POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
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Silvio Ricardo CARNEIRO |
A paralisia da crítica e a democracia como tabu |
“Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: não se discute a democracia. A democracia está aí como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se esperam milagres mas que está aí como uma referência, uma referência: a democracia! E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada, porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a pôr um outro de que talvez se venha a gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é: as grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais, a OCDE, tudo isso. Nenhuma dessas organizações é democrática e, portanto, como é que podemos continuar a falar de democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo, não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não! Donde está, então, a democracia?”
José Saramago, Sobre a democracia1 Recentemente no Lexington´s notebook, blog da revista The Economist sobre a política norte-americana, encontramos o seguinte post: "Wall Street protesta: por favor, não tragam Marcuse de volta!"2 . Trata-se de um breve comentário de um "quase soixante-huitard", que retomou uma larga citação do pós-escrito de Tolerância repressiva, em que Marcuse, em apoio aos "suixante-huitards" reais, questiona uma característica curiosa da democracia (representativa, parlamentar ou "direta"): o fato de que a maioria "está fechada em si mesma, petrificada" repelindo "a priori qualquer outra mudança que altere o sistema". No discurso liberal da tolerância, grupos ou indivíduos dissidentes reorganizam a gramática em que "maioria" não significa mais "interesse comum" (o sentido de "comum" no termo "comunismo"), mas, sim, "a opinião pública como convergência de pensamentos individuais". Os comentários dos leitores desse post são tanto ou mais curiosos do que o próprio texto. Muitos deles expressam um ódio primevo por uma caricatura de Marcuse contracultural, como aquele comentário que compara o pensamento marcuseano ao "idiota primevo Rousseau". Porém, podemos seguir adiante e considerar que, quando tais pessoas reúnem as contradições de seu presente com um fantasma de seu passado, expressam marcas pulsionais do inconsciente de um certo pensamento conservador. É como uma história sem fim; ou, nos termos de Freud, o retorno do reprimido.
A democracia como tabu Talvez a maneira mais avançada para circunscrever esse problema esteja em considerar a democracia como uma de nossas aspirações tabu. Afinal de contas, todos se acreditam democratas, independentemente de suas orientações políticas. Membros da "bancada da bala", "ruralistas", "evangélicos", "pastorais", "cientistas", bem como movimentos sociais e partidos dos mais progressistas da esquerda, declaram a si próprios como defensores dos princípios democráticos, cada qual enxergando suas lutas sob esse prisma, o que quer que isto signifique. Para além de quaisquer diferenças, valores democráticos são sustentados como uma referência para condenar ou legitimar ações e ideologias políticas, sem se questionar por seus fundamentos. Entretanto, se questionarmos o que significa "democracia" para cada uma dessas frentes sociais, provavelmente encontraremos uma pluralidade de significados contraditórios ou mesmo divergentes. É possível, então, que a democracia seja algo que todos dizem conhecer, mas têm vergonha de perguntar, ou seja: um tabu em nossa sociedade.
O tripé da teoria crítica marcuseana: crítica, ideologia e utopia. Essas questões estão interrelacionadas. Desde Filosofia e teoria crítica (1937), Marcuse reconhece que a força crítica dos pensadores de Frankfurt reside em ver não apenas como a ideologia tem mudado junto às estruturas sociais no decorrer do século XX, mas também como "a teoria crítica é também a crítica de si mesma e das próprias bases sociais que a suportam [gesellschäftliche Träger]"17 . Esse não é um sinal de fraqueza teórica ou prática, uma vez que flexibilidade teórica não significa necessariamente uma ausência de fundamentos. Pelo contrário, mediante pressupostos dialéticos, a crítica deve protestar contra suas próprias bases, frequentemente revendo suas posições sociais. Nesse sentido, Marcuse insiste em manter uma tensão entre as características sociais ideológicas e utópicas. Em que sentido? Enquanto um conceito espacial, a utopia "vem de todas as partes". Porém, mais do que um conceito espacial, a utopia também remete ao campo temporal; um tempo bloqueado enquanto permanece expulso do continuum; um tempo cujo lugar histórico está nas revoluções e revoltas contra o status quo. Por conseguinte, a utopia tem seus próprios sujeitos históricos: "aqueles sem esperança" em proveito daqueles cuja "esperança nos é dada", como conclui em O homem unidimensional, inspirado em Walter Benjamin.
Demanda por democracia: o "núcleo impossível do real" ou as "possibilidades reais"? Decerto, ao defender a "política do possível", Marcuse não está se declarando um democrata - "Realpolitik". De outro modo, podemos lembrar suas primeiras críticas contra os partidos socialistas na Realpolitik da República de Weimar, em que o possível se restringe às tentativas de aperfeiçoamento do status quo.22 Anos mais tarde, Marcuse passa a criticar a oposição integrada do Estado de Bem-Estar Social, como vimos, ou, ainda, a tolerância repressiva das políticas neoliberais que contrapõem as possibilidades reais à afirmação da parceria Thatcher e Reagan que declaravam "não haver alternativas". Em um modo diverso, o possível marcuseano é apresentado como a utopia, isto é, enquanto limite das contradições existentes e das aspirações que enfrentam as formas sociais-tabu. Algo presente quando Marcuse aposta em uma "civilização não-repressiva", modo utópico que se tornaria possível no interior das novas contradições da sociedade tecnológica. Enfim, entre as perspectivas marcuseana e žižekiana, encontramos dois modos de pensar a democracia em tempos contemporâneos. Ambos compreendem a democracia como processos onde antagonismos são fundamentais. Contudo, existem diferenças em suas ênfases. De um lado, Žižek evita qualquer movimento teológico que fundamente a democracia. Nesse sentido, podemos interpretar suas advertências quanto aos perigos da identificação sócio-simbólica nos processos e lutas democráticos. De outro lado, Marcuse aposta nas possibilidades reais, apresentadas pelas lutas nos fronts da sociedade estabelecida enquanto sintomas de uma democracia sequestrada, condicionada e amputada, evitando toda e qualquer forma a-histórica nas bases de uma reflexão da sociedade e seus processos políticos. Dois métodos diversos capazes de complementar um ao outro? Talvez: se é verdade que Žižek nos faz ter cuidado com identidades absolutas nos processos democráticos, é também verdade que Marcuse evita abstrações como as pretensões da eterna escassez ou da eterna impossibilidade do real que esvaziam a concretude das possibilidades reais manifestas em seus inúmeros agentes, ainda que obsoletos. Seja um ou outro método crítico, vale dizer que a democracia deve sair do altar que a colocamos, não para abandonar esse projeto, mas para questionar, com a coragem de quem enfrenta tabus, "afinal, onde está a democracia?". |
fevereiro #
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ilustração:Rafael Moralez
1 In http://dotsub.com/view/05e049d1-c4c5-40da-9247-c92488e09737 (sítio visitado em 01/10/2013)
2 “The Wall Street protests: Please, don´t bring back Marcuse!”Lexisngton´s Notebook, in http://www.economist.com/blogs/lexington/2011/10/wall-steet-protests-0?fsrc=scn/tw/te/bl/pleasedontbringbackherbertmarcuse (sítio visitado em 01/10/2013)
3 Aliás, uma categoria genérica demais para quem se pretende crítico. A despeito das nuances próprias a cada movimento, ou mesmo entre cada movimento, "pós-marxistas" seriam, para Žižek, os que dispensam a forma partido como central em suas manifestações. Nesta linha, Stálin e Lênin (embora posteriores a Marx) ainda seriam marxistas "de carteirinha", ao passo que movimentos sociais surgidos com a New Left operam em outro registro: na luta por reconhecimento de suas particularidades. "Pós-marxista", assim, não é uma categoria simplesmente cronológica para Žižek, mas um momento que carrega consigo um diagnóstico diverso das lutas sociais, bem como os limites e os sintomas desta opção. Entretanto, esta categoria, tal qual pensada pela autor, deixa de lado as nuances e estratégias próprias a cada um destes movimentos. Por exemplo: a estratégia adotada pelos movimentos negros (diga-se de passagem, os EUA apresentam inúmeros deles: desde aqueles que se voltam para a sua "africanidade" da Afro-american association até a busca por autodefesa e auto-organização entre os Black Panthers) é bem diversa daquela adotada pelos ecologistas, pelas feministas ou homossexuais. Sobre o desdobramento do movimento negro estadunidense em uma versão mais recente, ver BLOOM, Joshua & MARTIN JR., Waldo E., Black against the Empire: the history and politics of Black Panther Party, Los Angeles: University of California, 2013. Sobre os movimentos multiculturais, ver BENHABIB, Seyla, The Claims of culture: equality and diversity in the global era, New Jersey: Princeton Universtity Press, 2002.
4 Slavoj Žižek, The sublime object of ideology, (London, NewYork: Verso, 2009), p. XXVI.
5 Slavoj Žižek, The sublime object of ideology, p. XXVII.
6 Voltaremos mais adiante a essa consideração. Por enquanto, basta compreender que, no jogo proposto por Žižek, haveria uma dicotomia entre os modos de compreensão dos processos democráticos. Enquanto para Marcuse, seria necessária a fórmula identitária de seu fundamentalismo, para Žižek, a democracia se movimenta no interior do campo negativo que é o "real", o lugar das "desidentificações", para além de todo e qualquer fundamentalismo. Ao invés do fundamento possível utópico, essa "política do real" (não confundamos com a "Realpolitik"!) opera junto ao núcleo da impossibilidade, conforme Žižek descreve em seu Bem-vindo ao deserto do real.
7 "E a violência revolucionária?" poderiam objetar. Infelizmente, não trataremos o assunto com uma análise mais fina e necessária das defesas que Marcuse promove, na "onda das revoltas" dos anos 1950 e 1960 sobre Cuba, Vietnã, China e outros regimes que lutavam contra o imperialismo norte-americano (mas também, que procuravam formas diversas ao "marxismo soviético" - sobre isso, diga-se de passagem, entre os frankfurtianos, Marcuse seria o único a dedicar uma análise sistemática sobre a URSS em tempos de guerra fria, em seu Soviet Marxism: a critical analysis). De fato, Marcuse nunca deixou de lado a sublevação como instrumento de transformação. Mas, como bom leitor do idealismo alemão, notava com certa distância exercícios de rebeldia. Tal receio pode ser observado no "prefácio político" de 1966 a Eros e civilização, quando afirma: "O alastramento das guerras de guerrilha em tempos do século tecnológico é um evento simbólico: a energia do corpo humano se revolta contra a repressão intolerável e se lança contra os engenhos da repressão. Talvez os rebeldes nada saibam sobre os modos de organizar uma sociedade, de construir uma sociedade socialista; talvez, eles sejam aterrorizados por seus próprios líderes, que conhecem algo sobre isso, mas a existência combativa dos rebeldes é uma necessidade total de libertação, e sua liberdade é a contradição das sociedades avançadas" (MARCUSE, Eros and civilization, p. XIX).
Outro episódio bastante comentado sobre a visão de Marcuse sobre a violência está na troca de correspondências com Adorno em 1969. Na ocasião, Marcuse havia sido convidado para uma palestra pelo Instituto de Frankfurt, mas fora orientado por Adorno a não estender sua visita em uma outra conferência com os estudantes, dado os riscos nos recentes movimentos estudantis. Adorno argumenta que a situação estava tensa, pois os estudantes procuraram ocupar o Instituto e, por isso, se viu obrigado a chamar a polícia e impedir o movimento; com esse clima, a conversa de Marcuse com os estudantes apenas esquentaria os ânimos, podendo insuflar a violência. Decerto, acreditamos que esse momento seria interpretado, de maneira equívoca, como uma espécie de divisor de águas entre os dois colegas: Marcuse "defensor dos oprimidos" X Adorno "conservador da elite intelectual germânica". No fim das contas, perde-se o interessante: um grande debate interno a Frankfurt sobre a instituição policial pós-Auschwitz. Afinal de contas, insistimos que Marcuse aqui não é um defensor da violência pela violência. Lembremos, primeiramente o que diz na carta de 05 de abril de 1969: "Dito brutalmente: se a alternativa for polícia ou estudantes de esquerda, estou com os estudantes - com uma exceção crucial, a saber, se a minha vida for ameaçada ou for usada violência contra mim e os meus amigos e se a ameaça for séria. Ocupação de salas (exceto a minha casa) sem esse tipo de ameaça violenta não é razão suficiente para chamar a polícia. Continuo acreditando que a nossa causa (que não é só nossa) é antes defendida pelos estudantes em revolta que pela polícia (...) Conheces-me bastante bem para saber que condeno tão enfaticamente quanto tu uma conversão imediata da teoria em prática. Mas acredito que há situações em que a teoria é impulsionada pela prática - situações e momentos nos quais a teoria que se mantém afastada da prática torna-se ela mesma falsa" (MARCUSE, "Correspondência Marcuse-Adorno: as últimas cartas, 05 de abril de 1969" in Praga - estudos marxistas, n° 3, setembro-1997, p. 7). Ao invés de interpretarmos essas palavras como uma defesa cega da violência contra o conservadorismo adorniano, e percebendo sobretudo suas nuances, é importante notar como Marcuse impõe limites a essa violência: em geral, nada pode ir além da defesa da vida - mote que permanece nas obras de Marcuse (um critério possivelmente questionável e que merece uma análise mais aprofundada, mas ainda assim um critério que implica em limites sobre o fenômeno da violência). Mais interessante ainda é notar, a partir desse episódio, a "democracia radical" que Marcuse procura estabelecer. Não se trata de uma defesa cega do movimento estudantil que, reconhece, é capaz de praticar atos condenáveis. Mas, ao invés do fechamento brutal de diálogo proposto por Adorno, ao invés de taxá-los simples e descuidadamente como "fascistas de esquerda", Marcuse nota como mais do que necessário um diálogo franco entre as gerações de Frankfurt, conforme explicita em 21 de julho de 1969: "Em público, combati bastante a palavra de ordem de destruição da Universidade como ação suicida. Acredito que nossa tarefa, precisamente nesta situação, é ajudar o movimento tanto teoricamente quanto na sua defesa contra a repressão e as acusações" (MARCUSE, "Correspondência Marcuse-Adorno: as últimas cartas, 05 de abril de 1969"In: Praga - estudos marxistas, n° 3, setembro-1997, p. 15). Uma mensagem que procurou levar no debate, enfim realizado, com os estudantes alemães, publicado em Das Ende der Utopia (O fim da utopia). Acredito que esse é outro exemplo do que denominamos aqui uma postura "democrático-radical" de Marcuse: defensor do diálogo aberto com as novas formas de mudança social, ainda que violentas, ainda que contrárias aos seus próprios preceitos - alargando e afinando assim as possibilidades de resistência e mudança.
8 Freud, "Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos" in Obras completas, vol. 11, p. 42.
9 Freud, "Totem e tabu...", p. 42.
10 Herbert Marcuse, Eros and Civilization: a Philosophical Inquiry into Freud (Boston: Beacon Press, 1969), 18.
11 Herbert Marcuse, Eros and Civilization, p. 18
12 Discurso pronunciado em 11 de novembro de 1947. Cf. Eric Hobsbawn, The Age of Extrems: the short Twentieth Century (1914-1991) (London: Abacus, 1996). Ver também Slavoj Žižek, The Sublime object of ideology, 166.
13 Sobre isso, ver MARCUSE, "O combate ao liberalismo na visão totalitária do Estado", ensaio publicado originalmente na Revista de pesquisa social do Instituto (1934) e traduzido em Cultura e sociedade, vol. 1, 1997. Ver também nosso artigo "Sobre a concepção totalitária da vida" in Cadernos de ética e filosofia política, 18, 1/2011, pp. 179-196 (disponível em http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp18/carneiro.pdf)
14 Não que, com isso, Marcuse aceitasse a noção simples do campo de concentração como paradigma do capitalismo tardio. No entanto, o que a lição de Auschwitz ensina é a necessidade de um outro esforço para além da crítica esclarecida, que Marcuse encontra em Freud: a análise de outra camada que não aquela tratada pelo Iluminismo. Ao lado de Marx, a psicanálise auxilia a compreender, pelos "extratos profundos do comportamento humano" a resposta para a pergunta "por que se fracassou em 1919-1920? Por que o potencial revolucionário, historicamente então fora do comum, não apenas deixou de ser utilizado como se deixou perder por décadas?" (MARCUSE in HABERMAS, Jürgen et alli, Conversaciones con H. Marcuse, Barcelona: Gedisa, 1980, p. 17). Alcançar tais camadas dos sintomas de uma sociedade exige mais do que uma terapêutica esclarecida: é necessária a escuta das promessas que se perderam no tempo - algo que perdura tanto no regime totalitário, quanto nas liberdades conquistadas mediante o capitalismo tardio. A força que conecta os tempos do totalitarismo e do capitalismo tardio não reside no terror dos campos, necessariamente; mas, sobretudo, na descoberta recente do poder das tecnologias de governo (e aqui podemos aproximar tranquilamente Marcuse e Foucault) sobre a economia libidinal da população.
15 MARCUSE in HABERMAS, Jürgen et alli, Conversaciones con H. Marcuse, 1980, p. 17
16 Como adverte Foucault em seu prefácio à tradução inglesa de Anti-Édipo de Deleuze e Guattari: "Como fazer para não se tornar fascista, mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nosso discurso e atos, nossos corações e prazeres do fascismo? Como desalojar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?" (FOUCAULT, "Prefácio (Anti-Édipo)" in Ditos e Escritos VI (Repensar a política), p. 105).
17 MARCUSE, "Philosophie und kritische Theorie" in Herbert Marcuse Schriften, Band 3,p. 247. Algo que reaparece alguns anos depois em Um Ensaio sobre a libertação (1969), quando o autor pretende confrontar a teoria crítica "com a tarefa de reexaminar os prospectos para a emergência de uma sociedade socialista qualitativamente diversa das sociedades existentes, a tarefa de redefinir o socialismo e suas precondições" (MARCUSE, An essay on liberation, p. VIII).
18 Dada a diversidade de épocas em que Marcuse viveu, algumas diferenças entre os ensaios da década de 1960 e os anteriores são notáveis. Por exemplo, podemos presumir que o terror havia sido a força da lei do período nazista, algo bem presente em seus ensaios para a Revista de pesquisa social do Instituto; ao passo que na Guerra Fria entre o capitalismo tardio e o socialismo real, Marcuse passa a considerar outro princípio regulamentador: a "dessublimação repressiva" em uma sociedade que não carece mais de uma liderança forte para sustentar sua ordem repressiva. No caso da ideologia do capitalismo tardio, uma ordem de liberdades se realiza, sob o preço da mediação da mercadoria; no caso soviético, por sua vez, seria o partido operário a ser afirmado constantemente, sob os auspícios da pesada burocracia. Em ambos os casos, Marcuse reconhece o potencial libertário de regimes sociais capazes de transformar efetivamente os rumos até então conquistados. No entanto, essa mesma realização - que retira a liberdade e a emancipação do reino das ideias sociais - acaba por habitar no subterrâneo da sociedade industrial avançada, seja ela sob a forma da burocracia, seja sob a forma mercadoria. Assim, a ideologia deixa de se valer do artifício dos ideais e passa a ser realizada efetivamente na mesma medida em que impede uma efetiva transformação social. No caso, Marcuse chegaria a afirmar: "A interdependência fatal de apenas dois sistemas sociais "soberanos" no mundo contemporâneo [da Guerra Fria] é expressão do fato de que o conflito entre progresso e política, entre o homem e seus mestres se tornou total. Quando o capitalismo encontra o desafio do comunismo, ele se depara com suas próprias capacidades: o desenvolvimento espetacular de todas as forças produtivas diante da subordinação dos interesses privados à lucratividade que impede tal desenvolvimento. Quando o comunismo se encontra também com o desafio do capitalismo, ele também se depara com suas próprias capacidades: os espetaculares conforto, liberdade e alívio das preocupações da vida. Ambos os sistemas têm estas capacidades distorcidas para além do reconhecimento e, em ambos os casos, a razão é, em última análise, a mesma - a luta contra uma forma de vida que dissolverá as bases da dominação" (MARCUSE, One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society, p. 58, colchetes nossos).
19 MARCUSE, Eros and civilization, p. 17.
20 Sobretudo norte-americana e soviética, as duas potências da Guerra Fria, em que o fim das suas sociedades representa o fim de suas existências, tamanho o grau de oposição integrada. Há diferenças nas sociedades europeias conforme destaca O homem unidimensional: "Nos países capitalistas menos avançados, em que segmentos fortes do movimento operário militante são ainda vivos (França e Itália), suas forças são testadas contra aquelas da racionalização política e tecnológica nas formas autoritária" (MARCUSE, One-dimensional man, nota 30, p. 42). Bem como reconhece possibilidades em aberto nos países do terceiro mundo, ainda insuficientemente industrializados e, por conseguinte, sem os prejuízos da realidade tecnológica.
21 MARCUSE, An Essay on liberation, p. 4.
22 Cf. KELLNER, Herbert Marcuse and the crisis of Marxism e KÄTZ, Herbert Marcuse and the art of liberation, livros que oferecem uma boa introdução sobre a presença de Marcuse em tempos de Weimar.
23 ŽIŽEK, The Sublime Object of Ideology, 142
24 ŽIŽEK, The Sublime Object of Ideology, 142.
25 Marcuse afirma essa sua interpretação a partir da leitura da obra de Freud, Para além do princípio de prazer (referência...).
26 MARCUSE, Eros and civilization, p. 35.
27 MARCUSE, Eros and civilization, p. 134.