisas tão graves como a ausência de liberdade, o terror de Estado, e, o pior de tudo, o genocídio. Sem acreditar que o exemplo negativo do projeto bolchevique explicaria por si só a atração que exerceu sobe a classe média o extremismo de direita, é um fato – fato do passado mas também dos dias de hoje – que os horrores do poder leninista-stalinista reforçaram aquela atração. A acrescentar o lado negativo do impacto que teve o leninismo-stalinismo na luta sindical e também na luta política, no ocidente.
c) Quanto ao papel que teve a URSS na luta contra o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, trata-se de um argumento que, à primeira vista, poderia parecer sólido (creio que o historiador Eric Hobsbawn o utilizou). De fato, o potencial que ela adquirira com a industrialização, mesmo se à custa de grandes sacrifícios, permitiu que enfrentasse com êxito o invasor nazista (a vitória do nazismo teria sido, certamente, a pior entre as piores coisas que poderiam ocorrer para o mundo). Porém, a questão não se põe exatamente assim. Uma industrialização de outro estilo – pelo menos sem terror e sem genocídio – seria possível. E é preciso não esquecer o que havia de negativo, mesmo do ponto de vista estritamente econômico, nos métodos brutais da industrialização russa dos anos 1930. Um processo menos brutal poderia significar maior eficácia e rendimento. Por outro lado, há que considerar que a política de Stálin (mais ou menos inseparável do conjunto do seu projeto) quase levou a uma derrota catastrófica logo após o ataque – não previsto por ele – da URSS pela Alemanha. A política oportunista de alianças sem escrúpulos característica do poder stalinista – além da liquidação brutal, nos processos, de alguns dos seus melhores oficiais – revelou-se o contrário de uma tática astuta (felizmente, Stálin teve em seguida os chamados “quatro anos de lucidez”, dando, ao contrário de Hitler, suficiente autonomia aos seus generais). Mas, insistindo: a conjunção de violência e progresso técnico a que assistimos teria sido, tudo somado, preferível a um processo pacífico e revolucionariamente democrático ainda que conduzindo a uma sociedade, em alguma medida, menos fortemente industrializada? De modo geral, concluindo e reforçando o argumento, eu lembraria que não se deve perder de vista o fato que, se tivesse havido na Rússia um governo de esquerda revolucionária democrática (era essa a alternativa em outubro de 1917, não a de um governo de extrema-direita, como se pretendeu), o destino da Europa e do mundo teria sido certamente diferente. Acho até legítimo perguntar – aqui me refiro a algo diferente da simples ausência de um mau exemplo – se o modelo internacional de uma Rússia revolucionária com sovietes democráticos não teria permitido frear a emergência do nazismo.

3. Assim, feitas as contas, o caminho que tomou o mundo por causa do impacto do bolchevismo foi o da intensificação da opressão e também da exploração, com seu cortejo de sofrimentos e injustiças, e o de uma grande desmoralização – queiramos ou não – do socialismo e da esquerda em geral; o que vale, cem anos depois, também para países como o Brasil. Mas, principalmente, repito, aquele caminho desembocou no genocídio. Somando o massacre russo dos anos 1930, e o chinês, do meio do século, o custo em vidas humanas foi mais ou menos de 40 milhões, vidas de camponeses, principalmente. Deveríamos dizer que tudo isso foi “necessário”, senão justificável, pelos motivos apontados? É, certamente, uma aposta demasiado arriscada porque fundada em razões de ordem histórica ou contra-histórica, demasiado frágeis. Analisadas mais de perto, elas se revelam inaptas a legitimar a tese um pouco monstruosa, convenhamos, de que a humanidade teria feito um bom negócio entrando na rota do lenininismo e do stalinismo.
Pensa-se às vezes a insurreição de outubro como o final de um ciclo revolucionário (vimos um exemplo dessa leitura) ou o ápice dele, ciclo que teria começado em 1905. Há simplificação nesse esquema, pelas razões indicadas: outubro não é “mais” revolução do que Fevereiro é “menos”. Porém, se considerarmos não aquilo que realmente se efetivou mas as virtualidades ou o “pano de fundo”, haveria alguma justificação para uma leitura dessa ordem. Outubro prometia uma revolução social que, em termos de emancipação – é isso o essencial – iria muito além da de fevereiro. Mas dado o que ocorreu, a ideia de um ciclo crescente de revoluções teria de ser duplicado por um outro ciclo. Como chamá-lo? Ciclo de “involuções”, ciclo de regressão?
Na realidade, existe aí um problema semântico. O termo “revolução” ou révolution (em francês ou inglês), pode ser lido, por um lado, como conotando um grande movimento popular que iria no sentido da emancipação; mas ele comporta também uma outra conotação, esta não “axiológica”: “revolução” como bouleversement, como “terremoto” social, sem indicar progresso, e podendo mesmo sinalizar o contrário dele. Talvez se pudesse fazer uma tripla distinção semântica: guardar uma expressão do tipo “terremoto social” (ou empregar eventualmente o francês bouleversement) para a descrição neutra do abalo social; denominar “revolução” o bouleversement de sentido emancipador suposto; e nominar o terremoto de sentido regressivo suposto, com uma palavra como “involução” (mas necessitaríamos aqui ou de uma inflexão semântica desse último termo, ou de um neologismo derivado, para vinculá-lo a um evento, como é o caso, em geral, do seu simétrico positivo).
Se, de fato, segundo as suas virtualidades teria havido um crescendo das revoluções emancipadoras, houve ao mesmo tempo um crescendo de um processo de “involução”, o que não remete a uma sequência contrarrevolucionário em sentido clássico mas a uma inversão sui generis, no centro do qual está um neojacobinismo. O neojacobinismo (no sentido terrorista e autocrático) acompanha como uma sombra o desenvolvimento da ideia revolucionária, do século XVIII ao XX, mesmo se esse acompanhamento não tenha sido contínuo. O bolchevismo, em sua forma leninista, representa precisamente o relançar desse projeto “involutivo”, a revolução como igualitarismo autocrático, projeto que instaura, no plano da história global, algo como uma história pendular. Ganha-se aparentemente em igualdade, e perde-se em liberdade. Constitui-se assim, uma espécie de história pendular, que é, na realidade, uma modalidade de uma história cíclica: sai-se de uma forma de exploração/ opressão para voltar a ela, sob uma outra forma. É portanto inútil insistir sobre as conquistas imediatas de outubro: controle operário, revolução emancipatória no campo etc, como fazem alguns. Elas seriam revertidas em poucos meses, senão em algumas semanas. Ou antes, e mais rigorosamente: o lado negante não desaparecerá (isto é, a liquidação do ancien régime não será “revogada”);mas o que se introduziu no lugar do que se negou não foi uma sociedade emancipada, mas uma nova formação social correspondente a um outro tipo de exploração e opressão. O outubro russo deve ser visto como a confluência do ciclo da revolução com o ciclo da regressão neojacobina. Mas é essa última que domina, é ela que está posta. Já no curto prazo. E a fortiori no longo.


setembro/ dezembro de 2017.

 

           

 

 

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ


1 Sobre a revolução de Fevereiro, ler o clássico, Tsuyoshi Hasegawa, The February Revolution: Petrograd, 1917, Seattle e Londres, University of
Washington Press,1981.

2 Ver, entre outros textos, Nicolas Werth, Les Révolutions russes, Paris, PUF, Que sais-je?, 2017.

3 Os principais partidos políticos russos em fevereiro de 1917 eram o partido bolchevique, cujo lider era Lênin, e o partido menchevique, cujo principal lider era Iuri Martov (mas Martov representava a ala esquerda do partido, dita internacionalista). Esses dois partidos haviam nascido do Partido Social-Deocrata Russo, de inspiração marxista, explicando-se a cisão, entre outras razões, por divergências quanto ao grau de centralismo que deveria ter a organização (os bolcheviques eram radicalmente centralistas). Havia ainda o Partido Socialista Revolucionário (SR), partido de base originariamente camponesa que provinha dos antigos populistas (narodniki) movimento que tinha um setor terrorista, e que chegara até a assassinar um Tzar, no século XIX, e se cindiria, no final de 1917, em dois partidos, os SR de direita, e os SR de esquerda, esses últimos, durante algum tempo, aliados dos bolcheviques.

4 Pierre Dardot, Christian laval, L‘Ombre d‘Octobre, la révolution russe et le spectre des soviets, Montréal, Lux Éditeur (impresso na França), 2017, p. 60.

5 Ver Vladimir N. Brovkin, The Mensheviks after October, Socialist Opposition and the Rise of the Bolshevik Dictatorship, Ithaca e Londes, Cornell University Press, 1987.

6 Essa posição tinha razões que a sustentavam – antes de mais nada, o fato de que o tratado era notoriamente desequilibrado, em detrimento da Rússia –, mas havia, também argumentos importantes contra ela, em primeiro lugar, o das dificuldades práticas de uma retomada da guerra.

7 Ver a respeito, e em geral sobre a insurreição de Kronstadt, Paul Avrich, La Tragédie de Cronstadt, 1921, Princeton University Press, 1970, trad. franesa, Seuil, 1976.

8 Sheila Fitzpatrick, A Revolução Russa, tradução de José Geraldo Couto, São Paulo, Todavia, 2017, pp. 9 e 10.

9 São Paulo, Unesp, 2003.

10 Advirto o leitor de que essas intervenções se fizeram em parte em resposta a intervenções do próprio autor dessas linhas, também presente ao Colóquio. Se me permito prolongar aqui aquela discussão é: 1) porque ela foi objetiva e de caráter histórico (mesmo se ela teve, e não poderia deixar de ter, implicações políticas); e 2) porque os argumentos mais radicais do historiador surgiram numa intervenção final (aquela com a qual, segundo o encaminhamento, se encerrava o debate), o que deixou fora da discussão muitos pontos importantes.

11 Ver, a proposito, Marc Ferro, 1917, les hommes de la révolution, temoignages et documents, Paris, Omnibus, 2011, e também a sua clássica La Révolution de 1917, Paris, Aubier, (2 vls), 1967 e 1976.

12 Daniel Aarão Reis, A Revolução que mudou o mundo, Rússia, 1917, São Paulo, Companhia das Letras, 2017, pp. 108 e 109.

13 Não posso analisar aqui, em detalhe, o que vale a ideia de “desbolchevizar“ ou “desleninizar“ o movimento de Outubro, ideia que D.A. Reis defende na entrevista ao Globo, a que me referi, e que se pode reconhecer também como “fundo“ do seu livro. Essa ideia representa uma tentativa de retomar a leitura do processo que propõe o historiador russo B. Kolonitskii, também presente à discussão. Kolonittskii quer por em dúvida a importância do papel – para mim, essencialmente negativo, bem entendido, por que vai no sentido da inflexão burocrática-autoritária, mas papel de qualquer modo efetivo, para melhor ou para pior – que teve Lênin no processo que leva à tomada do poder pelos bolcheviques. A denegação é duvidosa, e ela vai na contramão do que afirma um grande número de bons historiadores (e não só gente pertencente “aos extremos“, como pretende Kolonitskii). Nesse sentido, deve-se dizer que a tese defendida por D.A. Reis de que o golpe, embora existente, não foi “determinante“ (!) (ver a entrevista ao Globo) é absolutamente insustentável. – O resultado dessa pretensa “desleninilação“ ou “desbolchevização“ de Outubro - o leitor deve ter-se dado conta – é paradoxalmente o de inocentar em essência o bolchevismo, e assumir, não sem uma critica adjetiva, é verdade, o legado dele.

14 Houve duas intervenções de Martov, uma antes e outra depois da saída da direita menchevique e social-revolucionária. Daniel Aarão Reis confunde as duas (“encaixa” uma na outra), o que em si mesmo não teria muita importância, se esse imbróglio não ajudasse a ocultar o momento decisivo desse episódio: a intervenção de Trotski, em resposta a Martov. Assim, escreve Reis: “Julius Martov, representante dos mencheviques internacionalistas (...) propôs uma comissão interpartidária para negociar um novo governo, formado por todos os partidos socialistas, fórmula de consenso para ‘evitar a guerra civil“. (Se a referência à guerra civil é da primeira intervenção [ou pelo menos já está na primeira intervenção] anterior à saída dos moderados, a proposta de comissão se refere à segunda, posterior à saída deles). O texto continua: “A proposta [da formação de uma comissão, RF] foi aprovada por unanimidade“. Não. O que obteve unanimidade (por aclamação) foi a primeira moção, que apenas pedia um governo plural. Segue o texto: “Entretanto, a ideia de suspender os trabalhos até que a comissão chegasse a bons resultados não prosperou, o que levou Martov e os mencheviques internacionalistas a se retirarem também do Congresso“ . Agora, o autor retoma a segunda intervenção. Esta de fato “não prosperou“, mas não prosperou porque foi “afogada“ pela intervenção de Trotski. Ora, sobre esta última – sem dúvida, o momento crucial do episódio – D. A. Reis não diz uma palavra.

15 Ver Israel Getzler, Martov, a political biographu of a russian social democrat, Melbourne, Cambridgne University Press, Melbourne University Press 1967, p. 163.

16 Daniel Aarão Reis, A Revolução que mudou o mundo, Rússia, 1917, op. cit., p. 117.

17 Ver as obras, muito importantes, de Alexandre Rabinowitch, em particular, The Bolcheviks Come to Power: The Revoution of 1917 in Petrograd, New York, Norton, 1976.

18 Orlando Figes, A People‘s Tragedy, the russian revolution 1891-1924, Londres, Pimlico, 1996, p. 624.

19 Daniel Aarão Reis, A Revolução que mudou o mundo, Rússia, 1917, op. cit., p. 190.

20 Ver Hasegawa, op. cit., p. 247, e Figes, op. cit., p 309. Figes escreve que, no dia 25, “mais ou menos 200.000 operários aderem às manifestações”, o que daria uma porcentagem da ordem de 40 ou 50% em relação à população operária total da cidade.