revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Cícero ARAÚJO

Dilma, os partidos e as ruas

 


 

Começo com as ruas. Foi mesmo algo como “um raio em céu azul”. Os analistas mais pretensiosos gostam de usar a expressão para dizer que, ao contrário, acontecimentos desse tipo são perfeitamente explicáveis, previsíveis etc. Mas nos dias em que a coisa se espalhou pelo país, não pude deixar de concordar com o cronista que pôs como título de sua matéria o seguinte: “Ninguém está entendendo nada!”, nem mesmo os manifestantes... Por sinal, há de convir que a surpresa deveria ser ainda maior para quem costuma fazer uma leitura puramente materialista dos protestos sociais: apesar dos enguiços que se avolumam, continuamos a viver num país com uma economia de quase pleno emprego e em que a renda média de sua população ainda cresce. Isso, só para ficar nos dados mais palpáveis.

Sem deixar a perplexidade de lado, resta-nos tentar entender o fait acompli, mesmo que incertos se a série de protestos iniciada em junho já arrefeceu, como parece ter arrefecido neste momento. No dia do pico dos eventos de rua, 20 de junho - pouco depois do anúncio de vários prefeitos e governadores de que iriam recuar do aumento das tarifas de transporte (metrô inclusive) - o “Ibope Inteligência” resolveu fazer uma pesquisa em quatro capitais para conhecer o perfil dos manifestantes. Os dados são muito interessantes: 83% declararam ter nível colegial, ou superior em andamento ou superior completo; 63% tinham até 29 anos e apenas 19% acima de 40 anos; 76% disseram estar empregados; só 15% declararam renda abaixo de dois salários mínimos e 49% acima de cinco salários mínimos (23% acima de dez salários). Outro dado importante: 89% disseram ter “interesse médio” (28%) ou “muito interesse” (61%) por política. Por coincidência, 89% também disseram não se sentir representados por nenhum partido político. Ademais, 86% declararam não ter filiação a qualquer sindicato, entidade de classe ou entidade estudantil.

Não estamos falando, portanto, de uma massa de destituídos e famélicos, nem de desinformados e nem mesmo de despolitizados (os dados contrastantes do baixo interesse pelos partidos e do alto interesse pela política falam por si), gritando em desespero contra a crise econômica. Porém, houve, sim, muita gritaria e um bocado de violência. Mas as reclamações voltavam-se principalmente contra os péssimos serviços públicos, a começar o transporte mas não só, os quais eram contrastados com o tratamento “qualidade Fifa” dado à Copas de futebol, e contra a corrupção do aparato estatal e do sistema político.

No início, os protestos se concentraram em São Paulo, contra o aumento de 20 centavos no preço das passagens de ônibus, e eram puxados por um movimento muito pouco conhecido até então. Este empunhava um programa de reformas do transporte urbano, centrado na proposta de gratuidade e ancorado em noções como o “direito à cidade”, o “direito à mobilidade” e o “direito à rua”. Um movimento que, por seu conteúdo de defesa de ampliação de bens públicos, poderia ser qualificado genericamente como de esquerda. Porém, desde logo se viu, pelas declarações de seus participantes, que nada tinham a ver, na forma e no conteúdo, com a esquerda organizada em partidos, nem mesmo com os partidos de extrema esquerda, ainda que alguns integrantes desses últimos, principalmente, tivessem se envolvido na sua articulação. Também nele se enfronharam grupos anarquistas, talvez pela afinidade com ideias relativas à forma de organizar o movimento - por exemplo, a defesa de sua “horizontalidade”, da “ação direta” e a crítica à organização hierárquica característica da esquerda tradicional. Tais grupos, apesar de pequenos, tiveram seu papel amplificado durante as manifestações de rua, pela disposição não só de enfrentar, mas de estrategicamente provocar a polícia, e pela defesa aberta que faziam do emprego da violência.

Enquanto estiveram restritas à questão do preço das passagens de ônibus, as manifestações não chegaram a aglutinar muita gente. Na verdade, a essa altura os protestos conseguiam chamar a atenção para si mais pela comoção que provocavam do que pelo volume de gente: ruas e avenidas importantes ficavam bloqueadas enquanto os manifestantes passavam, multiplicando os já gravíssimos problemas do trânsito; e, na medida em que passavam, vários daqueles pequenos grupos se destacavam da passeata para atacar ônibus, lojas, bancos e, naturalmente, enfrentar a polícia. A imprensa dava bastante cobertura a essa dimensão, digamos, espetacular dos eventos e, ao mesmo tempo, os criticava asperamente, ecoando um sentimento que muito provavelmente era até ali comum entre os não participantes, em particular os motoristas de automóveis e os próprios usuários dos ônibus. Enfim, parecia até que as ruas da cidade tinham se tornado palco de uma disputa acirrada, mais ou menos nestes termos: por um lado, o mundo motorizado, que queria seguir sua rotina de circular em vias públicas extremamente engarrafadas, com seus automóveis particulares, motocicletas, ônibus e caminhões; e de outro, uma parte (pequena ainda) do mundo dos pedestres, que queria de todo jeito ocupar as mesmas vias e com isso interromper aquela rotina. Mas até ali a quebra-de-braço permanecia francamente favorável aos primeiros, se não fisicamente, pelo menos junto à opinião pública, cuja indignação era atiçada pela mídia.  

Porém, eis que a situação se reverte completamente. No dia 13 de junho (uma quinta-feira), quando o protesto se avolumou um tanto mais, e depois que o governador de São Paulo resolveu avisar em alto e bom som de que a polícia não mais toleraria a “baderna”, o público espectador, graças às redes sociais e a uma espécie de mídia alternativa que foi se adensando ao longo daqueles dias - aos quais desta vez se juntaram os próprios repórteres da grande imprensa, que testemunharam diretamente o que aconteceu e viram-se vítimas dele - assistiu a uma orgia de violência promovida pela Polícia Militar, justo o órgão estatal que supostamente ali estava para garantir a segurança das pessoas. Na semana seguinte, era como se o Brasil tivesse subitamente mudado de canal: após um fim de semana de intensa agitação e discussão nas redes, com manifestações de simpatia e solidariedade de intelectuais, artistas e outras celebridades, além dos depoimentos indignados dos jornalistas e dos próprios editoriais de seus órgãos de imprensa, já se podia perceber que uma grande virada estava por vir. De fato, a partir da segunda-feira (dia 17), não só em São Paulo, mas em outras cidades importantes os protestos lograram conquistar as ruas, e a quebra-de-braço entre os motorizados e os manifestantes-pedestres finalmente se reverteu em favor dos últimos. Ou melhor: os motoristas e usuários mesmos viram-se dispostos a entregar os pontos, dar uma pausa em sua rotina e fazer seus próprios pés aderirem às ruas. Coisa extraordinária.

Passo então ao outro lado dessa estória: o mundo das instituições. Linhas acima eu usei a expressão “sistema político”, mas ela é enganosa e, no fundo, não dá o quadro mais abrangente. Não queria me restringir, com esse termo, aos processos que vinculam eleições, parlamentos e governos - como se fossem mecanismos inteiramente fechados -, mas a algo que também abarca a chamada “sociedade civil”, com seus sindicatos, associações profissionais, os movimentos sociais e até mesmo o braço militante dos partidos, todos reconhecidos pelos poderes públicos e em interação rotineira com eles. Estou me referindo, em suma, ao mundo institucional que emergiu da luta contra a ditadura e ganhou estatuto de cidadania nesse último período de retorno a um regime democrático e constitucional. Se nos tempos da ditadura a “sociedade civil” apresentou-se quase como um monobloco em contraposição a outro monobloco - o Estado -, e legitimou-se como tal, já nos tempos democráticos pouco a pouco suas fronteiras recíprocas foram se embaralhando, até porque é uma tendência dos governos que emergem da disputa das urnas (especialmente os governos de esquerda) buscarem recarregar sua legitimidade através da aproximação, e não da confrontação, com os espaços associativos e de militância. Esse processo começa, e na verdade tem neles o seu nó górdio, com os próprios partidos políticos, que afinal se apresentam como elo de ligação entre a sociedade civil e as arenas que constituem eleições, parlamentos e governos. Na medida em que, porém, o Estado brasileiro se abriu para eles, o reverso também se deu: o Estado se “democratizou” na mesma proporção em que as criaturas da sociedade civil foram constitucionalizadas, reguladas e, no limite, “estatizadas”. Em vez de sociedade civil versus Estado, passamos a ter algo como um “Estado ampliado”, para usar meio livremente o termo gramsciano.

Esse fenômeno se acentuou ainda mais graças à forte tradição nacional de práticas corporativas. Aliás, tradição não quebrada pela ditadura militar, que se limitou a reprimir seus quadros de esquerda. Tais práticas lograram se renovar nos anos seguintes, democratizantes, absorvendo até mesmo o chamado “novo sindicalismo” que surgira no final dos anos 1970 - que parecia vocacionado a dar-lhes um fim -, o movimento estudantil e também os movimentos surgidos no campo, dos quais o MST é o exemplo mais destacado. Apesar do espraiamento de uma densa rede de solidariedade social, em parte graças a esse mesmo engajamento da sociedade civil com o Estado, um dado altamente positivo, o fato é que seu empuxe ético-político foi sendo neutralizado pela rotina, até perder a capacidade de inovação institucional. E poderia ser de outra forma, quando os sindicatos, associações e movimentos passam a depender da estampa estatal para subsistir material e juridicamente? quando seus militantes deixam de ser voluntários para se tornarem quadros profissionais (daí o gradual envelhecimento de sua composição)? quando os próprios partidos passam a depender basicamente de fundos estatais, lícitos ou ilícitos, não só para existir continuamente, mas para realizar suas campanhas eleitorais? No mesmo compasso que essa sociedade civil se deixava assim anestesiar, foi surgindo em seus interstícios uma espécie de “sociedade incivil”, marcada pela edificação silenciosa de enclaves privados, ocupados legalmente por empresas e seus clientes, e ilegalmente por organizações criminosas e respectivos fregueses. Justamente as ruas se tornaram a maior expressão simbólica desse processo: enquanto a sociedade civil as deixava de lado para se entrincheirar ao redor do aparato estatal, a sociedade incivil, ao contrário, as ocupava, espoliando a sua condição de espaço público.

Não por acaso são os partidos o objeto central da crítica política e social que alveja o lado negativo, e cada vez mais proeminente, desse fenômeno. Entendidos, já foi dito, como elo de ligação ou até mais do que isso, o próprio fluido que circula em todas as etapas do embate político-institucional, desde a sociedade civil até o Estado, e que deveria oxigená-los continuamente, são os partidos que acabam indo para o banco dos réus, pois são eles que teriam o “domínio do fato” (para fazer um paralelo com a tese jurídica que se tornou tão familiar durante os dias do julgamento do mensalão), desde que percebidos como o cume e a síntese do processo em seu conjunto. E não são eles mesmos que detêm o monopólio da representação eleitoral, através de que seus atores são credenciados a fazer as leis e compor os governos? Contudo, não é com uma visão de conjunto - seu papel dentro da articulação mais ampla de um regime democrático - que normalmente os partidos são apresentados à opinião pública. Tornou-se bem mais simples, e mesmo útil politicamente, reduzi-los à condição de uma mera “classe política”, algo semelhante a um estamento ou grupo profissional que, porém, tal como uma leisure class, vive do parasitismo e da exploração do trabalho alheio. Em vista do que temos assistido nas telas da TV etc, não só aqui mas em tantos outros países, o quadro não é inteiramente falso, mas assim reduzido, fica mais ou menos fácil elaborar aquela típica falsificação cujo truque é absorver pedaços de verdade. Com ela, vende-se a ideia alternativa de um idílico mundo político, devidamente depurado, no qual governantes e governados seriam capazes de se identificar diretamente, sem a mediação desses seres parasitários.

A prática dessa fabulação tem precedentes históricos - e o mais recente que me ocorre é o processo a que se submeteu a democracia italiana no início da década de 1990: depois de uma onda de escândalos e a heroica intervenção de juízes bem-intencionados, a política italiana se viu diante da virtual liquidação de seu antigo regime de partidos. O que se seguiu, porém, não foi a depuração do mundo político, nem a harmônica identificação de governantes e governados, a não ser ao modo de uma fraude, da qual o fenômeno Berlusconi é sua mais autêntica encarnação. E não poderia ter sido outra coisa (a fraude), desde que nenhuma democracia seria capaz de engajar a participação de seus cidadãos sem que houvesse instituições que representassem e encenassem na arena pública o conflito social. Os partidos surgiram dessa necessidade básica de articular o conflito intrínseco à vida democrática: se queremos algo viável e ao mesmo tempo saudável em seu lugar, é bom ter em mãos alternativas institucionais, e que cumpram esse papel. Isso, supondo que não se queira algo pior.

Prossigo um pouco mais no registro institucional. É claro que o Estado democrático não se esgota no regime de partidos. Além da burocracia estatal, existem também os poderes constituídos que não dependem diretamente da dinâmica partidária, como é o caso do poder judiciário, embora a composição de sua cúpula - o STF, no caso brasileiro - normalmente emerja de uma colaboração entre o poder legislativo e o executivo, estes sim diretamente vinculados aos partidos. O crescente desgaste desses últimos pode levar a uma degradação da forma democrática, mas não necessariamente a sua liquidação. No passado, a liquidação de fato aconteceu, com a emergência de regimes autoritários e totalitários. Mas hoje o sentimento de apoio aos ideais democráticos é tão forte que, mesmo com o desgaste contínuo acima mencionado, o máximo que se constata, pelo menos até agora, é algo como um deslocamento, na direção de um regime misto, isto é, uma mescla de autoridade política derivada dos partidos, porém enfraquecida, com outras formas de autoridade. Assim, um impasse do jogo entre o poder executivo e o poder legislativo, na verdade o resultado da incapacidade de partidos diferentes e/ou adversários de se entenderem sobre uma agenda programática comum, acaba levando a uma ocupação de espaço por outros poderes estatais ou paraestatais, como é o caso daqueles que resultam da interação entre a administração estatal das finanças e os bancos, e tantos outros tipos de interação entre a tecnocracia estatal e o poder econômico privado. No caso de poderes públicos e constitucionais, temos, outra vez, o poder judiciário que, graças ao pensamento constitucionalista e à linguagem dos direitos que ganhou proeminência na luta contra os regimes autoritários recentes, tornou-se cada vez mais um poder que toma a iniciativa, em vez de, como era tradicional, aguardar, discretamente, a iniciativa dos outros poderes.

São essas agências não-partidárias, por sua vez, que acabam voluntária ou involuntariamente se beneficiando, pelo menos a curto prazo, de processos agudos de deslegitimação dos partidos. Foi o que aconteceu na sucessão de escândalos que culminou no mensalão, como este articulista quis mostrar no outro artigo que assina nesta edição, no fundo do qual se flagrou uma disputa entre partidos cujo objeto ainda não está bem elucidado, se é que um dia o será: se disputa em torno de um “caixa dois” de campanha ou para a compra de votos no Congresso ou para outro negócio escuso qualquer. Enquadrado no direito penal, o conflito foi transferido para o poder judiciário que, como não poderia deixar de ser em vista da dificuldade de produzir, para todos os acusados, as provas típicas dos tribunais penais, acabou resolvendo-o politicamente. E, porém, de forma espetacular, graças ao acompanhamento midiático e às sentenças de grande severidade.

Nada casual que, no momento em que a crítica do regime de partidos finalmente ganhou as ruas massivamente, o presidente do STF, Joaquim Barbosa - astro do julgamento meses antes - tenha sido o mais citado entre os manifestantes como putativo candidato à presidência da República. E que a mais citada, depois dele, tenha sido Marina da Silva, líder do protopartido “Rede”, porém vista como uma outsider.

Ousado, mas também temerário, foi o autodeslocamento que a presidente da República tentou produzir no pico dos protestos. Candidata à reeleição e percebendo o desgaste enorme do Congresso, tratou de se diferenciar (e a seu partido) e retomar a iniciativa, mas sem deixar de oferecer uma alternativa institucional para aquilo que interpretou como uma demanda popular por maior transparência e participação nas grandes decisões do país. Daí ter lançado a proposta de um plebiscito com vistas à reforma política, que de pronto gerou muita confusão porque embutia a ideia de uma assembleia constituinte dedicada exclusivamente a esse fim. Ao que parece sem base no direito constitucional para tocá-la à frente, viu-se levada a se fixar na proposta de um plebiscito sobre a própria reforma.

A ousadia da proposta está em tentar romper o longo impasse congressual sobre esse tema através de uma consulta popular - o que é perfeitamente admissível do ponto de vista constitucional e democrático. Já a temeridade é dupla: primeiro, leva seus aliados a suspeitar de uma tentativa de traição ao establishment político-partidário, do qual ela e seu partido evidentemente fazem parte, estimulando um discurso dúbio que, sendo o PT o que é na prática, diz ao público que gostaria de ser outra coisa, bastando, para tanto, mudar as regras do jogo. Essa estratégia ambígua, própria de um verdadeiro equilibrista, da qual seu antecessor revelou-se um mestre, mas de que Dilma ainda não provou ser capaz, corre o risco de se espatifar em um dos, senão em ambos, seus limites inescapáveis: de um lado, os próprios partidos, de cujo apoio depende para preservar a maioria no Congresso; e, de outro, o povo, ou melhor, o eleitorado, que pode não entender direito como um partido e seu candidato hão de ser e não ser ao mesmo tempo. Mas o segundo aspecto da temeridade é o que mais angustia, pois não implica apenas o futuro de um projeto de governo, mas o futuro político de todo o país: será que a proposta de um plebiscito, nas atuais circunstâncias, viria de fato a favorecer o debate sobre como revigorar o regime de partidos, em vez da perspectiva de enfraquecê-lo? Francamente, duvido muito que venha a favorecer, e por uma razão muito simples: os protestos, como se viu, ocorreram num contexto de forte rejeição de toda a institucionalidade politica vigente. E o centro de sua crítica não é esse ou aquele partido, mas os partidos enquanto tais. De modo que, engajada nesse clima carregado emocionalmente, com a memória ainda viva das manifestações e do que predominou como leitura política sobre elas, não será difícil induzir a opinião pública para uma alternativa oposta - evidentemente açulada por uma mídia hostil que não hesitará em identificar a forma partido com os interesses de uma “classe” parasitária -, que suprima o seu protagonismo. Num contexto assim, a defesa dessa forma dificilmente soará convincente. Isto é, perante uma proposta de financiamento público das campanhas, soará bem mais concreto, em vez disso, argumentar que tal financiamento só virá a engordar ainda mais, e com dinheiro do contribuinte, os tais parasitas; em vez do voto proporcional em partidos (mesmo com cláusula de barreira), o voto distrital uninominal; em vez do voto numa lista partidária, a candidatura avulsa; e assim por diante. O curioso é que para essa empreitada se juntariam, involuntariamente, visões muito diferentes da política, uma à esquerda e outra à direita, mas que antes já tinham se encontrado nas ruas e de fato guardam certa afinidade em suas pontas. No imaginário popular, essas pontas, ainda que derivadas desses modos de pensar tão divergentes, terminariam se fundindo. E seu resultado objetivo, é claro, seria muito ruim.

Eis então o meu balanço contraditório da principal repercussão dos protestos no mundo institucional (a agenda da reforma política): ainda que reconheça que Dilma Rousseff tinha naqueles dias (e ainda tem) pouca margem de manobra para buscar a retomada da iniciativa do jogo - daí que tenha abraçado tão rapidamente a ideia do plebiscito - há razões para enfatizar mais a temeridade do que a ousadia de sua proposta.

            Volto agora às ruas, para concluir. Apesar de todos os reparos que acabo de fazer a seus efeitos no campo que organiza a democracia institucional, foi sem dúvida um motivo de grandes esperanças ter visto um número tão expressivo de pessoas, jovens em sua maioria, se dispor a batalhar por causas que em síntese, embora tão diversas e até divergentes, colocam outra vez, e com enorme energia, a nobríssima questão do espaço público. É uma pena, e esse é o último reparo que faço, que desse vigor todo tenha sobrado um excedente de violência que, convenhamos, não veio apenas da polícia. Do bojo dos protestos sobressaíram-se, como já assinalei, grupos que pensam sinceramente que a depredação do patrimônio estatal não é um ato contra o outro de nós mesmos (a res publica - aquilo que nos concerne), mas apenas um ataque a objetos e símbolos da opressão social. E que atacar deliberadamente a polícia, antes de defender-se dela, iria na mesma direção. No entanto, com essa atitude, e sem o perceber, nada mais fizeram do que colocar em dúvida o sentido mesmo de seus atos declarados: apresentar-se como cidadãos dignos de exigir direitos do Estado. Mas por que fazê-lo a um ente que em nada nos concerne, muito pelo contrário? Mais do que a violência em si, é essa contradição que os prejudicou logo de partida na batalha para conquistar corações e mentes - vale dizer, nada mais nada menos do que a batalha política propriamente dita.

De todos os grupos que, em sua imensa heterogeneidade, se uniram com a intenção de resgatar o espaço público, mas que também teve de encarar dentro de si a contradição acima, cabe destacar o Movimento pelo Passe Livre (MPL). Faço, a despeito disso, um balanço essencialmente positivo de seu desempenho. E não tanto pela proposta concreta que o tornou conhecido (a gratuidade do transporte), da qual não estou convencido, mas pela seriedade e desprendimento com que se dispôs a elaborar uma visão de conjunto sobre as pré-condições de uma vida digna nas cidades brasileiras. Seu cerne, esse sim, me convence a secundarizar todos os seus eventuais erros e hesitações, porque merece o respeito e a atenção de todos nós: a meta da reocupação das ruas pelo mundo generoso da civilidade, contra todos os atavismos da incivilidade.

[Julho de 2013]

 

Fotos Verônica MANEVY







fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez