revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

José SZWAKO

O fascismo contemporâneo brasileiro ou o mundo segundo o conservadorismo

 


Pós-escrito

“Je suis coxinha” foi o título da primeira versão deste texto, apresentada em 2015 no evento “Jornadas de junho... 2 anos depois”. De lá pra cá, depois de arrefecer em agosto do ano passado, o vulto golpista tomou fôlego instilado pela combinação entre terror midiático e populismo judicial. Essa apresentação ao texto não devia soar como um réquiem, mas a semana iniciada em 18 de março não autoriza mais do que um epitáfio. Seja qual for o rumo tomado, com ou sem anomia nas ruas, com ou sem golpe institucional, com ou sem o protagonismo das esquerdas pró-democracia, o estrago já foi feito e o esboço de um contrato social democrata, destruído.
Já o diagnóstico da subjetividade fascista ganhou, infelizmente, força. Leitores e colegas contemporizam: “uma multidão desse tamanho todo pode ser taxada de fascista?”. Sim e não. Sim, porque fascista é aquilo que não consegue reconhecer e que não quer reconhecer a divisão, o conflito e o conflito institucionalizado. As futuras análises empíricas poderão corroborar ou desvalidar a hipótese, mas, desde já, nota-se que, na visão tosca, não há nem deveria haver esquerda, centro ou direita, muito pelo contrário - “estou aqui pelo Brasil!”, diz o/a parente fascistoide. Sim e também não: apenas uma fração aí é fascista - tanto pior, porque a exceção nas instituições e na sociedade é hoje naturalizada, midiatizada, “negociada”.
Há um golpe em curso. Se é difícil dar-lhe um adjetivo adequado, não dizê-lo vigente seria sórdido. Em outras longitudes, ali ao lado, o neogolpe levou subtexto de gênero. Aqui, a pauta é dada pelo racismo de classe à brasileira - a cada neogolpe corresponde sua turba neocidadã, raivosa, danificada... Boa leitura e boa sorte.

Escrito

A foto em família não podia faltar. Faz uma fila, arruma a camiseta, sorri pra câmera, ajeita as crianças e todo mundo diz: “xis!”. É o sorriso da vitória. Poderia ser uma tarde normal de domingo, com direito a passeio no shopping pra depois voltar e juntar a família toda no sofá para o programa Fantástico, mas, aquele domingo “foi inesquecível”. Na Vieira Souto, na Paulista, ou em qualquer lugar público visitável deste país, transpirava a multidão pulsante, as máscaras, as cores, os cartazes, as piadas, o carro de som do Movimento Brasil Livre (MBL) - tudo muito lindo, uma suposta aula de cidadania na autointitulada “maior manifestação da história do Brasil”. As crianças adoraram. Quando tocou o hino lembrou a Copa. “Que emoção”: todo mundo de verde e amarelo, o “povo” mostrou afinal “quem manda neste país”. “Não aguentamos mais essa pouca vergonha, essa roubalheira”. No carro de som com o símbolo do Revoltados online, a faixa em preto e branco dizia “chega à corrupção!”. Na foto, ficou bonito o “fora PT”, em outra camiseta era o “fora Dillma” (sic) que também dividiu espaço na estampa com os signos da reação.
Depois da foto familiar veio a selfie. É o fetiche, lugar comum, das massas que se apropriaram da rua como seu palco em março, em abril e, com menos fôlego, em agosto - massa cada vez menor, mais elitizada, pura mesmo, e mais virulenta também. A surpresa maior foi que a selfie não teve tantas curtidas quanto a fotografia dos policiais. Não só dos policiais: teve também foto com cachorro, com tanque, com a guarda municipal... Forças repressivas? Ora, repressão é pra quem precisa levar um corretivo. Em depoimento gravado e eivado de lágrimas, uma mulher diz: “Perdão às forças armadas, [perdão] por tacharem vocês de criminosos, ditadores... Eu vivi no regime militar, não fui presa, não fui exilada”. Noutro vídeo, vê-se uma mulher transtornada que se desculpa envolta num lenço verde e amarelo; na foto, o colorido civil contrasta com o tom cinzento das forças repressivas e o mal-estar se disfarça num abraço meio próximo meio distante com o policial; no quase sorriso do policial, o desconforto se desfaz momentaneamente ao receber uma rosa. Mas não se engane, não se trata de uma versão brasileira de Marc Riboud testemunhando a luta pelo fim da guerra do Vietnã ao som de All we need is love. Tudo o que eles querem e precisam é tânatos... “intervenção militar já!” - é isso que se lê nos cartazes e nas mentes Brasil afora. A rosa é fake.
O MBL editou um vídeo da suposta “maior manifestação” do país. À abertura, um “15 de março” em amarelo brilha contra o fundo preto. A câmera começa a filmagem apontando para os pés, para o chão, como quem argumenta “isso aqui vem das bases”, vem do “povo”, signo central aí em disputa. O apelo é sonoro. As vibrações de um coração que tocam bem ao começo dão vez a uma multidão ensandecida gritando um desritmado “o PT roubou”, repetido à exaustão em abril e agosto. O plano de tela se fecha para, sob uma batuta de tom policialesco, reabrir com tomadas panorâmicas posteriormente repetidas à exaustão na mídia hegemônica, nova e velha. Esses panoramas, ao mesmo tempo em parecem querer emprestar legitimidade ao “impeachment”, têm que dividir o espetáculo com uma ciclovia avermelhada então em construção na Avenida Paulista.
Essas descrições de cenas, imagens e slides trazem evidências daquilo que chamo de “fascismo brasileiro contemporâneo”, evidências retiradas, por sua vez, dos protestos encarnados por simples “coxinhas” e liderados por contramovimentos que formam um gradiente cujos matizes são de difícil discernimento: do pouco golpista ao golpista tout court. Isso significa que, apesar de compartilharem uma mentalidade, as pessoas e coletividades engajadas no protesto verde e amarelo não estão igualmente convencidas, por exemplo, da queda presidencial ou da necessidade de intervenção militar. Há, então, nuances internas ao discurso conservador, no interior do qual destaco a fração organizada e organizável mais propriamente reacionária.
Importa, então, destacar a volumosa produção imagética e audiovisual das principais protagonistas a partir da mobilização conservadora, sejam as massas desorganizadas ou as lideranças desses movimentos de naipe conservador ou propriamente reacionário. O que querem essas pessoas? Quais argumentos e sentimentos as mobilizam? E, de modo mais fundamental: o que faz deste estilo de mobilização um protesto fascista? É adequado chamá-los assim?
Respondo essas questões inspirado por quem teorizou sobre o nazi-fascismo e sobreviveu a ele: Max Horkheimer e, mais especialmente, Theodor Adorno. A partir deles, trata-se de inquerir as bases psicossociais do protesto canarinho. De inspiração frankfurtiana, a análise passa quase que necessariamente pela apropriação crítica de termos psicanalíticos negligenciados pelas análises de conflitos e movimentos sociais. Trata-se, pois, de uma sociologia de política das emoções, dos sentimentos e ressentimentos em jogo, na qual ganham relevo noções como desejo, pulsão e libido. Aproveito ainda a análise crítica do fascismo brasileiro de outrora, aproximando o integralismo passado a este neofascismo.

Visão de mundo tosca entre os toscos

Se a edição do vídeo do Movimento Brasil Livre tem o apelo de um filme de ação de gosto duvidoso, a sequência dos discursos de suas lideranças, que aparecem em cima de um carro de som aos berros num microfone lembrando uma performance sindicalista, tenta reproduzir um mito fundador brasileiro: discursa o negro, discursa o branco, discursa o mestiço. Isso já foi um mito, hoje mal passa de clichê. Enquanto essa edição veicula uma versão simplificada do mito das três raças no Brasil, as falas e cartazes expostos no vídeo e nas fotografias reproduzem uma simplificação moral do país: o Brasil está dividido entre o bem e o mal. O conteúdo do discurso que abre o vídeo do MBL é peremptório: “O PT veio há anos dividindo a sociedade; [entre] ricos e pobres; [entre] negros e brancos”.
Nessa visão de mundo, tudo seria muito simples, muito infantil, em uma palavra, é tudo muito estereotipado. No delírio verde e amarelo, mocinho veste camisa da seleção, bandido veste vermelho; bom é o Brasil e mal é o PT. Segundo uma liderança do MBL, esse partido não teria feito senão “separar o povo brasileiro”. Sem divisões, uma coisa imaginada e totalitária, incapaz de reconhecer as divisões que organizam a sociedade e a política brasileiras. Uma forma variada dessa incapacidade de reconhecimento foi observada por F. Santos logo no ciclo de protestos iniciado em 2013. Em meio a outros grupos envolvidos no conflito, ele identificava “neonazistas e fascistas assumidos, adeptos da violência e da intolerância como meios legítimos de manifestação e expressão de preferências e valores”. No rodapé, porém, ele foi mais tímido: “uso os termos ‘fascismo’ e ‘protofascismo’ de maneira assumidamente pouco rigorosa. Com eles, quero designar uma atitude política autoritária cuja essência consiste em não reconhecer a pluralidade de interesses e opiniões existentes na sociedade como algo legítimo” (nota 2).
Esse insight de Santos pode, a meu ver, ser corretamente estendido à ideologia de atores situados no polo oposto ao dos chamados black blocs, polo no qual estão os representantes da Ordem brasileira. Quer dizer, estes últimos sofrem de uma limitação grave de pluralismo, tanto quanto tentam se valer dela. Sua visão de mundo, e não a dos black blocs, deseja impor limites à variedade de interesses e valores legítimos entre nós.
Essa visão tosca de mundo encerra aquilo que Adorno chama de estereotipia, traço central da “personalidade autoritária” (Cf. Adorno, 1965): nessa visão de mundo, não existem divisões, pois afinal nós seríamos “um só povo, uma só nação” e antes (de 2015?) o “povo não estava na rua”.  As cores do protesto não deixam dúvidas: é à Nação que se presta homenagem e se rende contas. É sobre Ela, um país imaginado e imaginário, mas ‘em crise’, que fantasiam cartazes e manifestantes. “Eu sou brasileiro... com muito orgulho... amor...” - chorus. Quem fica de fora ou dentro da circunscrição discursiva dessa nação é evidente. Dentro: “pessoas de bem”, “do lado do Bem”, “gente de família” e (pasme) “gente que teve pai”. E, fora: “petista”, “comunista”, “petralha”, “gente de esquerda” e - um manifestante à beira do surto psicótico, falando para uma câmera, insistiu - “todo petista, só criado pela mãe!”. Sim, exatamente nesse nível.
Interessante como a evocação de uma Nação não se faz, tal como no nazi-fascismo, via apelos (linguistificados) raciais. Mesmo sem esse apelo, a limitada variação na composição racial do protesto é sintomática e ocupa o âmago do conservadorismo: “Eu sou negro”, lê-se em um cartaz isolado, “Estou aqui. Contra Dilma”. Em outro vídeo, o descompasso entre pessoas racial e socialmente distantes explicita o mal-estar: enquanto dá seu depoimento meio incongruente a um repórter, o garoto negro é interrompido por uma senhora branca, que atravessa dizendo “por que você não entrevista um adulto? Vai entrevistar criança?”. Ao que o garoto responde: “Eu tenho 23 anos”.
Preto ou branco ou mulato, para o conservadorismo, não importa! “Uma só Nação”, “todo mundo contra a corrupção”. Em outros vídeos difundidos pela rede, cuja gravidade dos casos demandaria uma análise mais psiquiátrica do que psicológica, é possível escutar em tom visivelmente emocionado: “eu sou brasileiro, eu tenho honra, eu uso a bandeira”. Uma liderança no carro de som também invoca um “Nós, os brasileiros” e ao dizê-lo projeta um par que dá conteúdo inovador ao antagonismo imaginado entre o bem e o mal: trata-se do par povo/elite. No delírio das massas e para as massas, a “maior oposição do Brasil” corresponde ao POVO BRASILEIRO - letras garrafais no vídeo. Já a “elite”, no conservadorismo nativo, pode significar classe política, elite política ou, mais simplesmente, “PT”, isto é, “elite vermelha”. “Elite”, porém, nunca coincide com quem está tomando posição, enunciando seja no cartaz seja na fala discursada; quem fala sempre está, é claro, ao lado do “povo”, que estaria sendo, segundo o chiste no cartaz da esquerda, “desrespeitado”.
Outro traço psicológico marcante da personalidade autoritária é seu desejo de submissão à autoridade. Com efeito, ela permite esclarecer o que é distintivo do uso do termo “autoritário” na teoria crítica. Ao contrário de boa parte do pensamento do século XX, o termo não diz respeito a regimes políticos sem competição e informação livres; não se trata, portanto, de política institucional. Autoritarismo designa, antes, uma introjeção exagerada do superego como componente interno e controlador do ego. Daí que se possa falar, por exemplo, de família autoritária. Central nesse argumento é adesão a figuras de autoridade e ordem que se anexam a um ego frágil e desfigurado, que não apenas se submete a figuras de poder, como tira prazer da identificação, real ou imaginária, com elas.
Nesta acepção específica do termo, o autoritarismo como desejo fica patente nas imagens e nos discursos, seja no carro de som seja diante das câmeras: a mais simples frase precisa é dita em tom de guerra, a garganta não aguenta os berros ensandecidos e dedos em riste não faltam para o deleite das massas. Daí, então, tentando satisfazer exigências superegóicas de rigidez e retidão, uma possível explicação fenomenológica das demandas por militarismo e mais militarização. Ao dedo em riste do duce corresponde uma postura corporal enrijecida de quem deseja, com a mão no coração para cantar o hino e virado pra um poste, submeter-se a algum símbolo de poder.
É neste sentido que a descrição de abertura deste ensaio ganha sentido. Além da foto com a família, a selfie com policiais também foi imagem incansavelmente postada, compartilhada e curtida. Interessante notar que sequer se trata de figuras de poder. Aqui são figuras de força física que servem de objeto de admiração. Essa intimidade com a força ganha versão mais triste no sem fim de depoimentos saudosos dos tempos de nosso último governo militar. Em tom raivoso, uma pessoa dá um depoimento que virou um triste lugar comum no Brasil de hoje: “Eu vivi durante o regime militar, me comportava e nada aconteceu comigo”. Essa máxima, nostálgica de uma ordem repressiva, é reproduzida incansavelmente nas redes e nas gravações. Esse desejo de ordem aparece ainda naquele outro depoimento psicologizado: “Daí essa baderna... se você não tem relacionamento com seu pai, você não tem respeito por autoridade. O petista é um cara bastardo” - aplausos irrompem.
Esse é o integralismo repaginado. A ideologia da Nação não inova propriamente ao negar o pluralismo e querer prescindir das divisões sociais, querendo fazer esquecer as pistas e forças sociais que trazem à tona qualquer vestígio de divisão nacional ou de reconfiguração das suas fundações. Por outra: mais do que imaginada, essa Grande Nação desejada é “como uma reunião de famílias” (Chauí, 50), estas são contíguas àquela, que, ontem como hoje, só inclui “gente do bem”. É “a família brasileira contra o comunismo”; “Deus proteja o Brasil” e proteja também as criancinhas de seus pais e avós fascistas.
 
Antipetismo como antissemitismo - o mundo é dos paranoicos

Se a submissão à autoridade e a redução do mundo a uma estereotipia tosca dão acesso à subjetividade da massa canarinho, outra psicodinâmica clara da reação conservadora está em sua paranoia. Adorno e Horkheimer observam que o primeiro passo cognitivo do antissemitismo é inventar seu inimigo. Esse inimigo criado, “os judeus” como uma só e única coisa, é uma totalidade criada pelo nazismo, em termos psicanalíticos, uma projeção nazista. Essa invenção opera como uma forma de defesa contra um suposto perigo, um perigo fantasiado encarnado em um “inimigo imaginário”. De forma alguma isso é exclusividade alemã: uma norte-americana entrevistada na pesquisa coletiva de Adorno chega a sustentar que, “com o tempo, os judeus chegarão a governar o país, goste-se ou não”.
No caso brasileiro, a paranoia delirante fomentada sistematicamente pela mídia hegemônica e por atores políticos de oposição elegeu como pária o Partido dos Trabalhadores. O “fora PT”, assim como o “fora-Dilma-e-leve-o-PT-junto”, nem de longe lembram os “fora FHC” e “fora FMI” de outrora. Não são uma forma um pouco mais apaixonada de oposição político-ideológica, oposição normal, saudável e mesmo necessária a qualquer democracia. O desejo instalado e instilado aí é de aniquilação: o “fora PT” quer o fim do PT. Disso dão provas os cartazes e depoimentos para quem quiser ver e ouvir. A culpa é das estrelas - bela ironia da pesquisa e do material audiovisual produzido pela equipe de Mara Telles da UFMG, cujos resultados não surpreendem propriamente e mostram que 90% dos entrevistados no protesto conservador de abril concordam total ou parcialmente com a frase “o PT faz um grande mal para o país”. Ora, colocada nesses termos, a pesquisa de opinião fere a lógica da opinião da fração mais reacionária do conservadorismo que não fez, como não faz, questão de disfarçar seus racismos. A questão para o conservador extremado, para quem tem orgulho dos seus preconceitos, não é o que se faz ou o que se deixa de fazer, não é se o PT faz muito ou pouco mal para o país. Para essa choldra, o PT não faz mal, ele é o mal encarnado - assim como o “judeu” do antissemita - cuja solução é só uma, o seu fim.
Nas visões delirantes, adjetivos e países são imagética e discursivamente anexados, em tom avermelhado, ao redor de “PT”. “A nossa bandeira jamais será vermelha” - tenta a coro. Os termos são paranoides e a repetição fornece uma ilusória segurança: o “PT” imaginado e criado como inimigo - leia-se: Dilma, Lula e toda essa petralhada e essa falta de vergonha - é o mal. O perigo, a ameaça, o escondido, ou seja, a fantasia é constante. Aos prantos, uma mulher segue seu depoimento: “O que é Foro de SP? E o Congresso do PT? Eu li na íntegra o que vocês vão fazer com a gente, eu não vou permitir. Eu tenho nojo de vocês. Não me ameacem. Eu tenho honra”. Esse delírio só perde em dramaticidade para casos de visivelmente psiquiátricos. Segundo um rapaz transtornado: “Esses caras que estão no poder são tudo comunista. Enquanto eles não virem nós de escravos deles, eles não vão parar... eles têm um plano de poder, entendeu inocente?”. Inúmeros vídeos reproduzem essa mesma lógica: a perseguição e a conspiração, ao menos fora dos textos e da boca de ideólogos que tentam racionalizar esse conteúdo, dão o tom. “Você já sabe”; “todo mundo sabe”; “a imprensa também sabe”; “eles estão aí”; e “estão financiados”; “cuidado!” - o fascismo, sintetizou Adorno, é a ditadura de quem tem mania persecutória. Isso piora ainda mais quando matrizes discursivas se cruzam: “Nós não vamos permitir que destruam a família brasileira! Não admitimos gayzismo”.
A repetição paranoica não cessa. Ela não é coerente ao mesmo tempo em que sofre de excesso de coerência. Tudo é um grande “plano”, por trás do qual está o inimigo criado e imaginado: o PT chegou ao poder, tornando-se, na fala de uma liderança no carro de som na Paulista, um “governo golpista” que “roubou nosso dinheiro, roubou nossas esperanças; acima de tudo, rouba nossa liberdade”. É a síndrome de poder. Paranoia aí sobra, mas as coisas se complicam um pouco mais quando ela não é fomentada só pela mídia e pela oposição partidária. Cartazes moralizantes pretendem denunciar “a podridão deste governo”, vermelho e ateu, e moralistas lutam pelo fim da corrupção. Esses casos de corrupção, inseparáveis de seus usos midiáticos, desempenham uma função perversa no delírio, pois o paranoico encontra uma pista real e imaginária de que não está delirando; como disse o sociopata: “entendeu inocente?”. Na verdade, a turba delirante pelo fim da corrupção decreta o fim da luta pelo fim da corrupção.
Nisso também o fascismo contemporâneo é análogo ao integralismo. A evocação de imagens e figuras de crise é incessante: crise econômica, crise de emprego, crise moral, crise política... Tudo é crise. E se a realidade contradiz essas imagens, basta um “apesar da crise” para mantê-la viva nos corações e mentes. Mas por que incessante? Porque ela mobiliza subjetivamente e, seguindo mais uma vez Chauí, instaura um sentimento de “perigo” cuja solução é dar “ordem” - golpe, intervenção, impeachment ou outro nome - a uma realidade supostamente “em crise”.

Hora da diversão

A foto familiar e a selfie com policiais dividiram espaço na timeline. Domingão: dia de protesto ou de tomar um chopp? “Ordem e pró-seco” - hilário. “Não se esqueça de levar a bandeira do nosso país. Vamos ensinar para as crianças o que é cidadania”. Imagem bonita e grotesca: a família brasileira unida no e pelo gozo conservador, refém dele. “Que tal um passeio de moto? Que passeio que nada, hoje eu quero é micareta” - e já tem nome: carnacoxinha. Que coisa gozada, uma micareta para celebrar a aniquilação do meu inimigo imaginário: “PT nunca mais!”.
Que o protesto conservador assuma uma feição de consumo cultural administrado é algo patente. A perspicácia de um site explicita e ironiza a lógica de diversão implicada na reação: “protesto ou copa?”. O sorriso maquiado aí não convence, mas ele se repete e se impõe, invadindo as fotos. Isso é o máximo de espontaneidade que se consegue da felicidade compulsória. Há tempos, como se sabe, a indústria cultural se incumbiu de organizar o prazer e abolir a experiência, o sentido e a metáfora do mundo da vida. Os vídeos dos protestos poderiam, alternativamente, denotar algo infantil no comportamento, uma experiência menor: pula, corre, brinca, grita, sorri, tira foto, grita, esperneia... Seria algo infantil e infantilizado não fosse o grau de agressividade veiculado pela avalanche de chistes misógenos e anticomunistas.
Os momentos reificados de prazer providos pela indústria cultural nunca foram uma alternativa ao sofrimento do trabalho. No domingo temos que escolher entre: passeio em família ou com amigos, shopping ou chopp, a moto ou de carro, copa ou protesto? Muitas opções, mas nenhuma delas é um descanso da vida danificada, essas opções não são alternativas reais ao trabalho; tudo isso é a industrialização do ressentimento introjetado em quem não tem alternativa. Dizem-se os verdadeiros “trabalhadores”, porque quem se opõe à sua ideologia ou protesta durante a semana é “vagabundo”. Filha da indústria cultural, essa felicidade compulsória não é uma alternativa ao massacre semanal do trabalho; tal como os programas de auditório e os reality shows (Viana, 2013), a morte da experiência vivida no protesto é uma continuação do massacre do dia a dia.
Esse ressentimento cobra seu preço. Como notaram Adorno e Horkheimer, habita uma hostilidade na indústria cultural; ela é hostil a tudo aquilo que não é ela, a tudo que não é o mesmo, a repetição. A felicidade compulsória do conservadorismo também é assim. Qualquer pista da realidade que contradiga a gargalhada organizada precisa ser extinta: basta ter uma opinião dissidente ou uma camiseta vermelha para ser alvo de linchamentos verbais à espera do desaviso policial para passar à ação. É assim, por exemplo, que uma turba irracional se autoriza a xingar em alto e bom tom, e com orgulho notório, uma mulher que passa e contesta. Se a realidade não foi convidada para a festa da massa, quem dirá o diferente. “As etiquetas são coladas”, dizem Adorno e Horkheimer, “ou se é amigo ou inimigo” - bem e mal, divisão de mundo tosca e estereotipada, na qual o inimigo deve ser aniquilado.

 

Enfim, coxinhas

Resumindo alguns traços psicológicos do nosso fascismo, é possível notar que sua estrutura básica de personalidade, além de reduzir o mundo a um maniqueísmo fundado no par povo/elite, tenta satisfazer demandas intensas e internas de controle se remetendo a objetos de autoridade e força. Nota-se também que o mal absoluto projetado sobre o petismo delira e tem afinidade evidente com o nazismo e seu desejo antissemita de aniquilação. Nota-se, por fim, que a lógica de diversão expressa nas fotos dos protestos dá vazão à subjetividade conservadora denotando seu recalque ressentido e hostil.
Certamente, do ponto de vista categorial e entendidos como lógicas político-institucionais, os conceitos não se confundem: autoritarismo não é militarismo e tampouco conservadorismo, assim como nazi-fascismo não é sinônimo de integralismo - isso, porém, do ponto de vista conceitual. O que importa, para nós, é outra coisa: o ponto de vista nativo, dessa experiência subjetiva e seus pilares: estereotipia, paranoia e agressividade.
Qual é, porém, o estatuto dessa libido fascista, o que ela deseja? As pistas audiovisuais mostram que a realidade não lhes é de todo desconhecida, essas pistas percorrem um discurso nativo em nada psicótico. Uma mulher preocupada com sua pátria e com sua honra se vitimiza em vídeo: “Me chamam de golpista, eu: uma dona de casa, golpista e criminosa”. Uma liderança da reação não hesita, dizendo aos berros que: “O PT diz que a gente é golpista, o PT diz que a gente é fascista, mas os fascistas são eles, golpistas são eles”. Depois de estereotipar a realidade, o conhecimento conservador identifica o inimigo petista com o abjeto: o fascismo seria, também ele, petista.
Se, de um lado, existem casos claramente psiquiátricos nos quais a negociação entre ego e superego chegou a cabo, há casos, de outro lado, que apresentam uma personalidade, por assim dizer, neuroticamente normal. O problema da normalidade, neste caso, coxinha é que se trata de pessoas, estimuladas midiática e subjetivamente, capazes de se sentirem e se dizerem “francamente democráticas” com seus desejos e sonhos de extermínio. Disso dá provas o survey de Mara Telles, cujos resultados mostram uma opinião, coxinha, que defende que justiça é justiça divina e que gente rica e não nordestina, além de supostamente mais informada, seria politicamente mais capaz! Tudo isso com um sorriso amarelo estampado no rosto e sentindo-se bárbaro defensor da “democracia”.
A forma de autoidentificação coxinha e os movimentos de massa que inspiram essa subjetividade são demandas por reestabilização de um mundo imaginado e perdido: falta ordem, falta polícia, falta autoridade - sobram demandas superegoicas insatisfeitas. Por outro lado, esses quase sujeitos se querem livres, o nome do movimento o diz: “Brasil livre”. Mas livre de quê? À primeira vista, tratar-se-ia de um país livre de esquerdismo, de petismo, de comunismo ou livre de corrupção... Nada disso.
O que a turba quer não é só isso; enquanto se submete a figuras de autoridade, ela é masoquista. Porém, é e quer mais que isso. Sádica, a turba insana quer reinar, quer, pelo fim do superego, decretar o fim das responsabilidades internas impostas pelo controle; quer falta de juízo e de julgamento para poder humilhar figuras públicas ou não, submetê-las a linchamentos sob pretexto de “liberdade de expressão”; quer poder matar comunista “como e porque comunista” (Derrida, 1994); a turba raivosa quer poder andar livremente com armas; quer não ser responsabilizada pela ofensa, pelo fomento do ódio e pelas práticas de extermínio contra as diferenças; tudo isso, é evidente, sem que seja constrangida por seus atos - afinal, o convicto, seja ele patológico ou normal ou tratado, já sabe de antemão: ele está do lado certo, do bem, da verdade e da certeza... O conservador conhece a realidade, embora queira abdicar dela. Ele tem noção das acusações de fascista que recaem sobre ele, mas se quer desprovido de consciência moral e, portanto, quer distância da responsabilidade sobre os efeitos de sua ação. Sua libido fascista deseja mais e mais superego e, simultaneamente, a ausência dele.
A tarefa da crítica nunca está pronta, mas ela não se omite diante da pulsão de morte organizada e leva a sério o peso dos sentimentos e ressentimentos à raiz da mobilização. Contra desejos capturados e maquiados, cabe a nós encontrar e criticar as fissuras nos cantos e reencantos ainda restantes do mundo da vida, nos cabe, como disse Derrida, aprender a viver e fazer aprender a viver.

 

Referências

ADORNO, T. et al. La Personalidad autoritaria. Buenos Aires: Proyección, 1965.
ADORNO, T. & M. HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio: Zahar, 2006.
CHAUÍ, M.. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In. Ideologia e mobilização popular, Rio de Janeiro: CEDEC/Paz e Terra, 1978.
DERRIDA, J. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
SANTOS, F. Do protesto ao plebiscito: uma avaliação crítica da atual conjuntura brasileira. Novos Estudos - CEBRAP, São Paulo, n. 96, p. 15-25, 2013.
TELLES, H. O que os protestos trazem de novo para a política brasileira? In. Em Debate, Belo Horizonte, v.7, n. 2, p. 7-14, 2015.
VIANA, S. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013.

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ