revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alberto MARTINS
Ilustração: Luiz Cláudio MUBARAC

LASCAS

 


[o artista e seu tempo]

Quando finalmente encontrou um rumo próprio e seu trabalho começou a ser reconhecido, os dentes da história já mordiam em outro lugar. A arte pela qual ele tanto lutara já não era uma luta, mas um jogo — matreiro, intrincado. E para seu infinito azar ele se tornou um exímio jogador. Não entendeu que o trabalho de arte é como água de moinho: quando está no alto tem que despencar.

 

[um revolucionário]

Para ele a luta política é a mais alta forma de vida — e a arte, apenas outra forma de discurso. Quanto se perde ao pensar assim, ele jamais compreenderá.

 

 [um homem de letras que perdeu o rumo]

Conversando com um homem de letras que perdeu o rumo, percebi o quanto ele abdicou da própria vida em favor de um ódio que sequer lhe pertence: foi-lhe insuflado. Para ele, literatura é acumulação, produção incessante de citações. Que existe para descascar o coração das coisas — ele não desconfia.
 

[leitor de Brecht]

Se um artista permanece só e seu trabalho não tem compradores — isso significa que deve ser afastado? Se um artista trabalha com afinco e por anos a fio resolve problemas que verdadeiramente lhe interessam — só por isso merece ser ouvido?

 

[o contrário de um virtuose]

Fica cada vez mais pobre, esquece os truques e, quando os redescobre, duram muito pouco. Sabe que para o seu caso não há solução em vista — e troca de pele porque não pode trocar de ossos.

 

[quando os donos não conhecem as máquinas]

Quem de fato sabe como funciona a máquina de corte é quem trabalha com ela. Quem pode dizer até que ponto a faca vai ferir ou deixar de ferir o metal é quem trabalha com ela. O dono controla pedidos e pagamentos, ordena prioridades. Mas ele não sabe como funciona a máquina de corte nem do que a máquina é capaz.

 

[um pintor]

Só agora que estou velho abri mão da perfeição. Os pequenos detalhes de acabamento deixo para depois — e depois nunca chega. Como tenho pressa, sou obrigado a viver no presente.

 

[o santo]

Se fosse um bicho seria um cavalo: tem algo da passada larga e da envergadura de um equino. Tem também um freio e uma espora — invisíveis, incontroláveis. Como os cavalos, possui um sexto sentido para o Mal. Não descansará nunca.

 

[do desenho]

“Diante do objeto, o único modo possível é o afrontamento”. Em seguida, voltando-se para aqueles que o observavam, perguntou: “Que é o afrontamento?”. Como não houve resposta, prosseguiu: “Afrontamento é estar face a face. Só assim é possível perceber o outro. Só assim é possível desenhar o aberto”.

 

[certas perguntas]

Por que levar adiante esta nova série de gravuras — se é custoso imprimi-las, há pouco dinheiro em caixa e dá trabalho abrir espaço para que outra imagem, outra imagem e outra imagem possam nascer? Certas perguntas não merecem ser respondidas.

 

    
    

 









fevereiro #

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