revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Cicero ARAUJO

O direito ao humor

 


Nesta edição, Fevereiro publica dossiê sobre os ataques terroristas de janeiro deste ano na França, que levaram à morte de vários chargistas e jornalistas da revista Charlie Hebdo e cidadãos franceses de origem judaica, além de policiais. Charles Kirchbaum e Henri Pena-Ruiz (este em artigo originalmente publicado no Libération e aqui traduzido) tecem considerações sobre o debate que se abriu sobre a liberdade de expressão, na França e em tantos outros lugares, no Brasil inclusive, em função de diversos juízos críticos que foram feitos à produção do pessoal do Hebdo. Ruy Fausto, além dessas considerações, faz uma reflexão sobre a natureza do extremismo islamista a partir de um panorama da história da religião de Maomé e dos países árabes.
Tenho pouco a acrescentar a essas interessantíssimas análises. Queria apenas resgatar um tópico que foi mencionado na discussão - a questão do humor - e dedicar-lhe algumas linhas a mais.
Há quem diga que a facilidade com que as sociedades ocidentais riem de tudo é sinal de sua extrema leviandade. Pode ser. É óbvio que o riso não é cabível em todos os momentos e em todos os espaços, e talvez estejamos perdendo a sensibilidade para perceber as diferenças de hora e lugar. Mas essa crítica, sobre a qual vale pensar, não deveria se estender à ideia de que, em princípio, não há nada que não possa se tornar risível e, portanto, objeto de humor. Em particular, o caso Charlie Hebdo não deveria ser pensado como uma punição - mesmo que se a considerasse, em vista de sua crueldade, desproporcional e indefensável - a essa suposta leviandade. O que está em jogo ali é precisamente a capacidade humana de expressar o lado ridículo das coisas, não importa o que seja, e a liberdade de fazê-lo.
Capacidade, a bem dizer, encontrável, em maior ou menor grau, não apenas neste lado do mundo, mas em todas as civilizações, em todas as línguas e em todas as literaturas. A diferença entre elas, quanto a tolerar o exercício dessa capacidade, tem menos a ver com o fato de serem predominantemente religiosas ou não religiosas, mais laicas ou clericais, do que com o estado de suas crenças fundamentais em determinado momento. Isto é, seu “senso de humor” nessa época está relacionado com o estado de rigidez dessas crenças, sua flexibilidade ou inflexibilidade, que, por sua vez, reflete sua abertura para o autoquestionamento, para a segurança ou insegurança com que as instituições sociais suas promotoras enfrentam a tendência ineludivelmente corrosiva do riso. A recepção ao humor, nesse sentido, é uma medida da intolerância e fanatismo, ou não, com que as crenças sociais básicas se reiteram.
Tinham razão os filósofos iluministas quando fizeram notar o papel da comédia e do riso no combate ao fanatismo religioso. Só que a intolerância e o fanatismo não são um fenômeno exclusivamente religioso, mas uma possibilidade inscrita em todas as crenças coletivas. O século XX europeu foi muito menos intenso religiosamente do que os séculos XVI e XVII, época das guerras civis que vieram na esteira da Reforma Protestante, e nem por isso esteve livre do fanatismo: pelo contrário, este é um dos fatores que tornaram o século passado tão violento e devastador. Assim, a incompatibilidade entre o riso e a crença tem pouco ou nada a ver com o objeto da crença, mas com o modo como se crê. A crença ela mesma é tão inescapável à condição humana quanto os afetos da esperança e do medo; e rir seria impensável sem tais afetos, pois tudo o que é prazeroso nele reporta a uma espécie de alívio, um momentâneo desafogo das angústias e apreensões geradas pela precariedade da existência, que  informa os afetos. Tal é a natureza da “catarse cômica”, possível desdobramento da teoria aristotélica da poética,1 que, ao expor os aspectos ridículos dessa precariedade, produz um efeito imaginário de diminuição da potência daqueles afetos, aliviando sua dor e a própria insegurança existencial que expressam.
Mas a outra maneira de dar combate a essa insegurança é justamente o fanatismo, que o faz ocultando-a no interior mais recôndito do crente, “encarcerando” suas apreensões e angústias numa personalidade moral patologicamente austera e grave. Portanto, personalidade indisposta ao cômico.
Por falar em Aristóteles, vale lembrar que, na Poética, ele faz questão de distinguir o cômico do puro e simples “vitupério” ou “invectiva”.2 O autor da peça cômica pode até pretender um ataque ou uma agressão mas, para que alcance o efeito hilariante pretendido, ele deve vesti-la de uma leveza e uma ambiguidade que a acusação verbal, o vitupério, não tem. O vitupério é um tipo de ataque que é obrigado a reconhecer e até intensificar a gravidade/seriedade daquilo que está atacando, e a fazê-lo de forma inequívoca. Ao ridicularizar, a comédia faz o inverso. Daí que, não raro, seja sentida até como mais corrosiva. Só que, sendo ambígua e leve, protege-se melhor do contra-ataque. A ambiguidade que a protege está em que remete a algo verossímil, mas deliberadamente distorcido, de que todos estão cientes, do contrário não faria rir. O que há de real nela vem acobertado na ficção, traço comum, diga-se de passagem, a outros gêneros de literatura, cômica ou não. Para ultrapassar essa cerca protetora, os intolerantes são então obrigados a atropelar toda a sutileza da ambiguidade literária, repudiando o jogo entre o real e o imaginário que é a condição de sua produção. Em vez de criticar, são levados a censurar.
Essa mesma ambiguidade cum leveza, porém, daria pelo menos um espaço, uma margem, para que o alvo do ataque pudesse ver o lado não ofensivo, mas autocrítico, da própria peça cômica, ao transformá-la em espelho, distorcido que seja, de suas ações - expondo, é claro, seu aspecto ridículo. Pois não era esse exatamente o papel do fou, o bobo da corte, na entourage dos monarcas, como lembra Charles Kirchbaum em seu artigo? Não era essa uma maneira, frágil que fosse, porém sutil - tratava-se de alvejar, mas sem vituperar, a corte, quando não o comportamento do monarca, seu senhor - de o rei prevenir-se dos invariáveis aduladores e de sua própria arrogância? Pela ambiguidade a personalidade capturada pelo fanatismo poderia despertar sua capacidade de reconsiderar suas convicções e refazer seu caminho. Porém, repudiando com veemência até mesmo a leveza do ataque cômico, o fanático “queima os navios” de sua consciência moral e, pior ainda, de sua habilidade para a autorreflexão.
Ao falar do humor e do cômico de um modo geral, não estou esquecendo das peculiaridades da charge. A rigor, ela não é literatura, porque seu investimento é no desenho mais do que nas palavras, embora possa conter uma ou mais frases que comentem o desenho de modo muito sintético. O desenho, via de regra, retrata situação e personalidade reais, mas que são caricaturados, a fim de produzir seu efeito risível junto com a frase que o comenta. E alude a fatos correntes, de conhecimento comum, que não precisam ser recontados pelo chargista, pois de outro modo o retrato “instantâneo”, que dá a peculiaridade de seu fazer, seria incompreensível. Situações e personalidades não fictícios, além de fatos correntes, retiram um bocado da ambiguidade da charge em relação à literatura cômica; isso porque a charge (palavra que vem do francês, que significa “carga”) busca uma crítica moral ou política mais ostensiva. Porém, a ambiguidade é de certa forma recuperada no próprio desenho ou no comentário, fazendo de cada um deles uma imitação deliberadamente distorcida, grotesca, do real. Além do que, o conjunto do produto, altamente condensado, sintético, permite ao chargista insinuar diferentes “morais da estória” para sua peça, até contraditórias entre si, o que não deixa de ser uma autoproteção. A conotação, que o escritor de ficção elabora ao distribuir sua mensagem numa narrativa mais ou menos extensa, o chargista o faz reduzindo a mensagem ao mínimo possível. Em suma: embora os chargistas e suas charges habitem os jornais, e se adequem muito bem a esse tipo de veículo, ainda estamos falando de uma poética, semificcional que seja, e não de uma matéria jornalística propriamente dita. Esta pretende recontar os fatos do dia a dia, tais como são, sem a distorção deliberada de sua realidade, mesmo que se admita adicionar a ela uma opinião ou linha editorial. Sabemos que, com frequência, jornalistas distorcem fatos, mas isso sempre será visto como um ato mal intencionado, uma corrupção de seu fazer, o que é revelador da condição de sua legitimidade.
A despeito de remeter a fatos de conhecimento comum, o chargista não está limitado por essa promessa de fidelidade ao real. Se estivesse, seu conteúdo humorístico seria tolhido na raiz. Algo semelhante ocorre com o cronista-comediante que, em vez da charge, escreve textos: ao expor o ridículo dos acontecimentos, exagerando-os e tornando-os grotescos, ele também produz uma arte.
Por todos esses motivos, e levando em conta o debate sobre o material produzido por Charlie Hebdo, sou de opinião que se deve conceder aos chargistas a mesma amplitude de liberdade que se concede não só aos comediantes, mas aos escritores de obras artísticas de um modo geral. Isso significa que não seria apropriado submeter sua produção às mesmas restrições, inclusive jurídicas, que poderiam ser cabíveis à expressão pública de opiniões sobre um determinado assunto polêmico, político, moral, religioso ou o que for. Fazê-lo seria colocar as charges no mesmo plano de gravidade/seriedade com que essas controvérsias de opinião se desenrolam. Porém, isso eliminaria, e para nossa desgraça, exatamente o que há de mais delicioso nessa arte.
É justo esperar que autores de opiniões contrárias tratem uns aos outros com respeito a suas pessoas e suas crenças. Contudo, não é senão o par respeito/desrespeito que se coloca entre parênteses no humor e na comédia, qualquer que seja a modalidade em que se expresse. Se a qualidade de uma charge tivesse de ser avaliada por essa questão, nenhum político, líder religioso e outras personalidades públicas poderiam ser apresentadas do modo como o são nessa arte. Sim: por mais que viéssemos a detestar essas personalidades, elas deveriam, em princípio, ser tratadas com a mesma dignidade com que se trata qualquer outro ser humano. E, no entanto, não é isso que está em jogo no triângulo que relaciona o chargista, seu público e a personalidade visada em seu trabalho. É claro que um político ou um líder religioso pode se sentir ofendido com a caricatura que o chargista lhe faz; mas essa queixa não deveria entrar no registro do desrespeito, e sim no da recusa dessa personalidade pública a aceitar a forma muito peculiar de crítica que a charge possibilita. É direito dela manifestar essa recusa, porém não o de usar sua influência social, ou eventualmente o poder que detenha ao ocupar um cargo público, para promover sua censura alegando desrespeito. Em contrapartida, a cultura política democrática habitua a opinião pública e as próprias personalidades públicas a não levarem o trabalho do chargista para o plano da ofensa pessoal, em benefício do aspecto cômico que, a sua maneira, permite questionar atitudes, atos ou gestos de alguém com capacidade, maior do que a do cidadão comum, para afetar os destinos de sua comunidade.3
Não é que, através desses parênteses, a charge e o chargista sejam postos acima da crítica. Mas se trata, no essencial, da mesma crítica que se faz a qualquer obra artística: uma crítica estética, que evidentemente nunca se reduz apenas a sua forma, mas à particular combinação de forma e conteúdo que a obra logra (ou não) alcançar. De qualquer modo, não a mesma crítica que se faz a outras formas de manifestação do pensamento, como é o caso da expressão de opiniões políticas, ou de crenças ideológicas ou religiosas. Principalmente, não com as mesmas consequências morais ou jurídicas.
Se isso vale para pessoas, vale mais ainda para as próprias crenças. Como os artigos deste dossiê salientaram, vários líderes de instituições religiosas (mas não só), mesmo condenando o ataque ao Charlie Hebdo, aproveitaram a ocasião para argumentar em favor do respeito às religiões, em especial àquilo que cada uma considere “sagrado”. O apelo até parece razoável, mas primeiro é preciso deixar claro que os extremismos religiosos, islamista ou qualquer outro, não são movidos pela questão do respeito. Não é isso que dá sentido a seus atos. O respeito visa a uma prática generalizável: apelar para o respeito a minhas crenças religiosas, e àquilo que é sagrado nelas, é de partida apelar para o respeito a todas as demais crenças. No entanto, o extremista exige bem outra coisa: que suas próprias crenças sejam reconhecidas como as únicas dignas de cultivo - o que significa considerar todas as demais absolutamente falsas - e, para tanto, está disposto a recorrer à violência para impô-las. Para ele, a blasfêmia e a apostasia sempre andam juntas: é altamente ofensivo não apenas profanar o que acredita ser sagrado, mas negar essa crença e acreditar em outra coisa. Daí que possam, num mesmo gesto significativo e com o mesmo ódio, chacinar a equipe do Hebdo e, logo em seguida, matar policiais e membros de uma comunidade judaica.
Mas o que dizer de um autêntico e sincero apelo ao respeito pelo sagrado? Torná-lo objeto do cômico, torná-lo risível, seria um desrespeito, mais do que uma blasfêmia?4 De novo: uma coisa é criticar a atividade do humorista por esse critério, outra é usá-lo como justificativa para cercear sua liberdade, isto é, recorrer ao poder coercitivo do Estado (no caso, a censura) para restringir sua atividade. Quando uma sociedade, através de suas instituições políticas, dá livre curso à capacidade humana de tornar risível virtualmente qualquer coisa, ela está permitindo que se contrabalance a suscetibilidade à ofensa e ao desrespeito com o apelo ao senso de humor de seus cidadãos. O que não deveria os impedir de criticar, até com veemência, os excessos do humorista, sua eventual falta de sensibilidade à ocasião e ao lugar, mau gosto etc. Críticas como essas poderiam ser feitas a várias charges publicadas no Charlie Hebdo e, até onde pude conhecer sua produção, eu mesmo as endossaria. Mas tais reações são perfeitamente compatíveis com o amplo e irrestrito direito ao humor.










fevereiro #

8



ilustração: Rafael MORALEZ



1 Estou longe de ser um especialista no assunto, mas, para uma discussão a esse respeito, ver o artigo de Leon Golden, "Aristotle on Comedy", Journal of Aesthetics and Art Criticism 42:283-90, 1984.

2 Poética, 1449 a 1.

3 Robert Post discute esse ponto ao analisar o caso Hustler Magazine, Inc vs Falwell, julgado pela Suprema Corte norte-americana nos anos 1980. Cf. “The Constitutional Concept of Public Discourse: Outrageous Opinion, Democratic Deliberation, and Hustler Magazine v. Falwell”, Harvard Law Review 103(3): 603-686,1990. Larry Flint era o polêmico editor da revista masculina Hustler, que certa vez alvejou o reverendo Jerry Falwell (um crítico furibundo da pornografia) com uma matéria sarcástica sobre sua pessoa, mas explicitamente fictícia. Falwell processou a revista por causa disso.

4 Estou de acordo com as críticas de Pena-Ruiz e Ruy Fausto aos que usam a blasfêmia como critério de desrespeito. Mas, aceitando que não se deve confundir blasfêmia e desrespeito, gostaria de também levar em conta a hipótese do desrespeito.