revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Memórias do subdesenvolvimento

 


     
 

Umas das coisas que mais me desconcertam é a incapacidade das pessoas em manter um sentimento, uma ideia, sem se dispersar. Elena demonstrou ser totalmente inconsequente. Pura alteração, como diria Ortega. O que sentia ontem nada tem a ver com o seu estado de ânimo atual. Não relaciona as coisas. Esse é um dos sinais do subdesenvolvimento: incapacidade de relacionar as coisas, de acumular experiência e se desenvolver. Por isso me impressionou tanto aquela frase de Hiroshima: J’ai désiré avoir une inconsolable mémoire.

 
     

 

 

A passagem é pinçada do livro de Edmundo Desnoes (Memorias del subdesarrolo, Ediciones Unión, La Habana, 1965; Memórias do subdesenvolvimento, trad. Elen Döppenschmitt, Edição Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, 2008), uma preciosidade derivada, em alguma porção não definida ou definível, de outro tempo, tributário da Guerra Fria, do Terceiro-mundismo, da Crise dos Mísseis em Cuba, da Revolução pelo continente americano e tantas outras verdades, meia verdades e ilusões de uma época e de um estado de espírito. No livro, e na passagem em particular, o espírito do mundo descreve-se em uma fórmula capital, e que tomamos como a melhor glosa do atual momento do país: o subdesenvolvimento é a incapacidade de acumular experiência. Antes de seguir, mais uma observação: o livro igualmente deu em um filme notável, do mesmo título, de Tomáz Gutiérrez Alea.
Voltemos à fórmula. A razão disso não comporta nenhum mistério. Enquanto este texto é escrito, a custo, está-se a uma semana do provável golpe do impedimento da Presidenta da República - ainda estamos em 12 de abril de 2016, horário de Brasília. Não se espera tanques na rua, nem o retorno da vaca fardada, o general Mourão Filho. Não se espera pronunciamentos de caserna, de generais de quatro estrela e que tais. O clima, o discurso e o decoro é, porém, o do golpe de 1964, com as variações de espírito que a repetição das preceptivas do gênero permite. O gênero é golpe. Outros atores assumiram as fardas e os fardos do golpe. Aparentemente estão bem à vontade.
Quase não há dúvidas de que se trata de golpe, dir-se-ia, apenas deixando um fio de dúvida à própria dúvida e ao leitor ocasional dessas linhas de péssimo agouro. De fato, a olhar de perto, não há dúvida.
Antes de iniciar disputas infrutíferas, poupo o leitor da discussão legal sobre se há ou não crime de responsabilidade da Presidenta da República e do estatuto jurídico-político do impedimento. Sobre os supostos crimes de responsabilidade, não havia até ontem, ou até antes de ontem, quando não só a prática quanto o entendimento dos tribunais e órgãos assessores autorizava a operação contábil posta, primeiro, em dúvida, depois tipificada como crime, não por algum tribunal ou juízo em sentido próprio, mas por um órgão assessor e pela Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional,
Gastou-se já muita tinta com isso, e a esta altura os juízos estão bem ou mal formados e informados. Sigamos.
A questão aqui será outra. A questão gira em torno dessas memórias do subdesenvolvimento. As nossa memórias.
Hoje, permite-se dizer que a memória, por não ter sido bem tratada, permite-se confundir com a realidade, no pior sentido do termo. O país repentinamente torna-se um museu a céu aberto, a começar pelas senhoras de Santana, angariando adeptos para a reforma moral e dos costumes do mundo e do país, com os caçadores de comunistas perseguindo os bebês de vermelho, ocasionalmente os cães, com a reincorporação no discurso médio das piores figuras da higienização social que seu repertório raso permite: e “vamos limpar o Brasil”, com a descoberta recente e insofismável de que vivemos em uma ditadura comunista. Essas tristes figuras - caçadores de comunistas, lideranças e partidários da opus dei, moralizadores de plantão, delírios de extrema direita os mais extravagantes possível, mais naturalmente os donos do poder, seus acólitos e a grã-finagem em geral, com o tradicional algodão nas narinas - passam todos por nós sem nos ver. A falta da memória não deixa que se ponha a realidade em perspectiva. Outro corolário da nossa crônica incapacidade de acumular experiências.
A memória (com “m” maiúscula e minúscula) perdeu completamente seu apelo, tornou-se invisível, e encolhida, deve ter ido buscar conforto num obscuro álbum de família “intolerável, altos de muitos metros e velhos de infinitos minutos” (Carlos Drummond de Andrade, “Os mortos de sobrecasaca”).
Em suma, voltamos sem mais, sem aprendizado, sem mediação, sem anteparo aos anos da invasão comunista no Brasil, que não houve, ao nosso mais caro fantasma: em uma sociedade radicalmente desigual e, por óbvio, dividida, volta e meia o fantasma desse terrível outro que evitamos cotidianamente sai do armário e do quarto da empregada e invade a cozinha. Antecipemo-nos. Em boa parte, o comportamento mais histérico e radical, de extrema direita, que por esses dias faz fama e fortuna à luz do dia, traduz isso.
Evidentemente, não se trata apenas desse aspecto. Há bom espaço para insatisfação real. A crise política aguda que agora se vive não é mero efeito de psicologia de grupo ou histeria coletiva ou fanatismo de facção. Ela é igualmente crise econômica, impasse social, incapacidade de gestão da ordem e mais alguns et ceteras. Como toda situação complexa, esta não deriva apenas de um sujeito, de um ato, de um erro, nem é responsabilidade de apenas um. É hybris por excelência.
Reconheçamos isso para colocar (ou recolocar) a questão: como não se aprendeu a responder à crise, em sentido próprio, de outro modo? Como não aprendemos nada com a última ditatura militar, com apoio civil naturalmente? Como a resposta que pouco a pouco se torna hegemônica é a típica dos golpes passados (e vindouros)?
Em Memórias do subdesenvolvimento, tanto no livro quanto no filme, o protagonista vaga por uma Havana ligeiramente surreal, abandonada pela classe média, pós-revolução cubana, às vésperas da crise dos mísseis, com um involuntário ar fantasmagórico. Ele segue cada vez mais perdido em sua classe e em sua cidade, desmobilizado em sua própria indiferença lírica em relação ao mundo a sua volta, o que, simultaneamente, o liga a sua cidade e ao seu país e põe entre ele e sua cidade um misto de distância e proximidade. Se não era exatamente “revolucionário”, igualmente não pretendeu fugir para Miami. No intermezzo dessa distância improvável, ele tenta desvendar algo como um mistério, um segredo insondável: por que somos subdesenvolvidos, por que não aprendemos, por que não acumulamos experiência?
Olhando diante desse retorno inesperado do passado, sou tomado igualmente por um vago fastio melancólico do mote, uma despretensão diante do vem por aí. Reitero: o golpe ainda não aconteceu. Parece, porém, que o recurso às forças líricas do mundo em nada impedirá que ele não aconteça. Melhor: parece haver uma insondável força regressiva a fazer da história do Brasil o permanente esquecimento de si mesma, o permanente retorno do recalcado.
Refaço o último movimento. Não há destino ou fatalismo que não seja deste nosso mundo, com suas mais objetivas condicionantes. Não se trata, no fim das contas, do espírito de algum pai simbólico a assombrar por essas bandas o príncipe da Dinamarca, nosso subdesenvolvimento, que só se põe questões que não é capaz de responder. O que de fato ocorre como urgência, agora, impossível, é como entender o que se passa, diante do espetáculo regressivo e de violência a memória que ora vivemos, depois de doze anos de governo progressista. Foi isso mesmo, afinal? Culpa do governo, culpa da sociedade? Culpa da nossa malfadada elite, etc., etc., etc. ? Sem responder à questão, sem cair em simplismos, há de se reconhecer que há nisso muito material para reflexão, porque não somos capazes de escapar de nosso ponto de partida. Voltamos ao golpe. Igualmente cabe a questão: essa experiência, com todos os seus problemas, não teria produzido nenhum efeito reativo na sociedade brasileira, no melhor sentido do termo, nenhuma capacidade de reinventar caminhos diante da repetição de impasses e diante de uma escalada nitidamente fascista, desde de algum tempo pronta e paciente, a aguardar a melhor conjuntura para irromper triunfal?
Insisto. O que assombra não seria tanto o repertório de erros do governo, a articulação da direita em torno de uma pauta claramente golpista, o retorno do tenentismo de direita, agora sob o corporativismo da toga. Reformulo: isso, de fato, assusta. Assusta ainda mais a incapacidade do país em responder de outro modo, em salvaguardar nossa melhor experiência civilizatória - com todas as suas imperfeições, limitações e frustações - a CF 1988.
Meu derrotismo leva-me a crer que haverá golpe. Espero que não. Vejam: a esperança é aqui nota subjetiva da impotência. Mas não creio mais em uma capacidade repentina do governo articular-se, mesmo com a presença providencial do ex-presidente Lula, e suas excepcionais qualidades de quadro político. Haverá resistência como tem havido, e há que se resistir.
E não me parece absurdo supor que no quadro pós-golpe, optando em conjecturar pelo pior, as forças democráticas e de resistência ganharão novo empuxo diante de um governo nitidamente ilegítimo. Não esperaria pacificação com o golpe. Tudo leva a crer que haverá acirramento.
O pós-golpe dinamizará ainda mais o movimento popular e as forças de esquerda e progressista, talvez um momento único para reorganizar as forças de esquerda, isto é, intensificará uma disputa real na sociedade (com seus componentes distributivos, simbólicos e de classe) a despeito do teatro parlamentar, que caducou agudamente no correr desse processo.
Tal acirramento não poderá ser tolerado, porque em parte ele organiza a esquerda viva do país, porque em maior parte ele porá em dúvida um governo já sem legitimidade. Levará o novo partido da ordem, algo como uma malta de oportunistas de toda ordem e estirpe, o novo Centrão, a só ser capaz de operar com algo próximo de um estado de sítio, de fato, para a sociedade e para as instituições, que pode igualmente ter seus desdobramentos de direito, a fim de haver alguma proteção e reconhecimento legal dos atos de força que prometem vir. Não se pode desconsiderar absolutamente o quanto a solução golpista trará consiga de crescente ilegitimidade. Hoje, com os dados disponíveis, já se pode notar sem muito medo de errar o quanto as figuras de proa do golpe assumem e assumirão cada vez mais os piores adjetivos na aceleração desse processo.
Avançando na conjectura, eu diria: o golpe será o prelúdio de outro golpe, esse sim duro e claro. O golpe do impedimento ensejará o golpe no golpe, o retorno do AI 5. Candidatos a Costa e Silva não faltarão.
Podemos estar às vésperas de dias sombrios, dos piores.
Concluo.
Volto a Sergio, o protagonista de Memórias do subdesenvolvimento. Olhando-o no espelho da memória, vê-se como seu lirismo anti-heroico lhe dá indiferença o suficiente para enfrentar a crise dos mísseis.
A analogia não cabe entre nós: quando se esquece da memória das coisas, nada mais pode ser lembrado, nenhum lirismo salva, nenhuma crítica é suficiente. Abre os vidros de loção e abafa o insuportável mal cheiro da memória.

     
 

 
  "Quem ainda não entendeu, não entende mais"  

 

 
    
    

 









fevereiro #

9



ilustração: Rafael MORALEZ