revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Wallace MASUKO

 

Vinícius Marques Pastorelli

Lá fora aqui de dentro - uma resenha para Barulho feio de Romulo Fróes

 


  1. Colagem e som de um desterro construído

Destoando um pouco do que se passava há até dois anos, nas entrevistas e materiais promocionais de Barulho feio, quinto disco de Romulo Fróes, o grande destaque não é mais dado para a explicação das matrizes estilísticas e históricas de sua composição, mas sim para uma espécie de truque sonoro transposto das artes plásticas.
De fato, se desde o começo da carreira, a abordagem de Romulo Fróes para o samba-canção já tinha algo de deslocado - filtrado por Nelson Cavaquinho, reinterpretado por guitarras, vazado numa sintaxe poética estranha, atualizado para a experiência de desorientação contemporânea - Barulho feio, sem deixar de ser um álbum de canções, é integrado por um procedimento de colagem sonora bastante incomum na música popular brasileira. Sob toda a extensão do disco há uma faixa gravada pelo próprio compositor, captada durante um percurso feito a pé pelo centro de São Paulo. De modo que, em vez do silêncio ou da emenda planejada das faixas, ouvimos buchichos, gritos, carros, ônibus, estática causada pelo vento.
Algumas notas e resenhas chamaram atenção para esse detalhe, mas não chegaram a desdobrar suas implicações.1 De imediato, esse preenchimento dos vazios entre as faixas desautomatiza a escuta de um disco, quebrando a expectativa de uma organização do todo por um critério, sedimentado e amiúde gratuito, de variabilidade. Até segunda ordem, ao reorientar uma das formas industriais de transmissão da canção - com seus valores de coleção, distração, consumo e reiteração de hábitos musicais privados -, atenta-se contra a circunscrição e a estrutura prévia do meio, determinada pelo produto.
Sem ser algo a rigor novo e devendo-se a uma liberdade que convém pensar, esse procedimento ao menos retoma toda uma série de trabalhos interessantes que buscam deslocar o lugar da canção, enquadrando-a em narrativas e crônicas (“Nas quebradas do mundaréu”, 1974), recriação de contextos teatrais de origem (“Arena canta Zumbi”, 1965), rituais religiosos ligados à cultura negra (“Afrossambas”, 1966) e até mesmo uma utopia tropical pós-moderna extraída de um pesadelo (“Araçá azul”, 1973). Ou seja, terrenos externos à redoma mais ou menos asséptica dos estúdios de gravação, recriados em tensão com o formato mercantil que os acompanha.
Menções ao procedimento de colagem sonora são numerosas nas letras das canções. Acontecem até mesmo em “Ó”, de assunto escapadiço, onde o cantor sugere que “foi parar num bairro líquido”, sua voz, ironia, decomposições metonímicas do corpo estranho e maldições peremptórias ao alheio disputando o espaço sonoro com sussurros reais. O mesmo se dá na faixa-título, “Barulho feio”, quando, em desconcertante chave imaginária, o eu lírico ensimesmado pontua:

 

   
  “Barulho feio
Tem gente no meio
A minha cabeça
De ponta cabeça
(...)”
   



Também as faixas, por si mesmas, destoam do que conhecemos do compositor até o momento. Se esperamos, como em Um labirinto em cada pé, uma ideia familiar de arranjo - que, derivando automaticamente de subgêneros da cultura de massas, tende à estereotipia -, o disco vai surpreender. Não há aqui rastro do reggeaezinho sacana, obliquamente boêmio de “Quero quero”; nem do “Rap em latim” acompanhado por cuíca e tessitura de baixo; nem da valsa-swing “Pierrô lunático”. Formatos pré-fabricados de estilo, que desde o princípio foram incorporados de arrevesado, rareiam.
O susto não será menor se a expectativa for ouvir a relativa limpeza na combinação de linhas de violão, cavaquinho e guitarra de Rodrigo Campos, Guilherme Held e Kiko Dinucci, escolha que vinha sendo desenvolvida e que derivara para o projeto “Passo Torto”2 . Na verdade, Barulho feio, na esteira da guinada eletrificada de Passo elétrico e Metal metal, arrisca uma sonoridade diferente, feita especialmente de ruídos. Ruídos que, por sua vez, se acomodam e se chocam com uma execução também pouco cuidada do cantor e violonista, propositalmente amadora, mas bastante refletida. Direção que até agora se notou bastante, já que, com efeito, é sugestivo o contraste entre o formato silencioso e recolhido, inventado por João Gilberto, com o instrumental sempre peculiar e às vezes estridente desse disco.
O resultado é uma estranha justaposição de caminhos sonoros heterodoxos com recursos conhecidos de arranjo e sonoridade. Uma mistura que, intui-se, diz algo sobre a posição da nova música popular, imersa num presente atulhado de estímulos enervantes e vazios, sonoros inclusive, de que ela quer e não quer se distinguir. Em parte, ainda temos a harmonia esboçada em poucos acordes, quase sempre em tom menor, tímida nas modulações, não raro suspensa como progressão em senso estrito; as linhas vocais esquemáticas, que quebram em pequenos jogos o fluir prolífico da melodia sentimental brasileira; a voz médio-grave, profunda, do cantor, variando entre a dicção falada e o canto. Em parte, temos as novidades: uma guitarra quase independente, que, modificada com efeitos em suas propriedades puras de ressonância, ora comenta a harmonia, ora a linha vocal (“Pra comer”); canções lentas e mornas, atravessadas de repente por urros do saxofone (“Não há mas afunda”); trechos cantados a cappella combinados a nebulosas metálicas conseguidas por gravação em loop de dissonâncias ao violoncelo (“Cadê”).
E assim, para usar aqui os termos de algumas resenhas, o caos sonoro real, gravado, se reduplica - digamos, em ready-made - na estranheza dos arranjos de fato compostos, em que elementos sônicos conhecidos e estranhos se interpelam mutuamente.
Tudo isso de fato configura uma novidade e deve ser ressaltado, como parece pedir o nome do disco “Barulho/Feio”. Até certo ponto, portanto, desdobra-se aqui mais uma faceta da postura de Romulo Fróes de negar as formas constituídas da canção popular brasileira, combinada à intenção de ressaltar certo aspecto noturno de sua tradição. Traço característico desse compositor da nova MPB com algum passado pós-punk (e seus experimentos a meio-caminho entre o do it yourself e a síntese sonora) que combate tal categoria em favor de um conceito para a nova geração3 . Ao mesmo tempo, entretanto, há outra novidade nesse disco, menos visível, e ainda não suficientemente levada em conta, nem posta em relação com o material criado.
Se desde o começo e também em Um labirinto em cada pé o ponto de vista das canções é o de alguém, como diz Dona Iná, “sozinho nesse palco escuro, ouvindo o grito na medula, seu peito agitado pela guitarra”, aqui, a impressão de abandono, solidão, emparedamento, a dificuldade de organização da estilhaçada experiência contemporânea, vêm misturados a outra componente. Ela já se apresenta na primeira faixa do disco, “Não há, mas derruba”, que, com algum destaque, alude a dificuldades de produção impostas ao artista, em meio a uma piada de humor negro sobre o descompasso entre intenção e realização, num contexto de rápida substituição (concorrencial?) entre sujeitos:

   
 
“Não há, mas derruba
Não há, mas afunda
Tem dinheiro? Não tem
Tem talento? Não tem
Deu risada? Não deu
Pegou? Mordeu? Beijou? Sonhou?
Pôs a mão? Não?!
Então perdeu
Então já deu
Então passou a sua vez”
   



Se a interpretação procede, então talvez não seja despropositado dizer que o procedimento de colagem ganharia outro sentido, segundo o qual a rua, registrada em gravação e estabelecida como subtexto sonoro das canções, já não vale apenas como material plástico, como caos e espontaneidade estilizados, o que pretende ser em primeira instância. Contrariedades próprias à condição de compositor popular contemporâneo, no Brasil, postas em forma de dúvida sobre o próprio trabalho e abrindo o disco, fazem pensar que, mais além da intenção de desautomatizar a escuta, o disco é atravessado por uma reflexão sobre o sentido do percurso de seu autor.4
Em entrevistas recentes de Romulo Fróes, a questão não deixa de ser formulada. Cada vez com mais nitidez vem transparecendo, em suas declarações, alguma suscetibilidade frente a sua participação num fenômeno de geração que, de fato, tem algum alcance na mídia, confrontado porém com as novas condições de produção da música popular brasileira, difíceis de compreender em seu alcance completo e que pautaram esse trajeto. A certa altura da apresentação do disco no programa Cultura Livre, ele brinca, respondendo à entrevistadora: “Com a minha geração acontece esse tipo de coisa. Alguns, como eu, já têm dez anos de carreira, cinco discos, e ainda são chamados de nova geração da MPB”.5
De fato, às vezes não nos damos conta, mas até mesmo no próprio produto, já estão dadas essas novas condições. No disco Barulho feio comercializado em lojas - não o baixado legalmente pela internet -, está ausente o selo de uma grande gravadora, como a Odeon dos anos dourados da bossa nova ou a Polygram dos tropicalistas. Arranjadores conhecidos como Gilson Peranzzetta não estão nos créditos. Não houve orquestra contratada e os músicos envolvidos têm, quase todos, projetos autorais nem sempre instrumentais. Não há participações especiais, estipuladas mais por contrato que por necessidade interna. Seu lançamento não foi sucedido por apresentações previamente agendadas no Faustão, assim como Romulo Fróes não será garoto propaganda de nenhuma marca. Embora, por outro lado, o disco, amplamente promovido em meios eletrônicos, seja fruto do trabalho de uma série de compositores que participam nos lançamentos uns dos outros e tenha lugar cativo na periclitante TV Cultura, bem como em certo circuito de alcance nacional e internacional.  
Para falar nos termos de suas canções, que vêm refletindo há tempos sobre questões correlatas: se diria um disco de MPB feito, relativamente, no chão sem o chão.
Digamos então que esse disco traz o dilema de sua própria viabilidade para o raio de uma estética musical que, há pouco, procurava se construir num sentido antigo. Ou, melhor dizendo: no sentido de um ciclo anterior do nosso processo histórico, quando o primeiro grande momento da indústria cultural no Brasil, decididamente ancorado na música, conviveu com a retomada do modernismo enquanto autolegitimação.6 Como no caso da Tropicália, que buscou justificar sua atividade em fenômenos anteriores da música brasileira ligados à geração modernista de 45 - e o fez exaustivamente com base na modernização do samba de João Gilberto -, até aqui quem dava o tom era o percurso pessoal dos artistas (as artes plásticas, algumas preferências literárias), somado a um recorte de certa faceta ruinosa da tradição brasileira (Nelson Cavaquinho, Goeldi).  
Num momento que assiste ao desmonte de uma sociedade baseada em extensão de direitos e expectativas democráticas, certamente boa parte do impacto que a música de Romulo Fróes exerce no presente vem desse recorte da face especialmente afeita ao irresoluto e ao decomposto na cultura brasileira. Mas daqui em diante, ao que parece, tornando-se ou não material conscientemente trabalhado, os dilemas mais próprios à sustentação de um projeto musical popular consequente no Brasil estão entrando no raio de consideração interno às canções.  

  1. Melancolia, aqui me tens de regresso

 Não só em pequenos traços referenciais das letras de Barulho feio isso aparece. Não só na colagem, que quer exteriorizar o trabalho e nesse movimento pô-lo onde ele realmente sente que está (ou não). Depois de um disco tão pulsante, criativo e bem acabado quanto Um labirinto em cada pé, reconhecido pelo próprio compositor como um ponto de maturidade, a tensão cai drasticamente. Desaparecem as interessantes explosões resfolegantes que testavam modos de enunciação falada (como a de “Ditado” e “Anjo”), direção coerente com o clima geral de um disco agora contido - cujo grupo instrumental dispensa aliás a percussão, como era o caso em boa parte de Calado e Cão, mas não nos dois últimos.
O andamento em geral mais desacelerado, o clima circunspecto imposto pelo canto murmurado - mesmo que rodeado de ruídos infernais - sugere um impasse, aqui e ali fixado. Os sons radiantes do disco anterior (o belisco afiado do cavaquinho, a guitarra em primeiro plano, o saxofone vivaz não raro irônico) dão lugar a uma paisagem sonora que tende do negro ao cinza, já sugeridos no material gráfico do álbum.7 Como reiteram, a propósito, a insistente queixa pela falta de luz, o custo em sustentá-la (“A luz dói”), ou, para usar uma expressão mais precisa, a sensação de evanescência de todo lugar ao sol.
Processo esse que, passando pelo empréstimo de toda uma tradição de pássaros agourentos da canção brasileira - filtrada pela homenagem às vezes um pouco gratuita à relação entre Tropicália e penúria no semiárido latifundiário nordestino -, chega a traçar um paralelo entre beleza, sofrimento urbano contemporâneo e cegueira infligida:

   
 

“Ê cadê sol
Cadê nenhum sol             
Cadê ê
Cadê luz cadê

Não há luz
Não há, não há
Cadê cadê você
Cadê meu bem

Eu assum
Preto assim”

   


Até mesmo nas canções de assunto imediatamente afetivo esse traço se insinua. Não por acaso, os sambas-canções - e especialmente seu tom, descontextualizado -, ponto de onde partiu a estética de Romulo Fróes, retornam modificados, dando contorno a uma gradação de atitude que beira o emotivo, aspecto dessa estética que caíra para segundo plano desde No chão sem o chão. É o que se nota na antiga “Noite morta”, que, guardada e inserida nesse disco, faz pensar num tipo de expectativa - minada pela desconfiança e pelas negativas, mas ainda assim uma expectativa - pelo que muito provavelmente não virá, sucedendo a um acontecimento de ordem incerta, quase enigmática:

   
 

“(...)

Quem não viu que vá embora
Como as aves, quando seca
O chão do chão da nossa história.

Quem velou a noite morta?
Quem pergunta ao pé da porta
Se o amor existe ou só demora?”


   


Noutro belíssimo samba, “Como um raio” - acompanhado apenas em violão, num pêndulo de graves e médios algo fúnebre e estruturado numa harmonia cadencial que soma força à conclusão -, a sedimentada prática discursiva do gênero, na qual se inverte a mácula moral de praxe destinada aos de baixo tensionando-se o campo de legitimidade fissurado entre marginália e autoridade oficial,8 é transposta para um contexto em que, na verdade, visibilidade e invisibilidade pública se disputam. Devido a vocativos cortantes, mas originalmente carinhosos, como “meu coração”, tudo isso se passa, decerto, num campo afetivo lupiciniano que leva a imaginar em primeiro grau a revanche do amante preterido. No entanto, visto à sombra da gravitação geral do disco, o coração que, romântico, ameaça tomar a paisagem que lhe volta as costas, está dando vazão a uma demanda diferente. Aqui, novamente marcada pela experiência do compositor em risco de ostracismo público:

 

   
  “Dizem por aí que não sou nada
A pessoa mais errada
Que perdi a direção

Dizem que deixei no violão
O que em mim tinha de bom
E que eu já nem sei cantar

Mas atenção escuta o rádio
Minha canção, minha canção
Vai acender o seu silêncio como um raio

Mas olha bem no meu retrato
Meu coração, meu coração
Vai acender o céu imenso como um raio”


   



É de mesma ordem a experiência temporal devoradora que opera em algumas canções, certamente afim às rápidas ondas que se sucedem num átimo, erguendo e destruindo coisas belas, com ou sem ditadura militar. Em “Espera”, diferentemente do que acontecia em “De Adão pra Eva”, a teatralidade tragicômica amorosa - algo reminiscente dos “Três mal amados” de João Cabral - já não vem do registro desnaturalizante das expectativas díspares entre mulheres em emancipação rejeitando papéis passivos e homens defrontados com seu próprio desejo de acolhimento,

   
 


“Ela: Eu te dei os melhores piores pedaços da minha cara
(...)               
Ele: Ergue as mãos para o céu e aperta o lençol, cobre as minhas costas
(...)”

   

 

A graça triste vem, antes, da sensação de que a experiência, cujos contornos já eram difusos, se esvai numa velocidade tão bruta que ameaça a carnatura frágil de uma sensibilidade que, a princípio, se declarava ironicamente afim ao desnaturado. Sobre uma oscilação harmônica sem progressão entre dois acordes suspensos [C#m11 e D#m11], o duo vocal masculino/feminino, continuamente sobreposto em 8ª, desdobra-se num instante tão abreviado que sua elaboração fica restrita ao motivo de duas notas (aliás, mecânico como um bipe de metrô), exposto, invertido, expandido e logo recolhido à mesma 2ª maior descendente que, há meros 1:25 minutos, abrira a canção.
Uma narrativa telegráfica portanto, que se esboça e apaga entre um flerte ligado a uma topada casual (“espera!”) e uma súplica, disfarçada em mal-entendido (“espera!”):

   
 

“Espera

Abre devagar
Usa devagar
Abre devagar
Usa devagar

A ponta do dedo
Na ponta da língua
Nem aqui tão dentro
Nem assim tão longe
A boca do inferno
Na pele de louça
No canto da mesa
De costas na boca

Me diz onde é
Conta como dói
Mente para mim
Fala por nós dois

Abre devagar
Morde a minha mão

Quando vê
já foi embora

(Espera)”


   

 

                             
Em geral, não obstante a continuidade de uma atitude negativa, marcada por uma disposição lamentosa - base da visão de mundo e do princípio estilístico dessa estética -, já não se encontra aqui o resoluto movimento de ir ao encontro do mundo, que se discernia em Um labirinto em cada pé, com seu modo gauche de afirmar perícia em formular desejos, tocar e confundir. Quão distante não está a abertura desse disco da verdadeira ignição musical do anterior, em “Máquina de fumaça”, onde o eu lírico, “saindo pela porta” e “entrando pelo cano”, procurava “enxergar melhor” o estranho mundo que atravessava, com sua banda “ligada no plugue”.
Para não falar na tenebrosa canção de ninar a cappella, “Poeira”, que deveria consolar mas confronta o ouvinte com a tristeza pelo objeto perdido,9 há uma série de faixas em Barulho feio que indicam o arrefecimento de um humor anteriormente mais aceso. “Peixinho triste”, acompanhado apenas pela guitarra limpa de timbre rascante, confessa que seu coração não é mais “vermelho”, preso num aquário tão azul quanto o entorno. Em “O que era meu”, conduzida por uma batida de bossa nova desacelerada ao violão - atravessada por uivos de guitarra oitavada em whammy bar e um sax que imita, distante, o gemido da cuíca -, o “Deus que cresce na palma da mão”, como numa inversão do conhecido ditado sobre pássaros livres e cativos, é feito da seguinte hostil tirada conclusiva:

   
 


“Quem vai dizer
O que era meu?
Quem perguntou
Já respondeu”

   



  1. Corpo-ódio, vazio rumorejante

Isso não quer dizer, no entanto, que uma espécie de movimento ativo não aconteça. Desde No chão sem o chão, a objetificação das atitudes exteriorizantes nas canções se fixavam predominantemente em transposições de procedimentos plástico-narrativos, compondo não raro figuras que tratavam de posicionar negativamente Eu e mundo. “Anjo” é um exemplo disso.10 “Ditado”, do disco anterior, exortando o ouvinte com saxofones de samba-rock ao mesmo salto para o desconhecido dado pelo Eu, figurava-o como um bicho, dotado de guelras nas costas, engolido pela bíblica baleia de Jonas, onde o caos cintilante do mundo, digerido, se duplicava.11
Mas enquanto que, em Um labirinto em cada pé, esse procedimento urdia criaturas que punham nossa história em xeque, levando essa estética fundamentalmente solipcista a atentar contra seus limites (como em “Jardineira”, “Boneco de piche” e “Filho de Deus”), em Barulho feio, disco predominantemente reflexivo, quando há figuração - fechando sistema com empréstimos dos parceiros letristas numa espécie de lance de marketing -, elas são menos derivadas de emblemas da cultura brasileira, são menos reveladoras em sua elaboração, e - mais importante -, estão marcadas por uma postura predominante de recuo, que se sente como generalidade.  
Digamos que a insólita situação que permitia ao eu lírico estender um microfone à Jardineira, em meio a uma enchente, antes de ela “sumir no pó mas ser entrevistada”, a despeito do ponto de vista ferino, punha em contato esse imemorial lamento popular pelo amor perdido à janela com crueldades menos casuais, ratificadas pelo ainda atuante interesse público antissocial. Em Barulho feio, no entanto, predomina outro traço, mais afim a um ponto de vista que decreta natural (ou trágica) a falência de todas as boas aspirações e que mantém essa estética numa posição politicamente segura. A saber, uma constrita à audácia técnica, à ambivalência discursiva e a um caráter elitista pelo revés, marcado pelo horror epitelial contra a vida danificada e, no entanto, sempre pronto a exercê-lo em suspensões ironizantes.
É o caso da afirmativa “Pra comer”, com letra de Climachauska, outra toada fúnebre em que o arrepio frente aos urubus que se alimentam de lixo e morte - além de provir do tenebroso guincho grave criado pelo saxofone - tem a ver com nossa vivência da abstração concreta mercantil que (des)organiza a vida, fazendo-a funcionar como segunda natureza. Com o problemático detalhe de que, aqui, o eu lírico se solidariza com a instância de corrosão, não com a de resistência ou sofrimento, como era a tendência predominante, p. ex., em “Filho de Deus”:

 

   
 

“(...) Vou sobrevoando a multidão
Lá de cima o lixo é um corpo só
Nós não temos pressa
Nós sabemos ver
O que há de bom pra se comer

Pra comer, se lamber,
E voar pro sol”.  


   

 

 

Como dizíamos, essa é uma postura ativa sim, mas, como se vê, já não tão ligada a uma vontade de descentralização, que a técnica do disco promete com sua colagem do real e que Um labirinto em cada pé aperfeiçoara, com sua grotesca estatuária do Brasil extraoficial moldada em piche elétrico.
No mesmo sentido, avultam declarações brutas que despontam por trás do já não tão chocante dandismo majestático - “condenei meu semelhante com o peso de uma pena” -, mas, como sempre, espremidas entre referentes borrados, num mundo dobrado sobre si mesmo. Tudo se passa como se a consideração sobre o entorno refluísse para o interior, de modo que os indícios da vida externa são fixados numa agressividade quase direta, paralisada em objeto autorreferente. Formando um ponto de partida bastante comum nas canções, isso cria certo contraste entre o alto teor condenatório do discurso e a ausência de indício palpável de ameaça, como se acompanhássemos um cego ou acidentado, vituperando contra o que não está lá.12
Na faixa promocional “Ó”, divulgada antes do lançamento oficial do disco e com letra de Nuno Ramos, esse dúbio lugar discursivo se refrata em diversas imagens, sempre conotando violência bárbara estilizada e, com isso, trazendo à baila, de viés, nossa história pontilhada de tortura instituída, imiscuída à relação entre sensibilidade artística e intuição trágica. Assim, a pré-histórica prática ritual de se extrair vaticínios dos intestinos de um animal sacrificado erige o irmão-canção, buscado pelo Eu nos antípodas das vulgares pitonisas do “sonho rosa dos otários do tesão”. O exterior é sondado por um olho baço, arrancado pela própria mão. Etc.
No refrão, entretanto, fazendo contraponto a esse olhar mais alentado na história, que subjazia à letra, pede-se que esse bicho se manifeste. Ou melhor, que, movido por algo entre o nojo e a pietá pelo “imenso sacrifício de talento”, esse esquartejado corpo recomposto fale (!). E o que se ouve - e aqui está o problema - soa mais a cacoete estilístico, repondo apenas o dado técnico da autorreferencialidade, que a verdadeiro remate formal.13

 

   
 

“Cara
Um ódio novo
Peito
Um ódio novo
Nuca
Um ódio novo”

   

 

  1. Conclusão

 

Num dado ponto dessa mesma “Ó” - que poderíamos chamar seu ápice - o vazio ocupado pelo buchicho sonoro da pista gravada é comentado pelo Eu que cisma sobre o que o aborrece, ao mesmo tempo lembrando ao ouvinte o que absorve e o que rejeita da bossa nova de Tom Jobim:

 

   
  “Óóóóaaai!
Esses caras que cochicham
Esses caras que cochicham
Esses chatos que recitam
Esses corvos que copulam
Esses chatos que copiam
a canção do amor demais”


   

 

 

Se lembrarmos que a colagem de som externo alheio funciona como vestígio de vida real, aqui quatro vezes reduzida a objeto indesejável; e que esse, justamente, é o procedimento que busca, em Barulho feio, levar a composição de Romulo Fróes para fora de si mesma, unindo autorreflexão e tentativa de se posicionar com relação ao mundo, notaremos então o que foi deixado para trás. O lamento trágico (ó!), que emenda diretamente num muxoxo de desgosto (ai!), indica que a mesma posição de sempre se repõe, sem que o movimento de progresso esboçado no disco anterior se complete.
Decerto não seria o caso de cobrar de uma estética que põe a invenção acima do valor documental uma resposta direta ao que se esboça no horizonte social próximo. Aliás, em choque com a simpatia nacional-popular que sempre marcou a canção popular brasileira,14 a recusa à comiseração romântica mais ou menos pitoresca, parte do arsenal de poses do esteticismo, compõe uma das novidades do trabalho de Romulo Fróes. Ao mesmo tempo, não é esse o caminho que esperávamos na saída do labirinto onde o compositor, num grande acerto, nos havia colocado. E, em todo caso, também essa dificuldade de avançar tem sua afinidade com o país, em cujos quatro pontos do cão, desde outubro de 2014, se anda ouvindo outro tipo de barulho feio...       

         










fevereiro #

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1Por exemplo, esta, de Leonardo Lichote: http://oglobo.globo.com/cultura/musica/critica-barulho-feio-de-romulo-froes-13715899.

2De pronto, é preciso apontar que os próprios compositores estão tentando pensar o caminho específico que buscam para compor. Nesse sentido, um dos artigos de Kiko Dinucci lembra que seus arranjos, feitos com base em segmentos repetitivos melódicos em sobreposição - numa lógica algo hipnotizante, de origem religiosa -, destoam da harmonia em bloco, constante na MPB desde que a bossa nova eliminou o bordão do baixo no violão de samba e adaptou traços da harmonia do cool jazz. Segundo o compositor, esse procedimento, inspirado imediatamente em Estudando o samba, de Tom Zé, nos afrossambas de Baden Powell e se complementando por influência da música pop do Mali e de Angola, abre uma ampla linha alternativa na canção brasileira, recuperando a primazia da horizontalidade sobre a verticalidade, do ritmo sobre a harmonia. E, também, ressaltando o elemento africano presente na raiz do samba. Parte da mesma ideia está exposta nesta entrevista: https://desova.wordpress.com/2014/03/13/entrevista-com-kiko-dinucci/

3Num artigo de Romulo Fróes, o compositor propõe um esboço de sua geração (incluindo não só os paulistanos Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Jussara Marçal e Douglas Germano, mas também a nova geração carioca ligada a Kassin e a Caetano Veloso), como uma que, justamente, contrariando a ideia de um grupo fixo e da coerência de um fenômeno cultural de época (como o Manguebeat), se caracteriza pela constante reorganização dos grupos, ao sabor dos novos projetos, que unem sonoridades próprias em combinação sempre renovada. FRÓES, Romulo. Te convidei pro samba, mas você não veio. Acesso em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002009000100015&lng=en&nrm=iso.

4Dado esse que se complementa nos artigos de um dos parceiros centrais de Romulo Fróes, Nuno Ramos, que recentemente publicou na Revista Piauí um longo ensaio dedicado aos impactos da falta de condições e de transitividade da cultura brasileira, abrangendo Graciliano Ramos, Lygia Clark, João Gilberto e Mira Schendel. RAMOS, Nuno. “No palácio de Moebius”. Revista Piaui, 86, Nov. 2013, pp. 70-78.  

5Variações desse mesmo raciocínio estão na boca de todos, levando a rótulos nem sempre originais que procuram dar conta do lugar estranho em que essa geração se encontra. Um lugar, note-se, não exatamente idêntico ao da já prolífica galeria de “marginais” da cultura brasileira, que essa mesma geração não deixa de chamar a seu favor na ordem das influências (Vanguarda Paulista, João Antônio, Jards Macalé, por exemplo). Assim multiplicam-se os equívocos com seu lado de verdade, na medida em que o critério de marginalidade ou vanguardismo não é claro.  Quem seriam eles - eles mesmos refletem, em artigos disseminados em blogs jamais lidos por quem só lê jornal? A turma do Kiko, da Jussara, do Thiago, do Marcelo e do Rodrigo que constam na nossa lista do Facebook? O underground paulistano dos anos dois mil e poucos, quando nossa autêntica boemia não fumante paga consumação na Baixa Augusta? A geração do YouTube e da divulgação pela internet, tão bem manejada pelo Radiohead quanto pelo MC Brinquedo? Os compositores que se apresentam ali no circuito do SESC, no Puxadinho da Vila, na Casa de Francisca, mas pouco tocam no rádio ou na TV dominados por acordos de mesmice e somas vultosas? Sobre o depoimento, ver https://www.youtube.com/watch?v=qRtQkCvqy9E.

6A nomeação desse nó em que se confundem marketing, busca de esteio na tradição e sustentação de um projeto de MPB em contexto de desregulamentação das relações trabalhistas e mudança das formas de produção adveio em conversas com Arthur Vonk e Renan Nuernberger. Dois estudos que formam seu pressuposto estão em “Cultura e política (1964-1969)” In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, pp.61-92 e em “Verdade Tropical: um percurso do nosso tempo”. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-111.

7Não por acaso, trata-se de uma reprodução da instalação de Nuno Ramos Bandeira Branca, cuja função, descontada a polêmica dos urubus, era justamente pôr em contato o pavilhão contemporâneo da Bienal com uma atualização - e um deslocamento, afinal - da mais lamentosa marcha carnavalesca (e portanto popular, o que muda as razões em jogo) já composta. 

8Penso nos numerosos sambas em que uma figura popular, o mais das vezes um malandro, inverte uma acusação, trazendo à tona os podres e faltas alheios - de praxe, os da autoridade instituída. Por exemplo, o depoimento do vadio apaixonado e docemente petulante ao delegado em “Juca” (Chico Buarque) e a vagabundagem como modo de vida autêntico, oposto à hipocrisia das classes dominantes, em “Filosofia” (Noel Rosa).  

9Nessa canção o eu lírico pede a alguém que “erga os olindos pro céu”, como consolo para o ato de lhe mostrar “seu brinquedo dentro d’água” e a “rosa que também sofre e chora”: é um dos procedimentos-chave em seu estilo, no qual interioridade e exterioridade se equiparam pelo halo melancólico, sendo os objetos e expressões distorcidos pela formulação linguística metonímica. Lembrando que, compondo parte da segunda tópica freudiana centrada na análise de fenômenos ligados à pulsão de morte, a definição clássica da psicanálise para a melancolia consiste, justamente, na depressão moral superegoica advinda da cisão permanente do Ego entre os impulsos de vida, presos num circuito mnemônico fantasmático, e o investimento libidinal num objeto incerto, cuja perda o psiquismo não pode assimilar, como seria o caso num exorável e paulatino processo lutuoso. FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.

10Ver nesse sentido http://www.chicpop.com.br/#!Notas-para-uma-Leitura-de-Anjo-de-Nuno-Ramos-e-Rômulo-Fróes/cmbz/552689e60cf21933cd4b8067.

11Letras como a de “Ditado” de Climachauska, com sua imagética reificante quase surreal, ligada ao motivo do salto para o desconhecido, trazendo à tona metáforas clássicas do modernismo como um “coração alimentado por sangues (ou musas) venais e solares”, revelam na escrita a inequívoca influência da lírica moderna, num escopo que vai de Baudelaire a Beckett, passando por Rimbaud. Deveria chamar atenção que, sendo como é uma novidade no campo da música brasileira, essa transposição ainda não tenha sido bem indicada na mídia dedicada à música popular, mesmo nesse momento ainda incipiente de recepção.  

12Outra situação transposta da literatura, especialmente de romances do pós-guerra, como Malone morre e Leite derramado.

13Uma questão interessante aguardando exame nas canções de Romulo Fróes, e trazida por Nuno Ramos, é o fato de certos traços negativos dessa obra funcionarem mais como constante de estilo que como gradação de atitude diante do presente. Pode-se notar isso, se compararmos o constante dandismo modernista atualizado via “Mau vidraceiro” (Baudelaire) com o ódio drummondiano em suas duas fases:  a de “A rosa do povo”, em que funciona como solução de compromisso externalizada entre a culpa de classe e a solicitação política, e a de “Claro enigma”, em que, introjetado e espiritualizado em relativo hermetismo, assinala uma reação ao fechamento de horizontes políticos. Essa ideia foi elaborada em conversas com Fernando Vidal Filho.

14Longe de ser autoevidente, a simpatia nacional-popular foi um dos fatores que ligou o modernismo de 22 à história da canção brasileira, na zona de lusco-fusco em que a alta cultura se confundia com a boemia. Para não falar nas modinhas do poeta Domingos Caldas Barbosa, compostas nas ruas do Rio colonial e apresentadas na corte portuguesa, o exemplo paradigmático é o trajeto de Jaime Ovalle, frequentador da Lapa, colaborador de Manuel Bandeira, músico próximo a compositores como Sinhô e Donga. Mas a questão pode ser estendida também aos tropicalistas, frequentadores do Beco das Garrafas em Ipanema, que de certa forma tentaram conjugar os cantos das lavadeiras de Irará (Tom Zé) com leituras de poesia concreta, em arranjos de Rogério Duprat. A inversão desse antigo traço democrático da canção, certamente fundamental para sua politização na década de 1960, chama atenção e merece estudo. Sobre a relação entre romantismo brasileiro e música popular ver “Domingos Calda Barbosa: a modinha” e o “Pecado das orelhas” In: TINHORÃO, José Ramos. História social da música brasileira. São Paulo: Editora 34, pp.115-125. Sobre Jaime Ovalle, ver “Presença do ausente” In: ARRIGUCCI, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp.64-71. Sobre a Tropicália, ver especialmente o primeiro período passado no Rio de Janeiro em “Paisagem útil” In: VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, pp.112-119.