revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO
Ilustrações: Rafael SILVARES

Poemas

 

 


 

 

1. Canção da Parada do Lucas
(peça trocada, Manuel Bandeira)

Parada do Lukacs
- O trem não parou

Nada aconteceu
Senão a lembrança
da consciência atribuida
que o tempo engoliu.

(outubro, 2014)

 

2. Melancolia de judeu nissei

floresta de Paranapiacaba nos jardins da casa de Vila Buarque
criadas de uniforme, crianças de babador, no colo,
calça e suspensório, gravata, camisa com colarinho, sem paletó
a classe média imigrante na floresta doméstica de Paranapiacaba;

muitas coisas virão em seguida, guerras, revoluções
os pequenos crescerão, os adultos envelhecerão e morrerão,
o novo mundo será outro, não mais novo
os filhos não terão mais sotaque, a família imigrante será, quase,
família tradicional brasileira;

melancolia da primeira geração indígena
que viu morrer os que vieram de longe,
e cuja própria morte espreitam
os filhos e os netos. 

Afinal, quem somos ? figuras da transição ?
faremos novas viagens
 rumo a novas diásporas ?
Seremos um dia, outra vez,
família tradicional de um povo estranho ?

Melancolia da primeira geração
que sobrevive entre cicatrizes;
 a fala, sem sotaque,
 - mas com as marcas ancestrais da grande viagem -
dos primeiros filhos da  terra.

(16-19/setembro/2015)

 

3.  Zestos, I : Amores impossíveis

“Si tu veux être heureux, ne cueille pas la rose...”  (Henri de Régnier)
“Quando perderes o gosto humilde da tristeza. (...) quando a tua tristeza não for mais que amargura“ (Manuel Bandeira)

   
 

Se queres ser feliz,
colha
        a rosa,
a rosa não colhida
é perigosa; 

se não podes colher,
deixa a rosa;

a rosa é espinho.

Amores impossiveis,
o gosto humilde da tristeza:

bebe, na pétala,
o zesto triste;

amarga, na rama,
a rosa.

(27/fevereiro/2013   a  6/dezembro/2014)

 

 

4. Zestos, II:  Há uma gota de sangue...      

 “... Há uma gota de sangue em cada poema. Relí-o há dias (...). Fiquei assombrado! Francamente: considero uma merda aquilo: só encontrei 3 versos que prenunciavam você. Não é exgero, te juro. Só 3 versos.“ (Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, de 19 de setembro de 1925) 1.

 

“Você não me magoou nem um poucadinho com a opinião sobre o Há uma gota“ (Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 7 de outubro de 1925) 2  “O que faço questão é que você não se esqueça duma expressão inefável que você empregou duas vezes em duas cartas diferentes sobre o meu passadismo: um ruim esquisito. Não posso me lembrar dessa expressão de você sem rir gostoso. É tão verdadeira! Sabe? quando releio coisas passadistas minhas, tenho a impressão do Mário de Andrade qui fui na casa dos vinte“ (Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 18 de outubro de 1925). 3

 

   
 

Há uma gota de sangue
             em cada poema.


Há um zesto de poesia
em sangue, esparso:
poesia ruim
   - ruim esquisito;

como o amargo do alcaçuz,
como a doçura da estévia,

como um bolero de Maria Grever
irrompendo no eter,
   no hall noturno de outrora;

não há traços de sangue
   - asseguram -
na Vereda Tropical.

 

(7-16/11/2013)

 

 

5. O trem e o tempo 

São Paulo Railway
Rua Major Sertório

A agonia trágica do telefone fixo.

 

(setembro 2015/ abril 2016)

 

    
    

 









fevereiro #

9



1
Correspondência MA/MB, (Org.) Marcos Antonio de Moraes, Edusp, 2000, p. 241.

2
Correspondência MA/MB, op. cit., p. 245.

3
Correspondência MA/MB, op. cit., p. 250.