revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Fábio METZGER1

Revolução e contrarrevolução no Oriente Médio: o ponto de inflexão

 


Egito, 2014. O país vive um momento de fechamento de suas instituições. Leigos e religiosos, democratas e islâmicos, liberais e esquerdistas, setores importantes vêm perdendo importantes espaços dentro daquilo que parecia tornar-se não um regime de democracia liberal, mas ao menos uma forma mista de governo, que combinava um sistema eleitoral baseado nos princípios gerais do sufrágio universal, em uma sociedade, com base em uma teocracia autocontrolada e um Estado Nacional sustentado em um comando militar/civil oligárquico. Entre essas três formas de governo combinadas, um corpo político de cidadãos com propósitos nem religiosos, tampouco militares, portanto focados na sociedade civil, participando de uma ampla transição política.
As condições políticas para essa transição estavam dadas. O antigo déspota, Hosni Mubarak, fora derrubado no início de 2011, após uma revolução popular, e os atores que antes estavam à margem do processo político começaram a emergir. Em especial, a Irmandade Muçulmana. Mas também, partidos nasseristas e liberais, há muito banidos e/ou marginalizados dentro do cenário político egípcio. Uma juventude que participara das manifestações contra o Antigo Regime via redes sociais virtuais ou então importantes membros de movimentos operários estavam se articulando. Junto com eles, lideranças no exílio como o prêmio Nobel da Paz, Dr. Mohammad El-Baradei, que se apresentou como uma liderança com reconhecimento internacional e legitimidade para falar em nome de setores progressistas egípcios, apesar de sua projeção interna não ser tão grande quanto à de outros líderes.
No entanto, as condições para a mudança não pareciam ser tão fáceis quanto se imaginava. Quem, de fato, derrubou Mubarak foram os seus colaboradores mais próximos. Ou seja, a elite civil-militar que o acompanhou por quase três décadas. A junta militar encabeçada pelo Marechal Hussein Tantawi. E o Tribunal Constitucional, que ganhou a prerrogativa de estabelecer um cronograma eleitoral. A agenda desse grande conjunto de antigos colaboradores era bem clara: tudo mudar, para manter tudo como está. Ou seja: princípios de uma Revolução Passiva, feita pelo Alto; não de uma Revolução Popular, feita pelas massas (GRAMSCI, 1976; 1999; 2002). E por isso a expectativa não por uma ampla transformação, mas sim por mudanças tuteladas, controladas.
A hipótese que poderia se apresentar era a de uma transição bastante longa, dadas as condições de divisão entre as sociedades civil e política egípcias e dos setores religioso e laico dessas sociedades. Qual seria o grau de participação da população em relação à construção do Estado? Maior ou menor? Qual seria o papel da religião (no caso, o islã) na articulação entre Estado, lei e sociedade? Marginal ou central em relação ao país? São questões fundamentais de base que qualquer sociedade mais avançada terá que ter respondido antes de se democratizar.
Dessa forma, o Egito teve que responder a uma transição que em momento algum lembrou, por exemplo, aquelas que os países do Leste Europeu e da América Latina viveram no final dos anos 1980. Não se tratava de falar da democratização. Mas sim de uma agenda mínima de transição política a fim de consolidar o Estado. Algo mais semelhante ao que aconteceu com os países europeus a partir da Inglaterra à época de suas revoluções (1642-1688); ou da França de sua primeira revolução regicida até a criação da I República (1789-1871). Britânicos e franceses não ergueram democracias a partir desses eventos. Mas discutiram os alicerces de seus Estados modernos. Separaram totalmente, no caso francês, ou acomodaram parcialmente, no caso britânico, a religião em relação ao Estado. E estabeleceram regimes de participação indireta e de sufrágio predominantemente não universal em seus processos eleitorais, beneficiando as elites locais e alienando pelo menos uma geração inteira de seus povos da construção de seus governos.
Na verdade, não existiu democratização até o século XX, nem para britânicos, tampouco para franceses. De fato, o que ocorreu foi a liberalização de estruturas tradicionalmente autoritárias. E, a partir delas, a construção de governos mistos, que inicialmente eram de frágil sustentação, em certos momentos, derrubados e substituídos por ditaduras, como foi o caso da Inglaterra de Oliver Cromwell em 1649, e da França de Luís Bonaparte em 1852.
O Egito de hoje vive justamente o momento desse recuo. Não teve de fato, a oportunidade de se democratizar. Buscou, ao menos, construir uma forma mista de governo, e afinal, acabou sendo engolido por um golpe de Estado em julho de 2013, após dois anos de transição precária. O país está vivendo a sua Contrarrevolução, após ter se perdido nos rumos de sua Revolução (BAIL, 2012; GRESH, 2011; 2012).

Mas, afinal, esse texto se propõe a responder a duas questões iniciais:


1. Qual foi a importância desses acontecimentos para o Oriente Médio, principalmente na questão da paz entre as nações e dentro de cada sociedade?
2. Que espécie de governo é esse - que aqui denominamos governo misto - que o Egito estava tentando construir? Era apenas uma possibilidade política? Ou é um projeto que já existe em algum outro local do Oriente Médio?

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1. Primeiro vamos responder a questão da importância desse acontecimento na região. O Egito, enquanto país central, divisor entre África e Ásia, país árabe de maior população e mais industrializado que os demais, é um Estado pivô. Ou seja: uma decisão política fundamental que ocorre a partir do Cairo costuma ser seguida por outros países árabes. Principalmente por conta de sua localização e pela quantidade de populações que estão envolvidas nesse processo, cerca de 25% do Mundo Árabe. Se as elites egípcias decidem democratizar ou então apenas fazer pequenas aberturas em sua sociedade política, é fatal que as demais lideranças árabes tenham que seguir, cada uma em seu ritmo, tais tendências. Por outro lado, um recuo do Egito em relação a questões como essa desestimulam imediatamente qualquer um de seus vizinhos a implementar mudanças, e o status quo é simplesmente mantido.
O Antigo Regime de Hosni Mubarak era um reprodutor desse status quo. Sustentado em um acordo de paz com Israel e uma aliança estratégica com os EUA. Para o Estado Maior do Egito, parecia ser um bom acordo, na medida em que evitava o confronto com uma potência militar regional (Israel) e assegurava a estabilidade econômica e política com a Superpotência Hegemônica (os EUA). No entanto, para a maior parte do Oriente Médio, tal acordo-aliança não assegurava nenhuma garantia de paz. Não foram compromissos suficientes para assegurar a criação, de fato, do Estado da Palestina. Não garantiram, por outro lado, a moderação de grupos islâmicos historicamente inimigos da república egípcia, de Israel e dos EUA. A sociedade egípcia, por outro lado, não foi contemplada com bem-estar social e prosperidade. A oportunidade que acordos e alianças como esses poderiam proporcionar para posicionar melhor o país foi desperdiçada. Os 30 anos de ditadura Mubarak representaram um longo período de estagnação política e econômica. E assim como o Egito, outros países do Oriente Médio também ficaram bastante expostos à crise mundial de 2008. É nesse contexto de crise econômica mundial que podemos compreender o pano de fundo da crise política regional que, afinal, não apenas derrubou lideranças políticas no Egito, mas também no Iêmen, na Tunísia e na Líbia, gerou intervenção externa sobre o Bahrein, guerra civil da Síria, e obrigou a importantes reformas no Marrocos, na Argélia e na Jordânia, além de uma difícil reconciliação nacional entre o governo da Autoridade Palestina e o Hamas.
Dessa forma, a Revolução egípcia poderia ter sido vista como uma oportunidade de se criar um novo equilíbrio político. Esse equilíbrio não seria nada confortável para Israel, que precisaria sustentar os acordos de paz que têm com Egito e Jordânia, não apenas através de seus reis ou generais, mas também a partir de lideranças eleitas. Em qualquer situação comum, podemos pressupor que países que superam o despotismo tendem a estarem mais abertos a acordos de paz. Então, em um Oriente Médio mais democratizado certamente haveria mais países mais dispostos a fazer acordos de paz com Israel, além de Egito e Jordânia. No entanto, como esses acordos teriam que ser discutidos de forma mais profunda dentro de cada sociedade, estariam muito mais explícitos atores que fazem objeções a eles. E dado o fato de que a criação de fato do Estado palestino não se concretizou, a maior parte da opinião pública dos países árabes tenderiam a se opor aos acordos de paz com Israel. Ou pelo menos desejariam uma revisão dele, sob a condição da criação efetiva da Palestina. E nesse caso estamos falando da paz de um país sob a aliança especial da maior superpotência mundial com os 22 demais países da região.
As revoltas e revoluções árabes abriram a possibilidade para essa renegociação. No entanto, é preciso aqui apontar que mesmo dentro do Mundo Árabe existem aqueles países que desejam manter o status quo. E que não se beneficiariam nada da democratização dos regimes políticos. É nesse sentido que vamos nos lembrar da Arábia Saudita, uma monarquia absoluta, o maior produtor e exportador de petróleo e um dos regimes religiosos mais fechados do mundo, sede das duas mais sagradas cidades do islã, Meca e Medina. Foi o exército saudita que interferiu diretamente na revolta árabe do Bahrein, enviando para o pequeno país as suas forças armadas. Por outro lado, a Arábia Saudita, junto com Catar, apoiam e financiam a parte mais fundamentalista dos rebeldes nas guerras civis da Síria e do Iraque. O Catar, aliás, junto com a Arábia Saudita, possuem as duas maiores emissoras de noticiários do Oriente Médio, a Al-Jazira e a Al-Arabiya. E são, junto com os Emirados Árabes Unidos e o Kuweit, pontos estratégicos para as bases militares dos EUA no Golfo Pérsico, contendo uma possível expansão do Irã. Todos esses países sustentam em comum o fato de serem monarquias, e de terem no petróleo e no gás natural suas principais fontes econômicas. E principalmente a Arábia Saudita e o Catar são governados por famílias que praticam a versão mais ortodoxa do islã sunita: o wahabismo.
Diante desse fato, por que permitiriam que decisões políticas vindas do Cairo pudessem suplantar o seu sistema de poder? A defesa pela paz no Oriente Médio deve passar antes pelo crivo das monarquias do Golfo. E se as revoluções árabes derrubaram as repúblicas do Norte da África e abalaram algumas repúblicas no Oeste da Ásia, não serão elas que irão ditar os rumos da política regional. Um Egito revolucionário, ainda que se tratasse de uma revolução conservadora, seria uma autêntica sombra sobre Ryiad e Doha. E tudo o que as monarquias do Golfo puderam fazer para tornar esse processo político mais acidentado elas fizeram. O apoio político de Riyad ao partido salafista Al-Nour contra a Irmandade Muçulmana no Egito, e depois ao general Sissi no golpe que derrubou o presidente Morsi indicam que a paz no Oriente Médio não apenas depende de Israel e palestinos e/ou Mundo Árabe. Mas também de um acordo interno do Mundo Árabe que assegure as condições para o acordo de paz. O apoio a fundamentalistas por parte da Arábia Saudita na Síria, no Iraque e no Egito, entre outros, torna as negociações ainda mais complicadas. E a perda do protagonismo egípcio sugere uma paralisia ainda maior no processo de paz de Israel e palestinos, sem contar na falta de horizonte das guerras civis e conflitos fraticidas que se multiplicam na Síria, no Iraque, no Líbano, no Iêmen e na Líbia.

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2. A segunda questão é conceitual. O que é esse governo misto que o Egito tentou construir? Ele já existe? Algum outro país da região já foi capaz de construí-lo? É possível falar de um projeto político nesse sentido? Antes de tudo, vamos definir o conceito de governo misto,2 e de onde ele vem. E aqui vamos nos lembrar dos exemplos históricos francês e inglês e de suas revoluções.
Governo misto remete a uma combinação de formas de governo, verificada desde a Antiguidade greco-romana. O Período Clássico viveu alguns exemplos de sucesso de governos mistos como a Lacedemônia (Esparta) e a República de Roma. Em linhas gerais, o aparato dessa teoria incorpora inicialmente modelos esquemáticos, tipos ideais ou formas puras de governar ou exercer o poder político (MAQUIAVEL, 1994; BOBBIO, 1998). Por outras palavras, devemos inicialmente falar do que denominamos aqui como governos puros: desde formas centralizadoras como a monarquia, a tirania, a aristocracia e a oligarquia até, a mais descentralizada e inclusiva, a democracia. (ARISTÓTELES, 1998; POLÍBIOS, 1996; MAQUIAVEL, 1994; BOBBIO, 1998).
A combinação dessas formas puras de governar (ou seja, desses governos puros) gera outro modelo: o governo misto. A rigor, falamos de governo misto quando descrevemos um governo que combina elementos de mais de uma forma desses governos. Na Antiguidade, essa definição já fora explorada por teóricos como Aristóteles (1998) e Políbios (1996). No Renascimento, Maquiavel (1994) foi um introdutor fundamental desse conceito.3 Governo misto não se trata simplesmente de uma combinação de dois vocábulos. Mas é, sim, um conceito unívoco, porque não é, em si mesmo e enquanto totalidade articulada, nem democrático, nem monárquico. Não é também tirânico nem aristocrático (ARISTÓTELES, 1998; POLÍBIOS, 1996; MAQUIAVEL, 1994; BOBBIO, 1998). Então que forma de governo surge em tal caso? E, em termos de juízo de valor, é um avanço ou um retrocesso?
Nos casos dos processos revolucionários francês e britânico foram derrubadas duas formas de monarquias que já tinham se degenerado para formas de tiranias: as chamadas monarquias constitucionais. Ao final dos respectivos ciclos de lutas políticas, a França conheceu a república constitucional como resultado final de sua forma de governo misto; ao passo que a Grã-Bretanha conheceu a monarquia parlamentar. Em ambas, conheceu-se a combinação das diversas formas puras de governo. No caso francês, a função do governo de um, representado pelo presidente e seu gabinete comandando o Estado, o governo de poucos, através do sistema de garantias de privilégios e honras sustentados pela nobreza remanescente (um “Estado” dentro do Estado), e o governo de muitos, a partir dos deputados da Assembleia Nacional. E a separação completa do Estado em relação à Igreja. No caso britânico, a função do governo de um concentra-se em torno da Casa Real; o governo de poucos na Câmara dos Lordes; e o governo de muitos na Câmara dos Comuns; e a oficialização da Igreja Anglicana como sendo a instituição religiosa oficial do Estado, no entanto, sem que fosse obrigatória aos demais súditos da rainha (HOBSBAWM, 1996; HILL, 2003).
Essas formas de governos mistos foram se estabilizando ao longo da história, ao ponto de, na Grã-Bretanha, a Câmara dos Comuns concentrar, de fato, bem mais poder que as demais instituições nacionais. Na França, na medida em que a república era refundada, instituições eram substituídas. O sistema de privilégios e honras, por exemplo, desapareceu. O presidente teve que ceder parte de seu poder a um gabinete com primeiro-ministro, que, por vezes fazia parte de um grupo político adversário. Franceses e britânicos revelam, principalmente na segunda metade do século XX como governos mistos podem evoluir e tornar-se democracias liberais. É preciso nos lembrar que entre 1871 e 1945, a França pôde experimentar recuos, principalmente no início da II Guerra, com o regime de Vichy. E que a Grã-Bretanha viveu ao longo do século XIX, especialmente no auge de período enquanto império, um momento não exatamente democrático, sob o reinado da rainha Vitória, quando os negócios de Estado claramente se sobrepunham a interesses populares (HOBSBAWM, 1996).
Dados esses exemplos, podemos pressupor que o caminho do Egito, após a queda de Mubarak, será previsivelmente longo. Pois se formos aplicar os modelos históricos de França e Grã-Bretanha ao Egito, haverá muitas diferenças. Para começar, estamos falando a respeito de países criados dentro da tradição da Europa Ocidental, que viveram o Iluminismo e todas as principais revoluções liberais dos últimos três séculos, de forma que os seus povos foram atores e objetos diretos de seus acontecimentos; de dois dos países que estiveram diretamente envolvidos nas mais sangrentas guerras que a humanidade jamais havia conhecido até então. O Egito viveu esses períodos históricos, fosse como província periférica do Império, fosse como zona de influência ou mandato britânico. A tomada de consciência política da população pela formação de um projeto de governo estava inicialmente atrelada à experiência de tradição: a do islã.
E no islã, o pressuposto dos governos não distingue tradicionalmente as linhas da religião das da administração pública. Os princípios de governos laicos, ou ao menos, seculares, são de inspiração europeia. E só chegaram aos países muçulmanos ao longo do século XX, na medida em que estes conquistavam a independência em relação aos seus colonizadores. O esforço de separar, ou ao menos acomodar a religião em relação ao Estado tornava-se então uma novidade política. Principalmente após o término do Império Otomano, em 1922, e a fundação da República da Turquia.
E é em relação à Turquia que podemos falar a respeito do exemplo da construção de um governo misto, a partir de um país muçulmano. Talvez a sociedade muçulmana mais aberta a experiências do mundo ocidental no século XIX e XX, e portanto, mais preparada para aceitar os princípios de uma república com usos e costumes seculares. No entanto, nem mesmo a transição turca foi tranquila. Os primeiros anos da república turca foram marcados por uma forte repressão política, combate a religiosos, minorias não turcas, e centralização em torno de um só governante: o fundador do novo país Mustafá Kemal Ataturk, que faleceu em 1938. Esse período durou até 1950.
Apenas a partir de 1950, os turcos puderam realmente saber o que é um governo pluripartidário. Mesmo assim sob forte intervenção militar. Aconteciam eleições periodicamente, governantes eram eleitos, e, em determinado momento, os seus ciclos e de seus respectivos partidos se esgotavam. Nesse momento, uma nova força partidária assumia o poder. Em alguns desses momentos, as Forças Armadas turcas aproveitavam para desferir golpes de Estado, e reorganizar, ao seu modo, o sistema político. Isso aconteceu por quatro vezes: 1960, 1971, 1980 e 1997. Elas dissolviam os partidos políticos que estavam no poder ou ameaçavam a ordem vigente, mas não mexiam no sistema como um todo. Mantinham eleições gerais, revezamento de partidos, coalizões, etc. E toleravam a religião, desde que não confrontassem com o discurso do Estado, que era antirreligioso desde sua fundação. Com isso, permitiam que esquerdistas assumissem o poder, desde que não fossem socialistas. Democratas, desde que fossem liberais, e não radicais. Islâmicos, desde que não fossem islamistas, e estivessem mais próximos de um modelo similar à democracia cristã europeia.4
Foi nesse contexto que o partido de ideologia islâmica Justiça e Liberdade (AKP, em turco) assumiu o poder em 2003, com Tayiip Reccep Erdogan. E desde então, ele permanece, mantendo um governo sob coalização. Convivendo (muitas vezes, sob fortes tensões, diga-se) com uma oposição secular e um Estado anticlerical (ECONOMIST, 2012; 2012a; 2007; 2007a; 2007b). Preservando uma sociedade ocidental, mas com um governo de partido islâmico. Trata-se de um governo democrático autêntico? Não. Existem questões que ainda estão pendentes, como aspectos sobre a religiosidade e os direitos humanos (ECONOMIST, 201b; 2011). Por outro lado, o Estado turco ainda não reconheceu a sua responsabilidade na questão do genocídio armênio ocorrido há mais de um século. A minoria curda, que constitui cerca de 20% do total da população, permanece sob forte restrição cultural, apesar de estar melhor representada no parlamento nacional hoje do que no passado.
Mas também não se pode chamar simplesmente a Turquia de um regime despótico. Há situações de autoritarismo, principalmente vindas do gabinete do primeiro-ministro Erdogan e do Estado Maior. No entanto, o fato de existir uma combinação de formas puras de governo dilui esses autoritarismos e favorece soluções negociadas. A existência de um governo misto, que compõe em um país muçulmano; a presença estratégica de um Estado Maior, proveniente de uma oligarquia militar; um gabinete nomeado a partir de uma aristocracia de políticos profissionais de formação predominantemente religiosa: e um parlamento legitimado por um sistema de democracia indireta5 dá a perspectiva de que é possível em outros países um exemplo semelhante de gestão política (NEW YORK TIMES, 2011). E que isso não necessariamente levaria um Estado a tornar uma república Islâmica como foi o caso do Irã.
É possível até que essa convivência com o islã torne a prática política mais moderada. E sendo o islã não apenas religião, mas também um modo regulador da vida e do imaginário popular da região (KAMEL, 2003; DEMANT, 2004; PACE; 2005). No entanto, como proceder, nesse caso, em que se faz necessário acomodar os princípios da soberania popular já tão disseminados mundialmente, com os do islã, que são na verdade preceitos que partem de uma origem divina? Essa acomodação de contrários pode ter sido um fator que, no caso egípcio, tornou-se um obstáculo intransponível. Pelo menos no atual momento histórico, em que as forças políticas e institucionais saíram de uma paralisia de três décadas.

Egito: da Revolução à Contrarrevolução

O fato é que, após a queda de Mubarak em 2011, as Forças Armadas egípcias detinham a soberania, de fato, da economia do país, controlando as mais variadas atividades produtivas. De modo que poderiam ser mais do que meros garantidores do processo político: em determinado momento, seriam eles os seus próprios geradores. Por outro lado, a sociedade egípcia estava dividida, tanto politica, quanto eleitoralmente. Foi o que se verificou nas eleições parlamentares, onde as tendências islamistas obtiveram 72% dos votos e assentos parlamentares, 47% destes pertencentes à Irmandade Muçulmana (EGITO, 2012). O perfil que se via no Egito era bem semelhante ao da Turquia. Forças Armadas com tradição secularista e um partido ou conjunto de partidos islâmicos controlando a maior parte dos processos políticos eleitorais.
Não foram os islamistas e islâmicos os principais participantes da revolução 2011. Pelo contrário: as principais lideranças e o perfil de militância dos que derrubaram Mubarak eram formadas por indivíduos de formação liberal, democrática, esquerdista, e, de modo geral, leiga ou laica. Esse setor, que foi capaz de se articular e fazer presença na Praça Tahrir,durante diversas semanas consecutivas até derrubar o Antigo Regime não conseguia se articular nas periferias do Cairo e de Alexandria, tampouco nas zonas rurais, onde a caridade religiosa dos Irmãos Muçulmanos e outras fundações estavam bem mais presentes e atuantes (NÉFISSA, 2011).
Foi diante dessa divisão que as lideranças remanescentes do Antigo Regime começaram a se articular. De um lado, o Tribunal Constitucional acatou uma representação que questionava a independência dos deputados eleitos na Assembleia Popular e proibiu a sua reunião. De outro, a Junta Militar começou a interferir diretamente na escolha dos nomes das candidaturas à presidência do país. O primeiro nome da Irmandade Muçulmana, o empresário Khairat Al-Chater, foi vetado. Em seu lugar, foi colocado o burocrata Mohammad Morsi. No processo eleitoral, a oposição revolucionária não conseguiu escolher um nome de consenso, e, divididos, os seus candidatos não conseguiram votação para o segundo turno. Enquanto o candidato que representava o Antigo Regime Ahmed Shafik conseguiu votação suficiente para a etapa seguinte do pleito. No final, a vitória foi de Morsi por estreita margem: 51,73% a 48,27% dos votos válidos. E mesmo assim, apenas após a aprovação da junta militar, devido a questionamentos sobre a lisura da votação (EGITO, 2012a).
No conjunto, Morsi tentou praticar uma revolução conservadora, montando a mais ampla coalizão que poderia articular. Ele abdicou de pertencer à Irmandade Muçulmana quando assumiu a presidência e nomeou como vice-presidente um importante membro do Tribunal Constitucional,6 mais alinhado com posições democráticas e, por isso, um bom articulador entre o presidente e o judiciário. Ali, estava bem clara a composição política: um governo misto cujo chefe do poder executivo, eleito pelo voto popular, abdicou da organização da qual pertencia e nomeou como o seu vice o membro de um tribunal que, sob o comando militar dos remanescentes do antigo regime, vetou a participação de sua organização no poder legislativo. Não que a Irmandade tenha desaparecido, no entanto sua presença se tornou bem menos notada. Na formação do governo, ela teve apenas quatro ministérios (de um total de 35). A Assembleia Popular permaneceu sem poder ser formada (apesar de Morsi a ter convocado após assumir a presidência) por conta do veto do Tribunal Constitucional. Morsi, eleito pela Irmandade Muçulmana e dela desfiliado, governando sem um poder legislativo eleito e tendo como vice um importante membro de um tribunal formado no antigo regime, era então o presidente de todos os egípcios.
A Irmandade, mesmo não tendo o poder que poderia obter, ainda via a oportunidade de realizar avanços dentro de sua agenda política religiosa. Detendo alguns ministérios no novo governo, buscou ampliar a sua presença no Estado. No entanto, mais uma vez os movimentos democráticos e liberais, bastante preponderantes no Cairo e em Alexandria, voltaram a se manifestar, dessa vez com organização mais ampla (não sem o apoio de setores seculares restauracionistas), e conseguiram uma mobilização maior nas ruas, a fim de deter o avanço da religião sobre o Estado.
Tentando ganhar tempo, os Irmãos Muçulmanos aceleraram a elaboração da Constituição do país, colocando em dúvida o secularismo da sociedade, dando ao corpo de clérigos islâmicos o poder de interpretar leis civis. Esse fato gerou um grande impasse. Tendo sido terminados os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, colocou-se em votação popular a validade da Carta, que obteve aprovação de 64%. Tendo, no entanto, uma votação teve a presença de apenas 32% dos eleitores inscritos. A maioria decidiu seguir o boicote proposto pelos setores laicos e leigos.
A questão da Constituição foi o divisor de águas para Morsi. Bom articulador político, demonstrou não aceitar ser um subordinado das Forças Armadas, ao ter destituído o marechal Hussein Tantawi, e colocado em seu lugar o general Abdul Fatah Al-Sissi, militar mais novo e alinhado aos EUA; demonstrou flexibilidade ao se apresentar como intermediário entre Israel e o Hamas na crise de Gaza entre 2011 e 2012 buscou evitar colorações ideológicas mais contundentes em seu gabinete, nomeando burocratas sem filiações partidárias, inclusive para o cargo de primeiro-ministro. Por outro lado, Morsi perdeu-se entre ter de seguir a lealdade à sua organização e ao comando de seu país. Na questão da Constituição, não teve a velocidade e a energia necessárias para se posicionar. Dono de uma oratória fraca, acostumado com articulações de bastidores, o ex-presidente egípcio de repente se viu cercado por um movimento político, formado especialmente por aqueles que paradoxalmente tinham derrubado Hosni Mubarak, dois anos antes. Sua imagem ficou deteriorada. Um movimento com milhões de assinaturas foi feito pedindo a sua destituição (TURRER, 2013). Francamente desinteressados em manter-se colaborando com Morsi, os membros das Forças Armadas, colocados como fiadores do processo político, aproveitaram a ocasião, e, em julho de 2013, depuseram Morsi. Rearticularam uma nova composição política, incluindo não apenas os remanescentes do Antigo Regime, mas nomeando democratas, liberais e islamistas não pertencentes à Irmandade. Com o tempo, aqueles que antes apoiavam a queda de Morsi foram notando o que estava se passando. Mohammed El-Baradei, que compôs esse governo como vice-presidente, renunciou ao cargo. Em sucessão, outros políticos foram saindo. A Irmandade, que nunca aceitou a queda de Morsi, rearticulou-se como principal força do novo Antigo Regime. Tarde demais. As Forças Armadas conseguiram restabelecer o seu antigo regime despótico: o Mubarakismo sem Mubarak. Baniu não apenas a Irmandade, mas todas as organizações ligadas a ela. E a violência política retornou às ruas. Dessa vez, sem a perspectiva de uma revolução.

Contrarrevolução e Forças Armadas: a realidade egípcia

A vitória da contrarrevolução no Egito parece nos dar algumas lições. Mesmo a possibilidade de construir um governo misto, apesar de ser a alternativa mais possível e viável, ao invés de um sistema democrático liberal, é bastante difícil e acidentada, com grandes tendências a recuos. É necessário observar a existência real da hegemonia das instituições que de fato comandam o Egito: são as Forças Armadas que tiveram e têm o poder de veto para determinar que espécie de regime que o país terá. O comportamento e a atuação das Forças Armadas egípcias nesse sentido são decisivos, enquanto corporação que representa uma oligarquia nacional, que possui autonomia não apenas para influir no jogo político, como também na economia do país. Se os interesses imediatos não forem contemplados, elas imediatamente colocarão o Egito de volta à estaca zero no quesito abertura política. Esses interesses são da ordem política, geoestratégica e econômica, e não dizem respeito apenas ao Egito, mas também aos demais países árabes de independência recente (KAWAKIBI, KODMANI, 2011).
As alianças que as Forças Armadas egípcias sustentam, especialmente com os EUA, no Sistema Internacional são determinantes. A percepção de ameaça por parte de grupos internos no Egito, e externos, em relação à Irmandade Muçulmana também é um fator que pode ser citado - Israel percebe essa organização como um inimigo histórico maior, e prefere ter as Forças Armadas egípcias comandando, de fato, o país a ter islâmicos nessa posição; a Arábia Saudita e o Catar percebem a Irmandade como um concorrente dentro do Mundo Árabe enquanto fonte de difusão da organização religiosa do Islã; as repúblicas leigas do Mundo Árabe que não tiveram os seus líderes removidos do poder também a temem; assim como o Irã enquanto difusor de uma forma de república islâmica.
Por outro lado, o simples fato de que um governo liderado pela Irmandade Muçulmana pudesse ter, no futuro, uma prerrogativa para modificar as prioridades orçamentárias do país, gera ainda mais desconfortos para as Forças Armadas. A crise política por que passou o Egito teve claros reflexos econômicos. Se fosse necessária uma reforma sob um regime, se não democrático, ao menos liberalizado, ou pelo menos composto de forma mista, qual seria o espaço das Forças Armadas nesse orçamento? Todo o apoio financeiro dos EUA ao Egito está condicionado à destinação dessas verbas ao Exército do país. E é esse o condicionante que tem pautado, não apenas a continuação da revolução egípcia, mas a sua contrarrevolução.

A Paz no Oriente Médio: primaveras e invernos

O fato real é que o Oriente Médio vive uma “paz” armada cujos condicionantes principais não fazem parte da política interna dos respectivos países, mas sim de um macrossistema de Relações de poderes, em que o Egito é peça central. A queda de Hosni Mubarak alterou ligeiramente os alicerces desse sistema. No entanto, não desmontou a estrutura fundamental da lógica de comando. São Estados Nacionais centralizados, sob a vontade de suas corporações, seus reis ou seus déspotas que comandam as relações fundamentais desses países. E não os seus respectivos povos. Alguns Estados do Oriente Médio tiveram a evolução de um sistema despótico para regimes de governo misto. A Tunísia, a Líbia, o Iraque ou Iêmen, sob república, ou o Marrocos e a Jordânia, sob monarquia, por exemplo, tiveram essa evolução. Mesmo assim, nos casos marroquino e jordaniano, ainda com forte influência do braço do rei. Na Líbia e no Iêmen, o sistema eleitoral não foi capaz de aplacar as disputas ideológicas entre islâmicos e seculares, entre clãs e entre regiões. No Iraque e no Iêmen, soma-se ao conflito xiitas versus sunitas, uma questão que já aflige o Líbano há muitas décadas com um sistema eleitoral próprio baseado em sectos religiosos, subreligiosos e comunitários.7
Então, o governo misto não é necessariamente uma solução, mas sim uma possibilidade. Mas não o governo misto a partir do que se definiu nos clássicos greco-romanos e com Maquiavel, quando o princípio de estabilidade é importante, para não dizer fundamental. Mas é a sombria e preocupante definição de governo misto enquanto construção provisória. A triste notícia é que em alguns casos essa é a medida que resta para não se mergulhar em uma guerra civil como a que a Síria vive. Um acordo mínimo de setores políticos, onde um equilíbrio pouco estável é gerado até que o próximo desequilíbrio desestrutura a frágil correlação de forças desses países.
Por outro lado, é possível que um país do Mundo Árabe possa criar uma forma estável de governo misto? O país que talvez pretenda exportar esse modelo é a república da Turquia, onde um governo islâmico consegue se manter há mais de dez anos no poder de um Estado secular. Onde existem alguns espaços em que se nota tendências de democratização (NEW YORK TIMES, 2011). Mas onde, entretanto, existem outras instâncias dentro do país sujeitas à islamização antidemocrática e à reação militaristas, que de tempos em tempos gera tensão entre governo e Estado.
Nesse sentido, o caso turco pode estabelecer um horizonte para se pensar a forma de convivência entre as esferas laica e religiosa de uma sociedade muçulmana, de modo que pluralismo político e a circulação de ideias não sejam sacrificados, seja em nome do militarismo, ou em benefício da lei islâmica. Um acordo que modere as esferas religiosa e laica da sociedade turca é um bom exemplo do que outras sociedades muçulmanas podem experimentar para si. A Tunísia pós-Ben Ali, por exemplo, tem a oportunidade de se aproximar de tal modelo. Assim como Marrocos, Jordânia e Argélia, desde que se estabeleçam acordos nacionais onde o modus vivendi da religião e o seu status político não interfiram no dia-a-dia do setor leigo, mais integrado à economia e a política globais. Trata-se de um acordo difícil, no entanto, possível, se as partes envolvidas souberem delimitar com clareza a fronteira entre a vida civil e a religiosa de seus respectivos países. Tal processo, dentro do islã, é acidentado já no momento em que se sabe que o limite que separa as instituições religiosas das civis são bens menos nítidas que no caso das cristãs, onde a hierarquia de uma Igreja já está posta, em contraste com a sociedade civil. Enquanto a base do islã é formada pela própria definição de comunidade dos fiéis (umma). Por mais firmes que sejam os acordos entre clérigos e membros da sociedade civil, existe sempre a possibilidade de uma dissidência a contestar tal pacto, obrigando a todas as partes a um novo acordo. De todo modo, a Turquia, se não se apresenta como um caso democrático-liberal, ao menos pode oferecer um modelo onde a sociedade civil moderna, e a religiosa tradicional, podem, através de um acordo Estado-governo, construir um governo misto, com uma esfera secular e outra religiosa, mantendo em acomodação os seus princípios opostos operantes.
E aqui pode ficar uma pergunta. E Israel? Bem, nesse caso temos o outro lado da moeda. Um país que se declara democrático e que sustenta uma série de limitações políticas, cujo resultado é, de fato, um misto onde convivem participação popular, separação entre povos de diferentes origens, militarismo e religião enquanto definidor identitário do Estado e da sociedade em maior ou menor grau. O desafio dos israelenses em criar um Estado ao mesmo tempo judaico e democrático esbarra na não-definição de seu status político em relação aos seus rivais históricos, os palestinos, cuja terra vem sendo, há décadas, colonizada e retalhada. Nesse sentido, Israel é bem menos uma democracia do que um governo misto com alto grau de estabilidade, onde os presidentes e primeiros-ministros vão entrando e saindo de suas posições em processos políticos regulares. No entanto, isso só acontece na medida em que membros das Forças Armadas israelenses estão intimamente ligados a posições executivas e legislativas do jovem país que, desde a sua fundação, vive em Estado de guerra, o que presume que não se trata de uma situação exatamente normal. Onde religiosos, embora minoritários, têm a margem de manobra necessária, tal qual nos países muçulmanos, de realizar constrangimentos que alteram o funcionamento da vida pública comum. A força de seu exército torna o Estado de Israel uma fonte paradoxal: gera segurança maior perante uma possível guerra para os seus cidadãos; no entanto, gera uma imensa insegurança para os seus vizinhos se um governo mais extremista for eleito, ainda mais sob o beneplácito de Washington.
E o Irã? Este é outro caso emblemático. Pois aqui, apesar de ter claros atributos de governo misto, para todos os efeitos, já se apresenta como uma república islâmica. A priori, a lei religiosa é ponto de partida para tudo. Eleições, espaço público, divisão do trabalho, produção, etc. De qualquer forma, é possível notar que está bem claro com quem está a palavra final: com o líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei. A margem de manobra da Assembleia ou do presidente, e mesmo o Conselho de clérigos, é pequena. As instituições republicanas, como o Exército, sofrem o contrapeso decisivo das islâmicas como a Guarda Revolucionária. Trata-se de uma separação institucional com linhas muito claras. De tempos em tempos, este país sofre crises internas, onde os setores menos e os mais religiosos entram em convulsão, que é quando a Guarda Revolucionária e Khamenei entram como interventores decisivos. Enquanto liderança de um governo de mais de dezenas de etnias, e mais de 70 milhões de habitantes, até conseguirem alguma estabilidade. Mas a que custo? E que tipo de governo?
Ou seja: não é possível nem mesmo dizer que um governo misto estável pode ser resposta para questões urgentes do Oriente Médio. Porque a questão talvez nem seja a estabilidade do regime, que já ajuda muito na previsibilidade do funcionamento do país. No entanto, certamente é decisiva a educação política desses povos. A realidade é que nenhum país conquista um alto grau de democratização, ou ao menos de abertura política, sem que se tenha um acúmulo de lutas políticas. Se lembrarmos de como França e Grã-Bretanha mergulharam em guerras civis e entre outros países, processos revolucionários, períodos ditatoriais, de abertura, de avanços e recuos até atingir o grau maturidade política que possuem hoje (que afinal não é necessariamente o grau mais avançado que já puderam obter), por que outros países, como o Egito, não poderiam superar caminhos históricos semelhantes? E necessariamente a história política de um país não precisa se repetir de maneira igual a de outros. Material e tecnologicamente, o Egito do século XXI vive uma realidade bem distinta de França e Grã-Bretanha dos séculos XVII, XVIII e XIX, e da Turquia do século XX. As oportunidades que o povo egípcio têm de superar o atual momento contrarrevolucionário estão postas na mesa. O povo egípcio já demonstrou que pode ser ator e objeto de sua própria história de 2011 a 2013. Assim como os demais povos árabes. No entanto, é necessário que compreendam o seu macrossistema político como algo maior do que apenas os seus Estados Nacionais. E que possam compreender também como a lealdade entre presidentes, reis, emires, sultões e aiatolás com os governantes ocidentais pode extrapolar as fronteiras de seus países. É necessário entender que, a fim de atingir qualquer estágio democrático, uma sociedade deve antes criar uma vivência democrática. A simples luta por conferir poder a clérigos em uma Constituição civil pode servir como uma irresistível arma para aqueles que não desejam que o seu país não tenha abertura política. Que alguns dos confrontos mais frontais entre forças políticas antagônicas pode ser, na realidade, assimétrico, como ficou claro quando os Irmãos Muçulmanos, após vencerem as eleições, viram-se isolados e objeto de um golpe de Estado dos militares no Egito, para prejuízo das forças mais democráticas, inclusive as que acreditaram honestamente no atual comandante de fato do país. O fato é que nunca foi tão atual o princípio de que tudo deve mudar, para tudo ficar como está.

REFERÊNCIAS

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Sites e reportagens

 

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ilustração:Rafael Moralez


1Professor de Relações Internacionais pela FMC/UNIESP, Doutor em Ciência Política e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo.

2 Quando colocamos governo misto em itálico é para delimitar o conceito central do presente artigo.

3 Maquiavel: diálogo com os antigos para entender os modernos. Reler os clássicos, descobrir os temas recorrentes e os problemas da atualidade (MAQUIAVEL, 1994, p. 17).

4 Para maiores informações, consultar (KAYALI, 2003).

5 A presidência turca, ocupada por Abdullah Gul, do partido AKP, permanece aqui como um cargo cerimonial, portanto, destituído de poderes reais. Na prática, o Estado Maior turco, que controla o monopólio da força do país, tende a ter como interlocutor direto o gabinete Erdogan, que estabelece o comando da burocracia civil, por meio dos ministérios governamentais.

6 O juiz Mahmud Mekki, “[…] conhecido pela sua independência e pela participação, em 2005, no movimento dos juízes egípcios contra as ingerências do poder político, ingerências essas que sempre denunciou.” (GRESH, 2012a).

7 A divisão do paralento libanês de 50% das cadeiras para cristãos (onde se subdividem os maronitas, ortodoxos, protestantes, armênios e outros); e 50 % das cadeiras para muçulmanos (onde se subdividem sunitas, xiitas, drusos e outros).