revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Cicero ARAUJO

Nas pegadas da crise

 


Lá se vão quase seis anos desde que estourou a bolha imobiliária que deu início à mais séria crise econômica global desde a Grande Depressão. A partir dali uma enxurrada de materiais bibliográficos - livros, artigos, relatórios, teses acadêmicas -, assim como audiovisuais (documentários), veio a público contar a história da crise e seus efeitos, explicações e análises de suas causas etc. Seria muito interessante se pudéssemos ter um balanço abrangente de toda essa produção. Talvez isso já tenha sido feito em algum lugar; mas como não sou economista e nem acompanho o assunto de modo sistemático, percorro a discussão meio a esmo.
Para consolar minha ignorância, pareceu-me que no início da crise nem mesmo os especialistas estavam entendendo direito o que se passava, muito menos o que poderia vir pela frente. Mas aos poucos as coisas foram adquirindo maior nitidez, os fatos dispersos se encaixando e narrativas mais consistentes (e também mais acessíveis) se construindo. As dificuldades de compreensão continuam, não apenas porque sou leigo em economia, mas porque a explosão da bolha espalhou seus estilhaços em todas as direções, que evidentemente não se limitam à economia. As principais baixas, aliás, estão em outros lugares.
Como deve ter acontecido com muitos outros, a crise abalou minha confiança no poder das instituições democráticas, senão de neutralizar, ao menos moderar as tendências mais perversas do capitalismo contemporâneo. Os relatos que fui lendo, assistindo e ouvindo, indicam que, pior ainda do que o fato de terem se mostrado muito frágeis para a tarefa, essas instituições há um bom tempo estavam sendo corroídas por dentro, colaborando com as mesmas forças que levaram ao colapso de 2008.
Inside Job, de Charles Ferguson (2010), é um documentário avassalador, além de bastante didático. Um tanto maniqueísta é verdade, mas seu propósito não era simplesmente contar. Ele também queria produzir aquele sentimento que qualquer um que o tenha visto deve ter sentido: a boa e velha indignação. Na história, sobrou para quase todo mundo: os executivos das empresas de crédito imobiliário e de seguro, é claro, assim como os especuladores de Wall Street e todo o sistema financeiro privado; mas também as agências de rating e os lobistas que, ontem e hoje, giram como urubus ao redor das casas legislativas e das agências estatais; também saem mal dessa história os próprios dirigentes das agências estatais - em particular os bancos centrais -, em princípio escalados para regular e manter os negócios dentro de limites razoáveis, junto com os políticos que, em vez de servir seus eleitores, serviam na surdina seus financiadores de campanha. Impressionou-me especialmente o envolvimento do mundo acadêmico, das faculdades de economia de prestígio, com vários de seus docentes metidos em consultorias que emprestavam a chancela da mística científica para arranjos financeiros temerários, em seguida autorizados por órgãos públicos.
As entranhas do mundo corporativo são examinadas com muita vivacidade por dois jornalistas norte-americanos que há anos acompanham, em postos de observação privilegiados, a montanha russa das bolsas de valores e seus protagonistas. All the devils are here: the hidden history of the financial crisis (2010), de Bethany McLean e Joe Nocera, mostram as realidades desse mundo não com conceitos e fórmulas abstratas, mas acompanhando as trajetórias de pessoas de carne e osso, com suas paixões contraditórias mobilizadas e turbinadas para dar conta das exigências do “sistema”. Parte do livro é voltada para explicar a evolução das empresas que, desde os tempos do New Deal, dedicam-se ao crédito e comércio de hipotecas, e como elas foram se entrelaçando com o mundo bancário, até se confundir com ele. Essa é a trajetória da Fannie Mae (diminutivo para Federal National Mortgage Association) e Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Corporation), as duas gigantes do negócio imobiliário, nascidas para abastecer o sonho americano da casa própria, por isso mesmo originalmente impulsionadas pelo governo federal.
Essas empresas vão estar no olho do furacão nos meses críticos de 2008, uma vez que detinham cerca de metade de todas as carteiras de negócios imobiliários do país, avaliado em alguns trilhões de dólares. É um dinheiro imenso, mas o que exatamente isso tem a ver com a quebradeira generalizada de empresas que levaram ao crash das bolsas? A questão nos leva do sonho da casa própria para o mundo dos bancos de investimento e das empresas de seguro. Nos anos 1980, movidos pela dupla necessidade de criar sempre novos produtos para atrair investidores e, ao mesmo tempo, driblar as angústias deles para com o risco, os bancos começaram a usar as hipotecas, ou diferentes “pedaços” delas, como garantias de seus pacotes financeiros, que então eram comercializados na bolsa. Mais tarde, esses pacotes passaram por uma nova sofisticação, quando foram inventados produtos destinados a “securitizar” todo tipo de investimento, inclusive os pacotes garantidos por hipotecas. A fim de se garantir contra perdas, os investidores passaram a fazer essa securitização através dos chamados “credit default swaps” (CDS), para se safarem da eventual desvalorização de seus ativos. Embora inventados pelos bancos de investimento, os CDS tornaram-se um produto privilegiado das empresas especializadas de seguro - como a AIG (American International Group), a respectiva gigante norte-americana do ramo - que acabaram transformando-os em novos ativos, num estranho mercado secundário, chamado de “derivativos”, em que especuladores vão transferindo uns para os outros os riscos inerentes a esses produtos. Afinal, a questão toda é que os riscos nunca são eliminados de fato, apenas passam de uma mão para outra: do investidor para a seguradora, da seguradora para um novo investidor... até, eventualmente, voltar ao ponto de origem!
Uma das grandes novidades do período foi a tentativa de introduzir uma aparência de racionalidade nesse mundo de fantasia: o cálculo do risco. A ideia foi patrocinada inicialmente pelo banco J.P. Morgan nos anos 1990, quando seu então presidente, “Sir” Dennis Weatherstone, começou a contratar matemáticos e físicos para elaborar, com auxílio de computador, modelos matemáticos que calculavam os riscos de calote (“default”) segundo a clássica curva de Gauss de distribuição de probabilidades, que supostamente manteriam os negócios da empresa fora da zona de perigo. O segredo desse esforço, porém, estava na expectativa de que o colapso do sistema poderia ser evitado na medida em que os riscos pudessem ser diluídos no imenso oceano de papeis que o mundo financeiro fazia circular em todo o planeta, e que crescia continuamente. Já perto do estouro da crise, estima-se (pois ninguém saberia dizer ao certo) que só o volume de derivativos ultrapassava em muitas vezes a soma de todos os bens e serviços - a chamada “economia real” - produzidos no mundo anualmente.1 Pensando que a segurança de seus próprios negócios dependia da difusão desse “controle racional” dos riscos em todo o sistema, os executivos do J.P. Morgan nem se preocuparam em cobrar pelo uso de suas ferramentas matemáticas: pelo contrário, trataram de promover cursos e treinamentos para os tornar familiares entre investidores e outras corporações. Uma vez difundidas, essas práticas farão os gerentes financeiros confiar menos em si próprios e mais nessa espécie de piloto automático. Parecia que se estava perto de realizar o sonho de certos expoentes do livre-cambismo, de deixar a condução do mundo para programas de computador, em vez de entregá-lo à parcialidade e inconstância de seres humanos...
Como então as agências estatais de controle e regulamentação entram nessa história? Acontece que, embora a regulamentação busque conservar a sanidade do mercado financeiro, a fim de evitar sua tendência ao colapso, ela também acaba bloqueando o impulso para explorar novas fronteiras e novas oportunidades de lucro. Essas formas de controle, que também ganharam força nos EUA a partir do New Deal, vão desde exigir dos bancos uma reserva de capital considerável para cobrir possíveis calotes em suas carteiras de empréstimos, até estabelecer fronteiras claras entre tipos de atividade bancária, como a comercial (onde estão as contas correntes do cidadão comum) e a de investimento em ações, títulos etc. No entanto, exigir reservas de capital significa deixar inerte um montante que poderia ser aproveitado para novos negócios. E separar os ramos bancários, embora bom para evitar a contaminação, na banda comercial, das perdas que pudessem vir da banda mais disposta a se arriscar, não é bom para a perspectiva de somar os ganhos potenciais de ambos os lados.
Mas é claro que, depois de tantas experiências traumáticas, o próprio mundo financeiro não gostaria de desafiar frontalmente a ideia geral de que regras comuns são imprescindíveis. Antes, seu campo de batalha com o Estado passa a ser sua reinterpretação e flexibilização, em vista das mudanças da economia e do desenvolvimento do próprio mercado financeiro. É nesse ponto que a invenção de novas ferramentas de cálculo de risco e de novos produtos que embutiam a ideia de “securitização” vai jogar um papel importante, no sentido de convencer os reguladores de que o mercado e as empresas estavam aprendendo a lidar com suas próprias fragilidades. As regras “externas” - emanadas das agências estatais - deveriam, portanto, ser reajustadas para dar lugar a essas novas capacidades de autocontrole. Com base nessa plataforma, ao longo dos anos 1990 o lobby financeiro norte-americano foi aos poucos conseguindo afrouxar os modos tradicionais de controle, a começar com as menores exigências de reserva de capital em certos tipos de investimento (justamente no mercado de derivativos!), culminando na revogação, em 1999, da Lei Glass-Steagall, que desde 1933 mantinha estritamente separados os bancos comerciais e os bancos de investimento.
Como não poderia deixar de ser, uma boa dose de ideologia também ajudou. Que o mundo dos negócios esteja povoado de crentes nas virtudes do mercado, é natural. Nem sempre esse é o caso na esfera estatal. Nos últimos tempos, contudo, uma mudança geral no clima das convicções esteve em curso, afetando os partidos e a alta administração do Estado. Tomem-se, especialmente, as mudanças da cúpula do Banco Central norte-americano (o Federal Reserve), aceleradas com a ascensão de Allan Greenspain à sua presidência em 1987, no final do governo Reagan. Durante sua longa gestão, terminada em 2006 e muito ancorada na visão otimista sobre “a disciplina do mercado” que sempre marcou suas falas no Congresso, Greenspain abriu o caminho para que a fome de novas oportunidades fosse saciada. Mas o vento das mudanças também atingiu o Partido Democrata - tradicionalmente mais cioso da ação regulatória -, tanto que Greenspain foi reconduzido ao cargo durante a administração de Bill Clinton, enquanto tornava-se um dos principais conselheiros do presidente. Diga-se de passagem, a Lei Glass-Steagall foi revogada no penúltimo ano de seu governo.
Um outro dado fundamental nessa cadeia de eventos foi a transferência crescente de responsabilidade para as tais “agências de rating”. Transferência ancorada, claro, na crença na capacidade de a própria indústria financeira gerar instituições de vigilância confiáveis, mas que não deixava de se aproveitar do aumento realmente impressionante da complexidade dos produtos dessa mesma indústria, tornando as práticas de “rating” (a classificação dos investimentos) legítimas perante investidores incapazes de informação independente. Isso vai induzir os reguladores estatais a se valerem cada vez mais delas para nortear seu comportamento. É assim que as três grandes empresas voltadas para essa atividade - Moody’s, Standard & Poor e Fitch Ratings - passarão a definir, quase como uma verdade imune à dúvida, a qualidade dos diferentes papeis, das ações das empresas aos títulos das dívidas privadas e públicas, passando pelos derivativos. Esse papeis recebiam notas (“grades”), que indicavam as margens de riscos para os investidores: desde o “triplo A” (os mais seguros, equivalentes aos títulos emitidos pelo Tesouro americano) até os que ficavam abaixo do “triplo B menos”, denominados junk bonds.
Entre os papéis2 que passaram a receber as notas das agências de rating, estavam os novos produtos do mercado de derivativos, desenvolvidos a partir dos anos 1980: os garantidos por hipotecas, os CDS e os ainda mais complicados, as tais Collateralized Debt Obligations (CDO), também chamados de “sintéticos”, porque misturavam num só produto uma série de outros, constituindo uma “cesta” que se pretendia obediente ao princípio do equilíbrio de riscos. Quanto a esses últimos, justamente o fato de juntar coisas muito diferentes num mesmo pacote tornava-os por demais intransparentes e suscetíveis à manipulação. Essa intransparência permitiu que os corretores inserissem nos pacotes papeis que, individualmente, seriam considerados de qualidade muito duvidosa - esse era o caso dos títulos garantidos por fatias de hipotecas subprime - mas que, misturados a outros de melhor qualidade, acabavam se viabilizando comercialmente. Foi assim que os CDO puderam se credenciar a notas altas nas agências de rating - frequentemente o triplo A! -, mesmo contendo papeis que, isoladamente, não passariam de junk bonds.3
As hipotecas subprime foram chamadas assim por serem empréstimos imobiliários que ficavam bem abaixo dos padrões de exigência de um bom (“prime”) crédito, o que resultava numa alta probabilidade de não serem honrados. Trabalhar com subprime não era a política tradicional das gigantes do ramo, Fannie Mae e Freddie Mac, mas a forte pressão do governo federal no sentido de ampliar o crédito imobiliário para as classes de mais baixa renda, junto com a pressão da concorrência de outras empresas menores que vinham ganhando fatias crescentes do mercado, graças à prática de empréstimos selvagens, levou-as a expandir as hipotecas subprime a níveis inéditos. Eis aí uma das raízes do boom imobiliário norte-americano. Porém, suas consequências para a economia mundial não teriam sido tão relevantes, a não ser se conseguissem vazar para a mundo financeiro mais amplo.
Foi exatamente o negócio de derivativos, boa parte por meio das CDO, a veia que permitiu os bancos de investimento e as empresas de seguros fazer essa transfusão, transportando para Wall Street e, daí, para as demais bolsas de valores - mais integradas do que nunca -, os temerários, mas bem disfarçados créditos que agora revertiam o boom numa fantástica bolha imobiliária, multiplicando em escala planetária seus efeitos desastrosos. Diluir riscos parecia uma boa ideia, desde que a letalidade de uma parte deles não contaminasse o resto. Mas como declarou mais tarde um executivo de Wall Street (citado por McLean e Nocera), fabricar as CDO era como “purificar urânio até você chegar a seu ponto mais tóxico”.

Como eu disse no início, ler essas histórias, por mais bem contadas que fossem, causou-me uma leve sensação de maniqueísmo. (Talvez fosse melhor dizer um sutil moralismo?) Como seus propósitos não são apenas esclarecer, mas denunciar, acho esse viés da narrativa aceitável, pelo menos como ponto de partida. Mas fiquei querendo algo mais. Sem dúvida, o mundo das finanças, mais do que qualquer outra região da economia capitalista, é repleto de pessoas gananciosas e inescrupulosas que vivem se trucidando umas às outras, na competição selvagem pela ascensão dentro das empresas e para abocanhar o que se puder das fatias dos mercados. Isso, sem falar dos incríveis salários e prêmios oferecidos... Por outro lado, mesmo brigando, eles também são capazes de se unir, quando necessário, mas sempre com prejuízo de terceiros. Mas por que o sistema funciona assim? Por que são justamente aquelas pessoas que acabam, senão tomando conta, dando o tom dos acontecimentos? E por que o sistema político não conseguiu agir de outro modo mas, pelo contrário, mostrou-se dócil e mesmo cooperativo - as exceções apenas confirmando a regra - com as pretensões dos lobistas e seus patrões?
O caráter das pessoas e um sentido comum de interesse público contam, sem dúvida, mas é evidente que o buraco é mais embaixo. Não estou dizendo que o documentário e o livro que comentei tivessem uma intenção tão moralista assim - reitero a sutileza de suas narrativas -, mas o espectador e o leitor saem deles com esta questão na cabeça. Quem quisesse entender o que está acontecendo e, ao mesmo tempo, extrair disso uma lição política mais ampla e positiva, que fosse além da denúncia - embora esta seja um passo importante - teria de encarar a coisa de um modo, digamos, mais frio e racional. Para começo de conversa, pensar que há um método nisso tudo, inclusive em sua insana autodestruição. Pois não foi a isso mesmo - a autodestruição - que convergiu a ação somada de toda essa gente, mesmo que ninguém a quisesse?
Pois bem: caminhar nessa direção complementar parece-me cognitiva e politicamente razoável, embora também carregue seus vícios. Mas seria possível ficar só com as virtudes? Vejam o marxismo, para ficar na corrente que sempre adotou essa perspectiva. Não há dúvida, a empreitada que Marx iniciou no sentido de decifrar a mecânica intrínseca do sistema - e suas “contradições” -, para além das boas ou más intenções dos atores, é sólida e inspiradora. Pode-se revisar muitas de suas hipóteses e explicações, mas o edifício intelectual é impressionante e, no mínimo, um ponto de partida. Ok: as consequências políticas e ideológicas que Marx, e depois os marxistas do século XX, extraíram de sua teoria do capitalismo são bem mais discutíveis. Haveria até que ser muito taxativo nesse aspecto: simplesmente não servem mais, se é que já serviram.
Mesmo assim, ficamos com aquela velha intuição de que o sistema tem uma razão de ser e, o que é mais fascinante (embora assustador), que suas “contradições” significam que traz dentro de si uma espécie de bomba-relógio, muito difícil de desarmar. Difícil porque não parece algo que se acrescenta a ele por um desvio, mas é seu parceiro inseparável. Vejam bem: não estou dizendo que aceito essa última assertiva, mas entendo que é dela que vem a busca de uma alternativa muito diferente, que livrasse o mundo, de uma vez por todas, desse destino infernal. Marx e os marxistas podem ter errado no leque de alternativas que defenderam - o erro político propriamente dito -, mas sua questão das contradições intrínsecas permanece.
Pensando nisso, quis ler o que um bom marxista contemporâneo vem dizendo sobre a crise de 2008. Entre outros, foi-me indicado o livrinho de David Harvey, O enigma do capital, publicado originalmente em 2010 e traduzido aqui no Brasil pela Boitempo no ano seguinte. Um bom texto: arguto, abrangente e muito acessível também. Harvey parte de uma ideia que tem a ambição de abarcar divergentes explicações (inclusive dentro do marxismo) para as crises cíclicas do capitalismo. A ideia é simples: o afã do capital é manter-se em fluxo; mais até do que a busca da acumulação do capital, o ponto fundamental está na perpetuação da fluência, seja removendo as barreiras que a impeçam, seja produzindo novas oportunidades para a continuidade de seu movimento. Por isso, de quando em quando, não se trataria de acumular pura e simplesmente, mas de acumular e destruir, para voltar a acumular em seguida. Não é que os capitalistas individualmente queiram essa destruição: a questão é que o conjunto, a partir de um estágio avançado da própria acumulação, precisa dela - mesmo que à custa do desamparo de parte de seus agentes principais (empresários, especuladores etc), sem falar dos subordinados (todos os demais grupos sociais).
Produzir fluidez significa muitas coisas. Primeiro, a evolução do capital no sentido de formas muito específicas e concretas para formas cada vez mais abstratas: aquilo que os próprios economistas chamam de bens “líquidos” no sentido estrito, entre os quais o próprio dinheiro. Isso quer dizer que a oposição entre capitalismo produtivo e capitalismo financeiro não detecta o que é essencial em seu funcionamento. Embora assinalar a diferença possa até ser correto em termos de descrição de um estado de coisas, uma vez que registra seus diferentes modos de existir, não há nada de oposição nela, desde que a fluidez é o que importa. Impedir, criar obstáculos para a passagem de um modo para outro significa bloquear o movimento do capital. Ao fazê-lo, bloqueia-se seus “vícios”, é verdade, mas também suas “virtudes” - a própria capacidade de produzir coisas, entre as quais bens de consumo, emprego, salários... Enfim, Harvey quer enfatizar, com essa ideia, que as diferentes dimensões do sistema, embora separáveis na análise, não poderiam sê-lo na prática. O “sistema” é um sistema mesmo. Mas, obviamente, as coisas não se encerram aí.
O segundo modo de produzir fluidez empenha a política. Harvey fala de um complexo “Estado-finanças” encarregado disso. Não é que o Estado cria agências para controlar e regular o movimento do capital. Isso sugere a noção, falsa a seu ver, de que o Estado é uma instância que se situa como que por cima do sistema, com independência para constrangê-lo quando fosse o caso. Mesmo na hipótese de que tenham sido fenômenos historicamente distintos - o que bem pode ter sido, mas o autor não se detém neste ponto -, sob o capitalismo, Estado e economia estão fadados a integrarem-se numa coisa só. Assim, a própria fertilidade das instâncias políticas e de administração pública é explicada, desse ponto de vista, pela necessidade de se abrir caminhos para o investimento capitalista. Antes de constranger, tais instâncias - os bancos centrais, as agências reguladoras, o próprio poder legislativo - estão a serviço de promover e propiciar. Às vezes, isso requer a regulação; outras vezes, ao contrário, o desmanche dessa mesma regulação. Harvey não fala de “Estado”, mas de “Estado capitalista”.
Essa integração com a política lhe fornece a passagem para a geografia. (Embora muito à vontade nas entranhas da economia, Harvey é geógrafo de profissão.) Um dos objetos mais insistentes da reprodução capitalista, ao longo de toda sua história, diz ele, é justamente o espaço urbano. Grandes intervenções urbanas não poderiam ser feitas sem o comparecimento do Estado. Certamente nos espaços ainda não ocupados, mas especialmente nos espaços já ocupados. Como impõem grandes deslocamentos de seres humanos, mas também demandam grande concentração de capital, essas intervenções muitas vezes precisam não só da força da lei, mas da articulação de complicados esquemas financeiros, por dentro e por fora do Estado, por seu turno gerando oportunidades para capitais eventualmente inertes em outros lugares. Construir oportunidades implica não apenas oportunidades de lucro, mas também vias de acesso, “estradas” para ligar e movimentar as reservas de capital que em determinado momento encontram-se subutilizados. Tudo isso é bastante complexo e difícil mas, uma vez que se consegue iniciá-lo, o céu é o limite. Vale dizer: tanto os empreendimentos desejados como também as especulações imobiliárias, que podem terminar em bolhas e no seu inevitável estouro.
A geografia faz o autor enfatizar o desempenho do capitalismo no espaço, mas é claro que ele está querendo dizer muito mais: a necessidade de movimento e de expansão do movimento levam o sistema a absorver todas as energias e todas as formas de vida social em seu mecanismo. Seria interessante discutir como Harvey estende sua teoria para outras instâncias - por exemplo, o desenvolvimento tecnológico, a ciência e a própria universidade, entre outras a que ele se refere no texto. Mas deixo a questão para o leitor. De qualquer forma, fica a impressão de estarmos lidando com um todo poderosamente articulado, compacto e esmagador, tanto quanto é compacta sua própria exposição. Porém, embora o autor nunca deixe de falar das “contradições” do sistema, é difícil ver exatamente em que elas consistem, uma vez que tudo parece muito coerente, embora perverso. Obviamente, o sistema gera conflitos, pois, fadado a beneficiar muito poucos, acaba prejudicando os demais grupos sociais, em maior ou menor grau, seja explorando seu trabalho, seja lhes jogando as tais “externalidades negativas” - poluição, escassez de recursos naturais, mas também o pagamento do próprio resgate do sistema, durante as crises - ou simplesmente os descartando. Mas essas oposições se qualificariam como “contradições”? Em princípio, estas teriam de estar situadas no próprio motor do sistema. Mas como, para Harvey, o movimento é tudo que há de essencial nele, nada parece propriamente contraditório, nem mesmo a propensão para destruir. Se destruir significa uma condição para continuar o movimento logo em seguida, não se trata de autodestruição. O único ponto em que realmente percebi essa possibilidade é a insistência do autor em indicar que o movimento incessante do capital leva ao esgotamento da natureza, que então redunda em seu próprio esgotamento. Mas, de novo, isso é uma contradição interna ao sistema?
A última parte do livro - “Que fazer? E quem vai fazê-lo?” - é dedicada à orientação política propriamente dita. E nela há um giro surpreendente no texto. Se nos capítulos anteriores tudo converge para um só e mesmo propósito (a fluência do capital), agora começam a surgir desvios ou mesmo tentativas de rupturas. Embora o autor não desenvolva seu raciocínio nesses termos, aqui a democracia, o Estado e os sujeitos sociais parecem contar num outro sentido. A mudança de tom vai ficando evidente enquanto o autor registra os vários tipos de lutas anticapitalistas, e então distingue socialismo e comunismo. Ambos são entendidos como tentativas de brecar o sistema. Porém, o primeiro “visa gerir e regular democraticamente o capitalismo de modo a acalmar seus excessos e redistribuir seus benefícios para o bem comum”. Mesmo com esse propósito limitado, Harvey reconhece que “Muitas das principais conquistas do socialismo redistributivo no período pós-1945 não só na Europa, mas em outros locais, tornaram-se tão socialmente incorporadas que estão quase imunes ao ataque neoliberal”. Mas logo em seguida adverte que, no campo estritamente econômico - ao fim e ao cabo, o mais decisivo -, essa alternativa foi derrotada pela “revolução neoliberal” a partir dos anos 1980.
Caberia perguntar, no entanto, como teria sido possível, para começo de conversa, que esse socialismo tenha conseguido se entranhar no sistema, a ponto de tornar o núcleo das políticas sociais que promoveu impenetráveis até mesmo aos ataques de Margaret Thatcher e tutti quanti. As lutas dos trabalhadores e dos partidos socialistas foram importantes, sim, mas não haveria algo no caráter da democracia e do próprio Estado que forneceu o quadro dessa possibilidade?
Vejamos o que ele diz do comunismo. Este, ao contrário de bloquear seus excessos, “pretende deslocar o capitalismo com a criação de um modo completamente diferente da produção e distribuição de bens e serviços”. Da perspectiva mais global do livro, é esta a alternativa que o autor abraça com maior paixão. Mas ele reconhece que as tentativas de implantá-la no século XX não andaram bem, embora sua exposição não deixe claro por quê. Em vez de se prolongar sobre esse ponto, prefere registrar um esforço de revisão em curso em que “Tentativas contemporâneas de reviver a hipótese comunista tipicamente evitam o controle estatal e procuram outras formas de organização social coletiva para suplantar as forças do mercado e a acumulação de capital... Organizados como uma rede horizontal, e não mais comandados hierarquicamente, sistemas de coordenação entre coletivos de produtores e consumidores autonomamente organizados e autogovernados estão previstos no cerne de uma nova forma de comunismo”. É claro que ele está falando de um projeto futuro, não de uma experiência concreta. Mas sem discutir melhor os projetos comunistas concretos, historicamente praticados, sua menção aqui é frustrante, quase ingênua. A frustração cresce nas linha finais do capítulo, quando ele diz: “Ainda que o comunismo institucionalizado tradicional esteja morto e enterrado, há sob essa definição milhões de comunistas ativos de fato entre nós... prontos para exercer criativamente imperativos anticapitalistas. Se, como o movimento de globalização alternativa dos anos 1990 declarou, ‘Um outro mundo é possível’, então por que não dizer também ‘Um outro comunismo é possível’?”...
A despeito dessa pungente declaração de esperança, ficamos com a sensação não mais de um moralismo puro e simples, mas de algo como um utopismo moralista. Entretanto, não é o que vemos também, mesmo que em sentido oposto, nas apologias neoliberais? No papel, cada partido (“capitalismo” e “comunismo”), ao mesmo tempo que retira da cena o passado e o presente, discursa sobre o que cada um poderia ser. Ideais regulativos podem ter sua importância para orientar a ação, mas não creio que esse caminho venha a produzir debates frutíferos, no sentido do mútuo esclarecimento. E como é usual acontecer entre os diversos marxismos - e o de Harvey não parece ser uma exceção neste ponto - é justamente na política que a teoria perde sua força e atratividade.
Uma dificuldade fundamental, a meu ver, é seu afã de descrever, nos capítulos anteriores, um sistema completo e sem fissuras, em que tudo fica encaixado demais, especialmente as instituições e os acontecimentos políticos que denuncia. Se o autor fala de um “Estado capitalista”, de que modo considerar os diferentes regimes políticos que possibilita - inclusive a própria democracia? Sem um tratamento à parte, ficamos com a ideia de que ela também estaria muito bem integrada ao sistema - e então compreendemos por que o tal socialismo dentro do capitalismo, reconhecido no último capítulo, cai de paraquedas na análise.4 Não estou querendo com isso recusar que a crise revelou uma cumplicidade entre os agentes do capitalismo e os sistemas democráticos existentes. Aliás, comecei o artigo colocando essa questão. Mas daí a considerá-los partes complementares de um todo articulado é um passo e tanto, que considero excessivo.
Por certo, crises como a que estamos vivendo convidam a pensar em soluções políticas bem mais abrangentes do que uma mera reforma parcial - o que, da perspectiva de Harvey, estaria fadada a fracassar de qualquer jeito, pois não demoraria muito até ser assimilada, sempre em proveito do sistema, nunca contra ele. O problema mais importante, no entanto, não é se deveríamos buscar reformas parciais ou soluções radicais. A questão, outra vez, é o conteúdo das alternativas, com base numa avaliação rigorosa do que se tentou até hoje neste campo, assim como um balanço sóbrio das conquistas e fracassos da democracia em suas diferentes interações com regimes capitalistas. Uma reflexão profunda, porém menos comprometida com explicações redutoras, sobre por que a democracia falhou feio nessa crise, e que lições e caminhos extrair disso, ainda precisa ser feita. Mas como vem insistindo meu colega Ruy Fausto nesta revista: há muitos tipos possíveis (e históricos) de anticapitalismo, nem todos necessariamente desejáveis só porque são anticapitalistas.

 

 

 









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez



1 “Desde 2000, contratos privados conhecidos como derivativos do mercado de balcão... se multiplicaram, passando de um valor nominal total inferior a US$100 trilhões para US$863 trilhões, quase quatro vezes maior que todos os ativos financeiros registrados e 14 vezes o valor do PIB mundial” (N. Gall, O terremoto financeiro: a primeira crise global do século XXI. Elsevier Editora, 2010).

2 O termo “papéis” segue aqui por força do hábito. Em sentido literal, é um anacronismo, em vista da introdução do intercâmbio financeiro eletrônico.

3 Como esses produtos conseguiam obter notas tão altas, a ponto de quase se igualarem aos títulos “risco zero” do Tesouro norte-americano? Como se vê, nada disso seria possível sem a colaboração e a condescendência do trio de agências de rating, que até o colapso punham-se e eram postas acima de qualquer suspeita. Porém, como se verificou após a crise - algo que o livro de McLean e Nocera, enfocando o caso da Muddy’s, explica em detalhes - tais agências não só tornaram-se suscetíveis às pressões de seus clientes (cujos produtos recebiam as notas), mas elas mesmas começaram a ter interesses especiais no negócio de derivativos!

4 Harvey faz anotações muito agudas sobre a geopolítica mundial, ao relacionar a crise de 2008 à crescente perda de pujança industrial dos países ocidentais, deslocada para a Ásia. Um tema que gostaria de explorar melhor numa próxima oportunidade. Ainda assim, tal como no caso do Estado e da democracia, tenho muita dificuldade de aceitar o modo geral como ele enxerga a história da política internacional. Por exemplo, quando tenta reduzir os conflitos entre os Estados no século XX ao núcleo de sua visão do capitalismo, de modo que as duas guerras mundiais tornam-se, sem mais, “guerras intercapitalistas”. Convenhamos...