POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
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Vinícius Marques Pastorelli |
Lá fora aqui de dentro - uma resenha para Barulho feio de Romulo Fróes |
Destoando um pouco do que se passava há até dois anos, nas entrevistas e materiais promocionais de Barulho feio, quinto disco de Romulo Fróes, o grande destaque não é mais dado para a explicação das matrizes estilísticas e históricas de sua composição, mas sim para uma espécie de truque sonoro transposto das artes plásticas.
Não só em pequenos traços referenciais das letras de Barulho feio isso aparece. Não só na colagem, que quer exteriorizar o trabalho e nesse movimento pô-lo onde ele realmente sente que está (ou não). Depois de um disco tão pulsante, criativo e bem acabado quanto Um labirinto em cada pé, reconhecido pelo próprio compositor como um ponto de maturidade, a tensão cai drasticamente. Desaparecem as interessantes explosões resfolegantes que testavam modos de enunciação falada (como a de “Ditado” e “Anjo”), direção coerente com o clima geral de um disco agora contido - cujo grupo instrumental dispensa aliás a percussão, como era o caso em boa parte de Calado e Cão, mas não nos dois últimos.
Noutro belíssimo samba, “Como um raio” - acompanhado apenas em violão, num pêndulo de graves e médios algo fúnebre e estruturado numa harmonia cadencial que soma força à conclusão -, a sedimentada prática discursiva do gênero, na qual se inverte a mácula moral de praxe destinada aos de baixo tensionando-se o campo de legitimidade fissurado entre marginália e autoridade oficial,8 é transposta para um contexto em que, na verdade, visibilidade e invisibilidade pública se disputam. Devido a vocativos cortantes, mas originalmente carinhosos, como “meu coração”, tudo isso se passa, decerto, num campo afetivo lupiciniano que leva a imaginar em primeiro grau a revanche do amante preterido. No entanto, visto à sombra da gravitação geral do disco, o coração que, romântico, ameaça tomar a paisagem que lhe volta as costas, está dando vazão a uma demanda diferente. Aqui, novamente marcada pela experiência do compositor em risco de ostracismo público:
A graça triste vem, antes, da sensação de que a experiência, cujos contornos já eram difusos, se esvai numa velocidade tão bruta que ameaça a carnatura frágil de uma sensibilidade que, a princípio, se declarava ironicamente afim ao desnaturado. Sobre uma oscilação harmônica sem progressão entre dois acordes suspensos [C#m11 e D#m11], o duo vocal masculino/feminino, continuamente sobreposto em 8ª, desdobra-se num instante tão abreviado que sua elaboração fica restrita ao motivo de duas notas (aliás, mecânico como um bipe de metrô), exposto, invertido, expandido e logo recolhido à mesma 2ª maior descendente que, há meros 1:25 minutos, abrira a canção.
Isso não quer dizer, no entanto, que uma espécie de movimento ativo não aconteça. Desde No chão sem o chão, a objetificação das atitudes exteriorizantes nas canções se fixavam predominantemente em transposições de procedimentos plástico-narrativos, compondo não raro figuras que tratavam de posicionar negativamente Eu e mundo. “Anjo” é um exemplo disso.10 “Ditado”, do disco anterior, exortando o ouvinte com saxofones de samba-rock ao mesmo salto para o desconhecido dado pelo Eu, figurava-o como um bicho, dotado de guelras nas costas, engolido pela bíblica baleia de Jonas, onde o caos cintilante do mundo, digerido, se duplicava.11
Como dizíamos, essa é uma postura ativa sim, mas, como se vê, já não tão ligada a uma vontade de descentralização, que a técnica do disco promete com sua colagem do real e que Um labirinto em cada pé aperfeiçoara, com sua grotesca estatuária do Brasil extraoficial moldada em piche elétrico.
Num dado ponto dessa mesma “Ó” - que poderíamos chamar seu ápice - o vazio ocupado pelo buchicho sonoro da pista gravada é comentado pelo Eu que cisma sobre o que o aborrece, ao mesmo tempo lembrando ao ouvinte o que absorve e o que rejeita da bossa nova de Tom Jobim:
Se lembrarmos que a colagem de som externo alheio funciona como vestígio de vida real, aqui quatro vezes reduzida a objeto indesejável; e que esse, justamente, é o procedimento que busca, em Barulho feio, levar a composição de Romulo Fróes para fora de si mesma, unindo autorreflexão e tentativa de se posicionar com relação ao mundo, notaremos então o que foi deixado para trás. O lamento trágico (ó!), que emenda diretamente num muxoxo de desgosto (ai!), indica que a mesma posição de sempre se repõe, sem que o movimento de progresso esboçado no disco anterior se complete. Tweetar |
fevereiro #
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1Por exemplo, esta, de Leonardo Lichote: http://oglobo.globo.com/cultura/musica/critica-barulho-feio-de-romulo-froes-13715899.
2De pronto, é preciso apontar que os próprios compositores estão tentando pensar o caminho específico que buscam para compor. Nesse sentido, um dos artigos de Kiko Dinucci lembra que seus arranjos, feitos com base em segmentos repetitivos melódicos em sobreposição - numa lógica algo hipnotizante, de origem religiosa -, destoam da harmonia em bloco, constante na MPB desde que a bossa nova eliminou o bordão do baixo no violão de samba e adaptou traços da harmonia do cool jazz. Segundo o compositor, esse procedimento, inspirado imediatamente em Estudando o samba, de Tom Zé, nos afrossambas de Baden Powell e se complementando por influência da música pop do Mali e de Angola, abre uma ampla linha alternativa na canção brasileira, recuperando a primazia da horizontalidade sobre a verticalidade, do ritmo sobre a harmonia. E, também, ressaltando o elemento africano presente na raiz do samba. Parte da mesma ideia está exposta nesta entrevista: https://desova.wordpress.com/2014/03/13/entrevista-com-kiko-dinucci/.
3Num artigo de Romulo Fróes, o compositor propõe um esboço de sua geração (incluindo não só os paulistanos Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Jussara Marçal e Douglas Germano, mas também a nova geração carioca ligada a Kassin e a Caetano Veloso), como uma que, justamente, contrariando a ideia de um grupo fixo e da coerência de um fenômeno cultural de época (como o Manguebeat), se caracteriza pela constante reorganização dos grupos, ao sabor dos novos projetos, que unem sonoridades próprias em combinação sempre renovada. FRÓES, Romulo. Te convidei pro samba, mas você não veio. Acesso em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002009000100015&lng=en&nrm=iso.
4Dado esse que se complementa nos artigos de um dos parceiros centrais de Romulo Fróes, Nuno Ramos, que recentemente publicou na Revista Piauí um longo ensaio dedicado aos impactos da falta de condições e de transitividade da cultura brasileira, abrangendo Graciliano Ramos, Lygia Clark, João Gilberto e Mira Schendel. RAMOS, Nuno. “No palácio de Moebius”. Revista Piaui, 86, Nov. 2013, pp. 70-78.
5Variações desse mesmo raciocínio estão na boca de todos, levando a rótulos nem sempre originais que procuram dar conta do lugar estranho em que essa geração se encontra. Um lugar, note-se, não exatamente idêntico ao da já prolífica galeria de “marginais” da cultura brasileira, que essa mesma geração não deixa de chamar a seu favor na ordem das influências (Vanguarda Paulista, João Antônio, Jards Macalé, por exemplo). Assim multiplicam-se os equívocos com seu lado de verdade, na medida em que o critério de marginalidade ou vanguardismo não é claro. Quem seriam eles - eles mesmos refletem, em artigos disseminados em blogs jamais lidos por quem só lê jornal? A turma do Kiko, da Jussara, do Thiago, do Marcelo e do Rodrigo que constam na nossa lista do Facebook? O underground paulistano dos anos dois mil e poucos, quando nossa autêntica boemia não fumante paga consumação na Baixa Augusta? A geração do YouTube e da divulgação pela internet, tão bem manejada pelo Radiohead quanto pelo MC Brinquedo? Os compositores que se apresentam ali no circuito do SESC, no Puxadinho da Vila, na Casa de Francisca, mas pouco tocam no rádio ou na TV dominados por acordos de mesmice e somas vultosas? Sobre o depoimento, ver https://www.youtube.com/watch?v=qRtQkCvqy9E.
6A nomeação desse nó em que se confundem marketing, busca de esteio na tradição e sustentação de um projeto de MPB em contexto de desregulamentação das relações trabalhistas e mudança das formas de produção adveio em conversas com Arthur Vonk e Renan Nuernberger. Dois estudos que formam seu pressuposto estão em “Cultura e política (1964-1969)” In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, pp.61-92 e em “Verdade Tropical: um percurso do nosso tempo”. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-111.
7Não por acaso, trata-se de uma reprodução da instalação de Nuno Ramos Bandeira Branca, cuja função, descontada a polêmica dos urubus, era justamente pôr em contato o pavilhão contemporâneo da Bienal com uma atualização - e um deslocamento, afinal - da mais lamentosa marcha carnavalesca (e portanto popular, o que muda as razões em jogo) já composta.
8Penso nos numerosos sambas em que uma figura popular, o mais das vezes um malandro, inverte uma acusação, trazendo à tona os podres e faltas alheios - de praxe, os da autoridade instituída. Por exemplo, o depoimento do vadio apaixonado e docemente petulante ao delegado em “Juca” (Chico Buarque) e a vagabundagem como modo de vida autêntico, oposto à hipocrisia das classes dominantes, em “Filosofia” (Noel Rosa).
9Nessa canção o eu lírico pede a alguém que “erga os olindos pro céu”, como consolo para o ato de lhe mostrar “seu brinquedo dentro d’água” e a “rosa que também sofre e chora”: é um dos procedimentos-chave em seu estilo, no qual interioridade e exterioridade se equiparam pelo halo melancólico, sendo os objetos e expressões distorcidos pela formulação linguística metonímica. Lembrando que, compondo parte da segunda tópica freudiana centrada na análise de fenômenos ligados à pulsão de morte, a definição clássica da psicanálise para a melancolia consiste, justamente, na depressão moral superegoica advinda da cisão permanente do Ego entre os impulsos de vida, presos num circuito mnemônico fantasmático, e o investimento libidinal num objeto incerto, cuja perda o psiquismo não pode assimilar, como seria o caso num exorável e paulatino processo lutuoso. FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
10Ver nesse sentido http://www.chicpop.com.br/#!Notas-para-uma-Leitura-de-Anjo-de-Nuno-Ramos-e-Rômulo-Fróes/cmbz/552689e60cf21933cd4b8067.
11Letras como a de “Ditado” de Climachauska, com sua imagética reificante quase surreal, ligada ao motivo do salto para o desconhecido, trazendo à tona metáforas clássicas do modernismo como um “coração alimentado por sangues (ou musas) venais e solares”, revelam na escrita a inequívoca influência da lírica moderna, num escopo que vai de Baudelaire a Beckett, passando por Rimbaud. Deveria chamar atenção que, sendo como é uma novidade no campo da música brasileira, essa transposição ainda não tenha sido bem indicada na mídia dedicada à música popular, mesmo nesse momento ainda incipiente de recepção.
12Outra situação transposta da literatura, especialmente de romances do pós-guerra, como Malone morre e Leite derramado.
13Uma questão interessante aguardando exame nas canções de Romulo Fróes, e trazida por Nuno Ramos, é o fato de certos traços negativos dessa obra funcionarem mais como constante de estilo que como gradação de atitude diante do presente. Pode-se notar isso, se compararmos o constante dandismo modernista atualizado via “Mau vidraceiro” (Baudelaire) com o ódio drummondiano em suas duas fases: a de “A rosa do povo”, em que funciona como solução de compromisso externalizada entre a culpa de classe e a solicitação política, e a de “Claro enigma”, em que, introjetado e espiritualizado em relativo hermetismo, assinala uma reação ao fechamento de horizontes políticos. Essa ideia foi elaborada em conversas com Fernando Vidal Filho.
14Longe de ser autoevidente, a simpatia nacional-popular foi um dos fatores que ligou o modernismo de 22 à história da canção brasileira, na zona de lusco-fusco em que a alta cultura se confundia com a boemia. Para não falar nas modinhas do poeta Domingos Caldas Barbosa, compostas nas ruas do Rio colonial e apresentadas na corte portuguesa, o exemplo paradigmático é o trajeto de Jaime Ovalle, frequentador da Lapa, colaborador de Manuel Bandeira, músico próximo a compositores como Sinhô e Donga. Mas a questão pode ser estendida também aos tropicalistas, frequentadores do Beco das Garrafas em Ipanema, que de certa forma tentaram conjugar os cantos das lavadeiras de Irará (Tom Zé) com leituras de poesia concreta, em arranjos de Rogério Duprat. A inversão desse antigo traço democrático da canção, certamente fundamental para sua politização na década de 1960, chama atenção e merece estudo. Sobre a relação entre romantismo brasileiro e música popular ver “Domingos Calda Barbosa: a modinha” e o “Pecado das orelhas” In: TINHORÃO, José Ramos. História social da música brasileira. São Paulo: Editora 34, pp.115-125. Sobre Jaime Ovalle, ver “Presença do ausente” In: ARRIGUCCI, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp.64-71. Sobre a Tropicália, ver especialmente o primeiro período passado no Rio de Janeiro em “Paisagem útil” In: VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, pp.112-119.