revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Correspondência entre Fabiana Faleiros, Marília Garcia e Luísa Nóbrega em torno de textos de Hilda Hilst

 


0 - HH para FF

 

Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim.

Cansei-me de leituras, conceitos e dados. De ser austera e triste como consequência. Cansei-me de ver frivolidades levadas a sério e crueldades inimagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo. Sou velha e rica. Chamo-me Leocádia. Resolvi beber e berimbar antes de desaparecer na terra, ou no fogo ou na imundície ou no nada.

aquieta-te, deixa-me limpar o molhado da cara
a gosma da boca, aqui, limpa, já está bem, está bem, preciso continuar, olha, quis te tocar lá dentro na ferida da vida, ouviste? segurei o toque para te fazer em dor, em mais dor, ouviste? ah cadela lixo porca maldita eu mesma
não fales assim, não esta hora
não é hora da morte? por que me interrompes nesta hora? cala-te, é morte minha. sempre que te deitavas comigo, homem, a carne era inteira loucura e sedução, não enfiava os dedos, o sexo, não sentias?
sim
a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender. por isso é que me recusava muitas vezes. queria o fio lá de cima, o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes?
que OUTRO mamma mia?
DEUS DEUS, então tu ainda não compreendes?

 

Gostaria de ser coeso, calmo, frívolo. Sim porque há coesão e calmaria na frivolidade. Ou não pensam assim? Então repensem. Tinha horror ao sexo. Cheiros gosmas ginástica convulsão. Horror principalmente ao silêncio daquelas horas. Melhor, horror dos guinchos e outros sons que se pareciam aos sons das funduras, dos poços, das borbulhas. Gostava de sentar-se e ler. Principalmente Chesterton e sua Ortodoxia. Os amigos perguntavam: tu não gosta de foder, não? Não, ele respondia, tenho nojo. Nojo de quê? De corpos se juntando, dos cheiros, dos ruídos. Foi ficando sozinho com seus livros e seu nojo. Gostava de pensar mas pouco a pouco foi sentindo o cheiro das ideias, e as mais possantes, as mais genuínas, as mais veementes tinham o mesmo cheiro do sexo e daquela gosma da casuarina. Então pela disciplina e pelo jejum foi esvaziando a mente. Via cores e as cores não tinham cheiros e isso era bom. Sentou-se no chão da sala e ficou ali até perceber que tinha se tornado um ponto vivo de luz dourada. Até que o garotão o acordou e disse: qué mais uma berba, doutor?

 

0 - HH para LN

 

Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim.

Quando gozo espio a amplidão. A minha amplidão aqui de dentro. A que não tive, a que perdi. Perdi tantas palavras!

Minha vida tem sido um sair de todos os buracos. Sair... imaginem, estou cada vez mais fundo, ou saio de um e entro noutro, buracos pequeninos, maiores, agigantados, e outros grandes buracos cheios de excremento, e eu tentando apenas inventar palavras, eu tentando apenas dizer o impossível.

Miudez, quentura, gosto. Mover-se pouco. Não dizer. As mãos na parede. No corpo. Pensar o corpo, tentar nitidez. Hillé menina tateia Ehud menino. Dedos dos pés. Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? E uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Na comida não se põe pé de porco? Por que tudo deve morrer hen Ehud? Por que matam os animais hen? Pra gente comer. É horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa depois vira bosta. Fecha os olhos e tenta pensar no teu copo lá dentro. Sangue, mexeção. Pega o microscópio. Ah, eu não. Que coisa a gente, a carne, unha e cabelo, que cores aqui por dentro, violeta vermelho. Te olha. Onde você está agora? Tô olhando a barriga. É horrível Ehud. E você? Tô olhando o pulmão. Estufa e espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai. Não tem nada que só entra? Não. E Deus? Deus entra e sai, Ehud? Isso não sei.

O que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas, simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas citações a cada instante, afagos desprezíveis de mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas!

Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre abaixo de vossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim, plantados nas gengivas luzentes! Cláustica Clódia atravessa ruas, avenidas e brilhosas calçadas. Ó, pelos deuses, adentrei vossas urnas de basalto porque a leoa ronda vossas salas e quartos! Quer lamber-vos a cona, quer adentrar caralhos, quer o néctar augusto da vagina e falos! Centuriões, moçoilos, guerreiros, senadores, atentai! Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha e cresce! Trançai vossas pernas, trançai vossas mãos atentas sobre as partes pudentas! Não temais a vergonha de andar pelas ruas em torcidas posturas, pois Clódia está nas ruas!

 

0 - HH para MG

 

Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim.

Por isso quem sabe envolvi cada palavra na chama cor de laranja, pena então que os versos só consigam vigor a adequação quando enfim já para nada servem. Os do outro lado entendem quando sobrevoo colinas de duro papel e de cimento, sobrevoo a terra, pretendo afastar-me e ainda não posso, os meus fazeres mínimos talvez deem sequência a uma vida desjuntada como a minha, hoje veio à casa uma jovem senhora, carregada de modismos, de nadas, olhou as geringonças, disse puro, eu disse o quê, senhora?

Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem na barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pelos pretos, babar no seu umbigo, entupir-lhe as narinas de hálitos melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta.

Rimbaud tinha dezenove quando escreveu aquilo é, mas é raro, moçoilos são fracotes no UMM, e então continuando, um de vinte, vinte cinco talvez, duro e vigoroso, um que não sucumba diante do mosaico intumescido de cores vivas onde desenhas a vida, e num canto lá em cima desse grande mosaico um negrume de vísceras, um desespero só teu, esse negrume teu que busca es que busco La Cara, La Oscura Cara bobagem. Então continuando, esse muito jovem há de sorrir diante do teu discurso, te põe de imediato a mão nas tetas e diz teu Deus sou eu, Hillé, já me encontraste, e se ainda continuares com tuas pretensas justas palavras e tua cara de pedra quando falas na busca, esse muito jovem há de te mostrar já sei. Uma bela caceta isso. E delicado mas firme te faz abrir as pernas e repete sei. Teu Deus sou eu.

 

             
 

     
             

 



1 - FF para LN

 

Chego em casa
sozinha depois do show
.

Chego em casa
depois do show
e digito minha senha
nas redes sociais
"filhoounao"
.

Depois do show
chego em casa
eu que no colégio tinha fama de galinha
por ter desenvolvido os seios grandes
antes
das demais colegas

.
Já em casa
depois do show
começo a conversar com a amiga
que sofria bullying de sapatão
pois usava botas ortopédicos
para corrigir um problema de pé chato

.

Chego em casa
depois do show

e leio
"inseto em genitália e éter eram formas de tortura"

e leio
"não estupro você porque você não merece"

e leio
"que tu tem que e voltar feito uma chuva feito um raio forte e quando tu chover eu vou ta de boca aberta na rua feito um cachorro sedento"

e leio
"releio o que tu escreves pra mim e teu peso dobra, triplica/ teu corpo eu já joguei pro alto e sei que tu cabes nos meus braços e que eu sou capaz de te equilibrar na ventania/ eu não sou capaz é de equilibrar tuas palavras/ quem te escreve é o nada para quem tu endereça os teus e-mails"

.

Chego em casa
depois do show
e faço a conta de quanto ganhei
nos últimos shows

.

Me depilo em casa
sobrando dinheiro
pego táxis

.
No taxi depois do show

Eu já te conheço, já te peguei nesse lugar? Eu disse não, nunca vim aqui antes. Daí ele disse então eu já te levei em outro lugar. Você não é daqui, né? Por que eu já conversei contigo, você ficou conversando bastante comigo, sei pela tua voz manhosa, essa voz de quem parece que está morrendo.

.

Depois do show
me arrependo
de não ter ficado em casa
escrevendo

.

Escuto um homem gritando na rua
da minha casa:
eu vou atravessar o vale da morte
quando eu morrer quando eu acordar
vai ser pior aqui filho da puta em vida
eu te garanto que te ponho de baixo do teu prédio demônio eu tenho só pq não conheço o amor
me explica aquilo
que eu gusto

 

 

1 - LN para MG

 

tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei

como se eu estivesse numa cela. numa selva.
só que as grades da selva eram bambus.
quase quebrei os pulsos
ao inclinar um pouco os ferros
tentando vislumbrar alguma coisa
além dos troncos

.

toda vez que a lua entra em quarto minguante
um cano irrompe pelo asfalto.
você caminha pela rua e encontra um triângulo isósceles delimitado
por fitas com diagonais pretas e amarelas

tem água demais, não dá para atravessar a calçada
o banheiro de cima de fora tem um cheiro ácido, pungente

.

de vez em quando abro buracos com uma furadeira.
então escorrem cascatas de bolas de gude escuras,
estalando umas nas outras, fazendo ruídos.
eu abro buracos em muitos lugares distintos,
como a parte de trás do pescoço, a parte da frente,
no peito o osso externo
debaixo do umbigo, a virilha

às vezes não é uma furadeira mas uma daquelas
lâminas metálicas giratórias que rodam sobre si mesmas,
numa espécie de canto de uma nota só
sustentado, obsessivo

com elas eu faço um corte preciso nas costas.
começo logo acima do cóccix e vou até a base da nuca
abrindo o peito por trás

.

as costas são páginas duplas
que você escancara ao mesmo tempo
como se rasgasse um embrulho

o tampo da tua garganta faz um click
quando a carne se descola

.

certa vez abri um buraco redondo exatamente no meio do tronco
deixei passar por ele o jorro de uma mangueira de incêndio

eu quase nunca uso a palavra corpo eu quase nunca uso a palavra deus
cada vez que roço a tua pele vomito um réptil desmaiado

.

um cara recebeu esses dias
instruções expressas para uma espécie de ritual

escreva num papel a frase que precisa escorrer pelo ralo.

recorte as sílabas com uma tesoura de escola
embaralhe
e mantenha os olhos fixos
até descobrir aquela/aquelas
que você precisa chamuscar.

deposite a sílaba escolhida em uma frigideira
aqueça em fogo baixo
espere até que exploda em câmera lenta.
coloque-a então na boca, mastigando cuidadosamente
até que a mistura se torne viscosa.

engula afoito o líquido branco.

.

ah como o topo da minha cabeça arrepia todo
enquanto eu arranho essas citações de madrugada,
a te imitar

.

deixo as canções girando no estômago
como numa máquina de lavar

quando ajoelho diante da britadeira
o pensamento dá um salto mortal

 

1 - MG para FF

 

1.
ela disse "aqui começa o deserto"
e aquele era um começo.
não gostava de colocar o fatos
numa sequência arrumada:
"os jornais estão cheios de histórias
com começo, meio e fim"
por isso ficava no escuro
e marcava as palavras em laranja
destacando só os começos.
o primeiro era o deserto:
aqui começa o deserto.

2.
hoje veio à casa uma jovem senhora,
olhou as geringonças e disse puro
e eu disse o quê, senhora?
"eu tinha 4 anos,
e a guerra tinha acabado de começar."
hoje gritei demente:
vem, madama, vem. e ela chegou em casa,
era uma jovem senhora, de óculos escuros,
e ela disse: puro.

3.
no terceiro começo
estou num trem
como se começa uma conversa com alguém?
ela disse
de qual terminal sai o seu voo?
eu disse o quê, senhora?
estou num trem
a viagem de trem tem começo meio e fim
e ela disse:
"a verdade é que não gosto de colocar fatos
numa sequência ortodoxa."

4.
"o estômago dos polvos
é assombroso". esse é um começo,
mas não é um livro nem carta
esse começo não estava lá.
"você sabia, madama,
que o estômago dos polvos é assombroso"
mas o que começa assim?
e os olhos? você lembra dos olhos dos polvos?
voltemos voltemos por favor
voltemos ao começo:
para ver no escuro
uma mulher injetou nos olhos um colírio
feito da mesma substância
que existe no olho dos peixes
que moram no fundo do mar.

 

             
 

   

 
             



2 - LN para FF

 

faz uns dias tinha um pastor
num palco montado na praça
repetindo aquela frase do apocalipse
e os que não morreram pedem pela morte,
mas ela não vem

enquanto ele falava
bexigas coloridas enchiam e estouravam
dentro da boca
a seus pés, ao redor do palco,
brotavam flores artificiais

"talvez seja nossa missão registrar isso que se passa aqui", alguém disse
e sacou uma câmera

o pastor continua vociferando
alguém discorda
as folhas de plástico me arranham as omoplatas
a câmera arde
eu escuto mas só escuto mais ou menos
eu não entendo nada quando estou de pé
na fileira de trás

ontem acordei com um hieroglifo
desenhado nas costas
estou planejando visitar um canil
um dia desses

estou dormindo do lado de um cara
que dorme com uma máscara cinza
de vez em quando ele começa a tremer
e eu desperto

hoje ele me mostrou as esculturas dele
tem uma que me lembra aquele sonho do Freud
a injeção de Irma

tem outra que parece um anus
mas se chama coelho
tem uma que parece uma vagina
mas se chama porta
tem uma em um ouvido brota
de uma viga de madeira

tem um livro na mesa que eu não sei de quem é
chamado "os surdos"

o ouvido na viga de madeira me lembra aquela expressão
"surdo como uma porta"

eu gosto disso das partes do corpo parecerem próteses
eu gosto disso das partes do corpo serem amputáveis
eu gosto de próteses, eu gosto de botas ortopédicas
gosto dessas superfícies cor de pele
e textura de borracha
escrevi isso, uma vez
"amo tudo o que é sinistro"

às vezes eu tenho que escrever sobre uns livros idiotas
às vezes os livros não são exatamente idiotas, mas quase
num dos livros quase idiotas tinha uma crônica
em que uma mulher confundia rosas de verdade
com rosas artificiais
a autora falava disso num tom melancólico
como se as flores artificiais fossem uma espécie de sinal
do fim dos tempos

eu gosto/não gosto das flores artificiais
eu gosto/não gosto do fim dos tempos
quem sabe se a gente já está morto sem ter percebido
eu gosto dessa dança dos mortos vivos

se um cachorro arrancar meu braço
será que sai sangue ou tinta?
será que meu braço é de plástico?
eu não sei, eu acho bonito

:::

HH: Uma vez eu trabalhei numa fábrica de bolsas de plástico, foi depois daquela dos relógios, aquela que funcionou bem e que por isso não fecharam, então quando eu trabalhava nessa fábrica das bolsas, eu comecei a pensar assim:
As bolsas saem cada dia mais bonitas das lojas e eu saio cada vez pior. Continuei pensando: o que é uma bolsa de plástico? Uma coisa que não pensa, uma coisa morta. Pensei também: quem vale mais? Eu ou a bolsa de plástico? Eu. Apesar de que se alguém encontrar eu e a bolsa jogados fora, vão escolher a bolsa. A bolsa guarda coisas, é verdade, nunca tive nada para guardar, só o meu rato. 


2 - MG para LN

 

1.
no momento em que você atravessa
um cano irrompe pelo asfalto
ela dizia algo que tinha a ver com estar na selva
ou então com os ferros que impediam
a passagem
mas você não ouve bem
talvez seja o estrondo
talvez o cano no meio do caminho
os buracos se abrindo
enquanto atravessa
isso é o que acontece durante

2.
um dia chegaram as instruções:
escreva num papel a frase
recorte as sílabas com uma tesoura
mantenha os olhos fixos
até descobrir

você recorta as palavras
mantém os olhos fixos
o que acontece no meio
é como um tubo dentro
do tubo

3.
há algo mais que você quer saber?
sim
o que é?
não sei por onde começar
talvez pelo meio

4.
quase nunca uso
a palavra ____.
ao recortar as sílabas
gravo no aparelho os ruídos da tesoura:
o ruído da palavra ____
me lembra o estrondo daquele dia
enquanto atravessava a rua
as bolas de gude
estalando umas nas outras
o estrondo bem na hora
e os buracos se abrindo
no meio do caminho
enquanto atravessa

:::

HH: Tínhamos discussões intermináveis. Eu lhe mostrava meus textos e ele dizia: tu não tens fôlego, meu chapa, tudo acaba muito depressa, tu não desenvolve o personagem, o personagem fica por aí vagando, não tem espessura, não é real. Mas é só isso que eu quero dizer, não quero contornos, não quero espessura, quero o cara leve, conciso, apressado em si mesmo, livre de dados pessoais, o cara flutua, sim, mas é vivo, mais vivo do que se ficasse preso por palavras, por atos, ele flutua livre, entende? Não? E ajeitava os óculos, não e não. Achei conveniente não lhe mostrar mais os textos. Ele me encontrava e insistia: hof hof hof, fôlego, meu chapa, fôlego, espanta as nuvenzinhas flutuantes, dá corpo às tuas carcaças, afunda os pés no chão. Eu implorava: para com isso, para, um dia quem sabe tu entendes. Não entendeu. Na frente de amigos, de minha mulher, de meus filhos ele começava: hof hof hof, fôlego meu chapa, eu aperfeiçoava a minha butterfly, e meu ritmo era rápido, harmonioso, cheio de vigor. Gritei-lhe antes de vê-lo desaparecer, fôlego é isso, negão. Estou em paz. E dedico-lhe este meu breve texto, leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, muito mais vivo do que ele morto.

 

2 - FF vai para MG

 

Hoje em dia se escreve com os dedos principalmente
com um dedo: o indicador.
O indicador é o dedo que projeta é o dedo
que deveria apontar o desejo
e junto com os outros dedos
que se movimentam com velocidades distintas
deveriam tocar o corpo de quem escreve
os mesmos dedos
que antes se utilizavam da força para bater
na máquina de escrever.

Agora faço tudo com o dedo que indica:
o dedo que toca a tela
ao mesmo tempo executa a ação.
Por exemplo escreveram:
o som só pode existir se ele ressoa com um certo corpo.
E escreveram:
sendo o objeto de toda a história.

Ou seja, é
como se tudo já estivesse dentro de você você
escreve
como se escrever fosse a sua própria casa
como se escrever fosse a voz
que vai tanto para fora quanto permanece.

Coisas acontecem logo depois que escrevo:
deixo os outros ricos escrevendo,
deixo o meu corpo sozinho escrevendo.
Minha mão agora escreve no ar ao mesmo tempo
em que o ar vem de dentro dos objetos
que o corpo usa para tocar
o próprio corpo.

:::

HH: Agora, sujo de ódio, atiro o dedo pela janela. A noite está fria e há estrelas. São atos como esse, vejam bem, que fazem desta vida o que ela é: sórdida e imutável.

 

             
 

   

 
             




3 - FF

 

Hoje cheguei em casa
de outro pais
no aeroporto ouvi as mulheres do aeroporto
falando

elas falam todas as frases como se fossem frases
que começam e terminam com as mesmas palavras
ou como se fosse uma música que cantam escondidas
"remarcar, cancelar voo e alterar assento"
"a primeira fase é a fase crítica do voo"
"não se altera a origem e o destino
apenas a data e voo"

não falam de doenças
não falam porque em todos os países os mosquitos duram muito pouco
não falam porque o corpo de um mosquito é uma bola de sangue
ou de fogo
quando encosta na raquete de matar mosquito
por um segundo

.

o pai de uma das pessoas que vivem no país
foi anunciado como morto na televisão:
"foi encontrado morto"

era ele fazendo que tinha morrido para que não o matassem

até mesmo com o pai vivo até hoje
o filho pisca os olhos compulsivamente
retendo o surto na parte mais expressiva do corpo

depois que o pai voltou da morte anunciada
ele pisca como se estivesse em contato
com a luz que vem de dentro das telas
como se fosse algo absolutamente físico

durante todos esses anos
o filho viveu separado do corpo
como se fosse o condutor
que deixa flutuar o espirito
nos intervalos em que o olho está fechado

.

chikungunya significa "aqueles que se dobram"
é o nome da febre que foi transmitida para a mãe

as articulações que antes davam o movimento
agora doem
ela dobra no corpo
o joelho, os dedos, o pescoço

um mosquito (uma espécie de vampiro) picou a mãe
eles retiram o sangue do corpo da mãe e o levam voando
no seu próprio corpo

Agora que está curada
foi visitar uma prima que teve
uma parte do intestino
retirada através do buraco do umbigo

.

sonhei que tinha uma teta na altura do antebraço
na mesma altura onde mamam na gente

3 - LN

 

a falta de fôlego é imperdoável
sempre falta um pouco de ar
depois de uma noite de insônia

agora espatifou-se
mas eu tinha um bule desses de yoga
para desobstruir as narinas

respirar é difícil
a primeira vez que vi um cadáver me espantei com os
chumaços de algodão brotando no meio do rosto
que falta de decoro! como se o sujeito não soubesse
que é preciso retirar as coisas brancas do nariz
todos os dias, todos os dias

enquanto a gente não morre a gente ainda pode se espantar com as estátuas
enquanto a gente não morre a gente ainda pode rabiscar respostas na parede vizinha
enquanto a gente não morre vez ou outra a gente recebe nossas palavras de volta
como um bumerangue

às vezes a gente atira uma palavra na parede
e ela escorre imediatamente, como tinta
às vezes uma palavra se transmuta em uma mancha verde
durante as madrugadas
no livro que estou lendo
o narrador descreve uma das personagens
como uma mancha verde
de olhos vívidos

há algo mais que você quer saber?
sim
o que é?
não sei por onde começar

tento lembrar de uma palavra agora:
caos êxtase desordem torpor excitação
mas não é nada disso
por detrás de letra uma se esconde um enxame de diagonais labirínticas
com buracos aqui acolá, como treze andares inclinados de mesas de bilhar

talvez seja o estrondo
talvez o cano no meio do caminho
mas você não ouve bem

difícil distinguir falta de sono de entusiasmo anímico
quem sabe uma palavra que não desamparasse
mas isso não existe

3 - MG

 

1.
"coisas acontecem logo depois",
essa foi a deixa e
isso aqui é como o fim da
linha, como chegar atrasado
no breu sem saber o que dizer.
algo acontecerá
ela disse
mas por enquanto
acabou. a noite fria lá
fora, um breu,
e a vida sórdida e imutável.
precisa chegar ao fim dessa
história.

2.
os dedos seguem as teclas
ritmadamente. os dedos
seguem o fio, percorrem
rastros sem voltar atrás.
"você ainda verá
o som", ela diz
mas para onde vão os trens?
sente um medo
do breu da noite e
os dedos conduzem
ao outro lado.

3.
agora faz as malas
pois acabou o tempo.
deve atravessar os
espaços no mapa
seguir os fatos
numa sequência
ordenada.

4.
"o som só pode existir se ele ressoa
com um certo corpo".
você morde a cabeça do violão com força:
os dentes na madeira
fazem do corpo continuação
do som. a caixa craniana vibra
com o movimento
dos dedos e chega-se ao fim
pelo contato.

             
     

 
             


 

 










fevereiro #

8



Débola BOLSONI, da série Melina's Book