revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Fernando RUGITSKY

Milagre, miragem, antimilagre: A economia política dos governos Lula e as raízes da crise atual

 


A história é sempre interpretada a partir dos conflitos do presente. Face à profundidade da crise atual - que paralisa a economia, fragmenta a política e esgarça o tecido social -, é comum, nas esquerdas, a manifestação de duas visões opostas sobre o que os últimos 13 anos representaram para a economia e para a estrutura social brasileiras, especialmente no que diz respeito à redução das desigualdades. De um lado, há aqueles que argumentam que a euforia não passou de uma miragem e que a situação atual está apenas trazendo à tona a fragilidade do projeto implementado. Do outro lado, afirma-se que o que se verificou foi uma profunda transformação cuja radicalidade é comprovada pela força da reação conservadora verde e amarela que foi desencadeada.
Tal polarização serve de pano de fundo para as disputas táticas acerca da conjuntura, mas contribuem muito pouco para a reflexão estratégica. Não obstante a urgência conjuntural, as esquerdas não podem se furtar a uma discussão mais profunda que oriente a reconstrução de um campo político para um próximo ciclo que há de vir. Essa reflexão precisa superar as visões opostas mencionadas e questionar a real natureza das conquistas, dos limites e das contradições do projeto implementado nos últimos 13 anos.


O antimilagre (2004-2010)1

Qualquer governo que se pretenda de esquerda em um país como o Brasil tem que colocar o combate às desigualdades, em suas múltiplas dimensões, entre seus principais objetivos. Sem dúvida, os últimos 13 anos viram esforços importantes na redução das desigualdades raciais, regionais e de acesso ao ensino superior. No entanto, o foco aqui recairá sobre a desigualdade de renda que, embora parcial, ilumina a economia política do período.
Até 2014, o debate sobre a desigualdade de renda no Brasil recorria majoritariamente aos dados das pesquisas nacionais por amostra de domicílio (as PNADs), que serviam de base para o cálculo dos índices de Gini e de outros indicadores. Tais dados indicavam uma queda substantiva da desigualdade2. O índice de Gini, por exemplo, que permanece estável durante a maior parte dos governos FHC, cai de 0,572 para 0,543, entre 2004 e 2009, e atinge 0,518 em 2014. Um indicador mais transparente, a razão entre a renda média domiciliar per capita dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres, aponta na mesma direção. Em 2004, os mais ricos ganhavam quase 20 vezes mais do que os mais pobres. Em 2009, a diferença era um pouco menor do que 17 vezes e, em 2014, ela havia se reduzido para pouco mais de 14 vezes.
A disponibilização inédita de dados tributários em 2014 revelou, contudo, o que há muito se suspeitava: que a desigualdade efetiva é muito maior do que se supunha, uma vez que os dados das PNADs captam muito imperfeitamente as rendas dos mais ricos. A conclusão, provisória, desses estudos recentes é que a desigualdade não caiu, pelo menos desde 2006, uma vez que o percentual da renda apropriado pelos mais ricos é grande e permaneceu estável no período3. Ainda que tenha havido uma inegável redistribuição de renda na base da sociedade, a estabilidade da renda dos mais ricos prevalece quando se calculam índices sintéticos como o Gini. Em outras palavras, observou-se uma importante redução da disparidade salarial, mas não se enfrentou o determinante principal da desigualdade no Brasil, qual seja, a concentração de riqueza e das rendas de propriedade.
Seria de toda forma surpreendente se houvesse ocorrido uma redução substancial da desigualdade sem que se alterasse o regressivo sistema tributário brasileiro e que se enfrentasse o problema das elevadas taxas de juros4. De qualquer forma, a redução efetiva e importante da disparidade salarial resta a ser explicada. Há pelo menos duas abordagens disponíveis.
A primeira foca-se essencialmente nas políticas públicas implementadas e busca medir seus efeitos sobre a desigualdade. Segundo os estudos realizados sob esse ponto de vista, programas de transferência como o Bolsa Família desempenharam um papel notável, mas a maior parte da queda da desigualdade é explicada pela política de valorização do salário mínimo, por meio de seus impactos no mercado de trabalho e nas aposentadorias e pensões5.
A segunda abordagem, elaborada na hipótese abaixo, não ignora a importância dessas políticas, mas pretende dar um passo adicional, analisando o impacto da própria queda da desigualdade salarial na dinâmica econômica e, simultaneamente, o impacto da dinâmica econômica na desigualdade. Um dos resultados possíveis dessa análise é a identificação do que se pode chamar de “causação circular e cumulativa”6.
Concretamente, o argumento indica que a redução da desigualdade salarial, inicialmente promovida pelas políticas implementadas, expandiu o consumo e estimulou o investimento, acelerando o crescimento econômico. A mediação crucial, então, é a dimensão setorial do consumo e do investimento. Ao expandir a renda da base da sociedade, deslocou-se um percentual maior do consumo para mercadorias e serviços intensivos em trabalho menos qualificado.
Esse deslocamento, por sua vez, aumentou a demanda por trabalhadores menos qualificados, pressionando para cima seus salários, que se aproximaram dos salários dos trabalhadores qualificados. Segundo dados da PNAD, em 2004, o salário médio era 2,53 vezes maior do que o salário mínimo e, em 2009, tal diferença reduz-se para 2,14. A dinâmica setorial reforça, assim, a compressão da disparidade salarial que, por sua vez, acelera ainda mais o crescimento e o deslocamento setorial em um processo cumulativo.
Entre 2003 e 2010, o número de trabalhadores empregados no Brasil subiu de cerca de 83 para cerca de 98 milhões de pessoas. Três setores (produção de alimentos e bebidas, comércio e construção civil), de um total de 41, foram responsáveis por 44 por cento dessa expansão de vagas de trabalho, e sua expansão parece ser explicada principalmente pelo aumento do consumo dos grupos mais pobres. Tais setores apresentam produtividade média do trabalho abaixo da produtividade média da economia como um todo, confirmando o fato de que são intensivos em trabalho menos qualificado. E, ainda mais notável, com exceção do comércio, que permaneceu praticamente estável, a razão entre a produtividade média dos outros dois setores e a produtividade média agregada declinou entre 2003 e 2010.
Um processo semelhante, mas com sinal invertido, caracterizou o milagre econômico brasileiro entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 19707. Naquela ocasião, o crescimento econômico concentrou-se nos setores intensivos em trabalho qualificado, aumentando a disparidade salarial que vinha sendo garantida pela violenta repressão sindical. Esse aumento da desigualdade salarial deslocou, por sua vez, o consumo e o investimento justamente para os setores intensivos em trabalho qualificado, desencadeando o processo cumulativo.
No milagre econômico da ditadura militar, a concentração de renda expandiu o mercado de consumo para os produtos então restritos às elites, como automóveis e eletrodomésticos, estimulando a expansão desses setores que, por contratarem trabalhadores qualificados, contribuíam para concentrar ainda mais a renda.
Já no antimilagre dos governos Lula, o aumento do poder de consumo dos grupos mais pobres estimulou a demanda por alimentos e expandiu o comércio popular, criando vagas para trabalhadores menos qualificados (nos supermercados, por exemplo), o que, por sua vez, contribuiu para reduzir a disparidade salarial. A tão propalada nova “classe média” ou nova “classe C”, mistificada pelo cruzamento entre o marketing e a retórica política, resultou na realidade desse padrão de crescimento econômico.
Sem a dinâmica setorial, é difícil compreender o crescimento com concentração de renda do milagre. O crescimento com redução da desigualdade salarial do antimilagre tampouco pode ser explicado ignorando-se essa dimensão.


Limites, reação e crise

A interpretação oferecida para a dinâmica do crescimento e da desigualdade salarial nos governos Lula é apenas aparentemente auspiciosa. O antimilagre tem uma série de limites que, cedo ou tarde, colocam em risco sua continuidade. Ele tende, por exemplo, a pressionar a inflação de alguns serviços cujos custos são muito influenciados pelos salários dos trabalhadores menos qualificados. Além disso, ele implica em uma regressão da estrutura produtiva, com redução da participação percentual dos setores tecnologicamente mais sofisticados. Combinados, os dois fenômenos fragilizam a inserção do Brasil na economia internacional, tendendo a pressionar as transações correntes no curto prazo e, mais estruturalmente, a agravar a vulnerabilidade externa.
Tal desdobramento é evidente na economia brasileira desde meados dos anos 2000. Nesse período, buscou-se compensar a inflação dos serviços com apreciação cambial (que puxa para baixo a inflação dos produtos comercializáveis), aproveitando o boom das commodities produzido pelo aumento da demanda do mercado chinês8. A apreciação, no entanto, reforça a regressão da estrutura produtiva e aumenta a vulnerabilidade externa da economia brasileira, historicamente bloqueada por crises de balanço de pagamentos.
Fica claro, dessa maneira, que uma condição de possibilidade fundamental do antimilagre foi o cenário internacional favorável, que afrouxou a restrição externa ao crescimento econômico no Brasil. Em 2011, no entanto, com o início da reversão dos preços das commodities, os limites do processo em curso começam a ficar mais claros. A virada da política econômica ocorrida entre 2011 e 2013 precisa ser lida nesse contexto9.
Não cabe aqui rediscutir a economia política do período que se estende de 2011 até o presente, o que requereria outro texto, mas apenas apontar que os dilemas e conflitos observados são fruto da tentativa, malsucedida, de lidar com a herança complexa do antimilagre. Nesse sentido, a mudança na política cambial adquire centralidade.
O objetivo era manter a taxa de câmbio relativamente mais desvalorizada, aproveitando a redução da liquidez no mercado internacional e utilizando uma série de medidas de regulação do mercado de câmbio (principalmente a variação das alíquotas do imposto sobre operações financeiras, o IOF). Essa mudança da política, que remonta ao início de 2011 e começa a produzir efeitos no segundo semestre, visava a estancar e eventualmente reverter a regressão da estrutura produtiva. Mas ela pressionou a inflação ao elevar os preços dos produtos comercializáveis, que deixaram de compensar a inflação dos serviços. Recorreu-se, então, aos preços administrados (energia e gasolina, sobretudo) para manter a inflação abaixo do teto da meta.
As razões para o insucesso dessa política ainda são objeto de controvérsia. Em parte, a dinâmica econômica internacional adversa parece ter impedido que a desvalorização cambial levasse à expansão pretendida das exportações. E várias políticas adotadas, como a própria desvalorização cambial, mas também a desaceleração do investimento público e as medidas macroprudenciais que restringiram o crédito, reduziram a demanda doméstica, desacelerando a economia e dificultando a adaptação da estrutura produtiva.
A dimensão política não deve, contudo, ser subestimada. No período da bonança externa, a legitimação do antimilagre ocorreu sem grandes desafios. Com a reversão do boom das commodities e a desaceleração do economia, os conflitos vieram à tona.
A aposta do primeiro governo Dilma Rousseff parece ter sido cindir o empresariado industrial e os interesses financeiros, aliando-se àqueles para contrariar os interesses desses. A mudança da política cambial e a notável redução da Selic (duas faces da mesma moeda, aliás) deveria contribuir para essa cisão interna à elite econômica. Entretanto, o setor industrial brasileiro, fragilizado desde os anos 1980, havia sido ainda mais enfraquecido pela dinâmica do antimilagre e seus interesses tornaram-se profundamente interpenetrados com os interesses financeiros. Talvez por essa razão, o apoio, se houve, durou pouco e, já em 2012, a elite econômica unificou-se contra a política econômica do governo10.
A crise de hegemonia só seria escancarada, porém, em junho de 201311. Nesse momento, às tensões do governo com o empresariado seria adicionada a fragilização do sistema político-partidário em seu conjunto, que já não conseguia representar os conflitos existente na base da sociedade12. A partir daí, a desaceleração econômica e a crise de hegemonia política passam a reforçar-se mutuamente, em um processo crescente que explodiria em 2015.
Contudo, o importante é deixar claro que não se trata de reveses conjunturais ou consequências de erros políticos pontuais. Vivemos a crise de um projeto político que, com avanços e tropeços, foi o que as esquerdas conseguiram implementar desde a redemocratização. Se a hora, inequivocamente, é de resistir aos retrocessos e aos ataques ao próprio Estado de Direito, não podemos nos furtar à necessidade de construir, de modo coletivo, um projeto novo que aprenda com as lições dos últimos 13 anos.

 

 

Referências

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ilustração: Rafael MORALEZ




1 Sugere-se datar o antimilagre a partir de 2004, ao invés de 2003, porque o primeiro ano do governo Lula foi marcado por um forte ajuste contracionista; a dinâmica do crescimento econômico com redução de desigualdade salarial só se inicia no ano seguinte.


2 Ver, por exemplo, Barros et al. (2010).


3 Tais dados são analisados em Medeiros et al. (2015) e Gobetti e Orair (2015).


4 Sobre o sistema tributário, ver Higgins e Pereira (2013) e Silveira et al. (2013).


5 Barros et al. (2010).


6 A expressão é de Gunnar Myrdal. O fundamento teórico dessa abordagem é discutido com mais detalhes em Rugitsky (2016). Um panorama das relações entre crescimento econômico e distribuição de renda no Brasil, nos últimos 13 anos, pode ser encontrado em Carvalho e Rugitsky (2015).


7 Essa intepretação do milagre foi formulada por Tavares e Serra (1971/1976) e sua base teórica foi explicitada por Taylor e Bacha (1976).


8 Sobre a inflação de serviços no período recente, ver Dos Santos (2014), Brunelli (2015) e Carvalho e Giovanetti (2016).


9 Sobre o primeiro governo Dilma, ver Singer (2015) e Serrano e Summa (2015). Ver também Rugitsky (2015).


10 Ver Singer (2015).


11 Ver Nobre (2013). Um dos aspectos dessa crise de hegemonia é a reemergência do conservadorismo no Brasil, analisada no último número desta revista por Cícero Araújo (2015).

12 Uma das conexões desse fenômeno com o antimilagre, que ainda merece ser investigada, está relacionada ao chamado “paradoxo da redistribuição”, formulado por Korpi e Palme (1998).