revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Peter Uwe HOHENDAHL

Humboldt revisitado: educação liberal, reforma universitária, e a oposição à universidade neoliberal

 
1

Este ensaio reexamina o uso de Wilhelm von Humboldt no discurso sobre políticas educacionais do pós-guerra na Alemanha Ocidental e nos Estados Unidos. A primeira parte observa o papel de Humboldt no intento de restaurar a universidade alemã pré-fascista após 1945 e depois explora os controvertidos debates sobre o futuro da universidade no movimento de reforma dos anos 1960. Enquanto alguns reformadores estavam convencidos de que a ideia de Humboldt de universidade deveria ser abandonada para modernizar a universidade alemã, outros insistiam na continuidade da importância das ideias centrais de Humboldt. De tal modo que Humboldt não foi apropriado somente por conservadores visando defender estruturas existentes, mas também por reformadores que queriam evitar que a universidade se tornasse um servo cego da sociedade industrial. A segunda parte analisa o mais recente discurso norte-americano sobre educação superior em que uma dicotomia similar pode ser observada. Aqui, os proponentes das ideais de Humboldt também provêm de diferentes campos com posições políticas acentuadamente divergentes. O apreço que conservadores dos anos 1980 conferem, de maneira seletiva, às ideias de Humboldt para defender a centralidade da civilização ocidental contra o multiculturalismo, compreendido como uma perigosa politização da universidade, contrasta com a maneira como os liberais e pós-estruturalistas dos anos 1990 utilizam - em sua maior parte, implicitamente - Humboldt para criticar o modelo neoliberal da “universidade de excelência”. A terceira seção examina a rejeição implícita às ideias de Humboldt no modelo neoliberal da universidade norte-americana contemporânea proposto pela administração George W. Bush.

Essa tarefa aparentemente simples revela-se, no entanto, bem complicada. Primeiramente, existe a diferença entre o conceito alemão e o norte-americano de universidade. A moderna universidade alemã tem sido, historicamente, de modo geral, uma universidade pública com um forte componente de pesquisa enquanto a universidade norte-americana tem se caracterizado por uma variedade de instituições de diferentes perfis e agendas. A educação superior norte-americana distingue tipicamente entre o undergraduate college, concentrado primordialmente no ensino, e a universidade de pesquisa, com uma graduate school plenamente desenvolvida. A ascensão mais recente do community college de dois anos, com diplomas aplicados, só enfatizou ainda mais essa divisão. Em segundo lugar, há a diferença entre o discurso alemão e o norte-americano. Enquanto Humboldt ainda é uma figura intelectual relevante na Alemanha, nos debates norte-americanos suas ideias podem ser usadas - e mesmo desempenhar um papel importante -, sem que seu nome seja mencionado. Contudo, mesmo em meio à tradição alemã, a questão é complicada devido ao mito de Humboldt, isto é, ao uso da aura de Humboldt, na condição de um reformador idealista, quando da discussão do século XX sem ancoramento consistente em indícios históricos.2 Estudos acadêmicos mais recentes encontraram uma diferença significativa entre a obra e as realizações da figura histórica de Humboldt, e a obra e as realizações da figura reconstruída que circulou nos debates alemães sobre a reforma da universidade desde os anos 1920.3 É, com efeito, o modelo de universidade alemã atribuído a Humboldt por volta de 1900 que se tornou o centro dos debates do século XX. 

Eu argumento que o uso desse modelo foi ambíguo. Ele foi invocado para enfatizar tanto seu conteúdo intelectual (a ideia de universidade) quanto uma estrutura institucional específica. Dado que esses aspectos estão intimamente entrelaçados ao se construir o modelo humboldtiano, eles foram por vezes misturados em discussões subsequentes. Era dado como certo que a ideia de Humboldt de universidade materializou-se na Universidade de Berlim, fundada em 1810. Mas essa lógica também poderia ser revertida ao se arguir que a universidade novecentista existente na Prússia e na Alemanha, na verdade, personificava [embodied]4 a ideia de Humboldt. Essa lógica ainda influenciava discussões do pós-guerra sobre educação superior na Alemanha Ocidental. Dado que os participantes deslizavam facilmente, e, por vezes, descuidadamente, entre o lado ideológico e o institucional do modelo humboldtiano reconstruído, esses aspectos, analiticamente distintos, nem sempre eram claramente separados por conta do forte vínculo normativo entre ideia e estrutura.  A questão, então, poderia ser colocada do seguinte modo: as reformas institucionais necessárias poderiam ou deveriam ser realinhadas às ideias centrais do conceito reconstruído da universidade de Humboldt? Essa questão não desempenhou um papel relevante nos mais recentes discursos norte-americanos, já que, aqui, Humboldt não era um ponto de referência coercitivo. No contexto norte-americano, a questão deve ser invertida: pode-se ainda reconhecer e revitalizar as ideias de Humboldt no interior da estrutura mais recente da universidade norte-americana?

A terceira complicação concerne ao uso de Humboldt no espectro político do pós-guerra. Formuladores de políticas conservadores bem como liberais engajaram Humboldt para respaldar seus programas. Para explicar esta contradição, perguntemos: é possível alguém argumentar que aqueles que se mantiveram ligados e respaldaram o conceito de universidade de Humboldt, desenvolvido em seu famoso Denkschrift (memorandum) de 1810, poderiam ser considerados conservadores?5 Afinal, o próprio Humboldt - que fez uso das ideias de Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhem Joseph Schelling, e Friedrich Schleiermacher - era qualquer coisa, menos conservador. Nos seus primeiros escritos ele era um eloquente liberal, na tradição de Immanuel Kant, e um opositor do Estado absolutista; posteriormente, ele participou do movimento de reforma prussiano que foi crucial para a emergência da Prússia como uma sociedade moderna.6 Em resumo, os contemporâneos de Humboldt, com certeza, não o viam como um conservador. Como, então, invocar Humboldt, no contexto de reconstituição das universidades alemãs depois da Segunda Guerra Mundial, poderia ser um sinal de conservadorismo? Não se poderia também argumentar que o retorno, digno de nota, a ideias de Humboldt depois de 1945 era índice da revivificação de ideias liberais na educação superior concentradas na Bildung (educação liberal) e na autonomia individual ao invés de na ideologia fascista que dominou a universidade alemã entre 1933 e a derrota do Terceiro Reich? Esta é, a propósito, a maneira como o filósofo Karl Jaspers compreendeu sua intervenção de 1946 e seu chamado para reter os princípios da universidade de Humboldt sem mimetizar a moldura institucional do século XIX.7 Não obstante, de uma perspectiva diferente - a saber, a da modernização social -, a posição de Jaspers poderia ser chamada de conservadora. Os reformadores dos anos 1960, defrontados com a dramática expansão da população estudantil, estavam convencidos de que o conceito de Jaspers de universidade havia se tornado obsoleto e bloqueava reformas necessárias.

Assim, o termo conservador, no discurso do pós-guerra sobre universidade, poderia assumir diversos significados. Ele poderia referir-se a reconectar com a tradição filosófica da universidade alemã. Nesse contexto, evocar Humboldt também seria, de fato, um passo conversador, a saber, o desejo de ancorar a universidade contemporânea nas ideias desenvolvidas no começo do século XIX e reforçadas no começo do século XX por aqueles teóricos, como Eduard Spranger, que redescobriram Humboldt. Mas o termo também poderia se referir à estrutura institucional da universidade alemã. Nesse contexto, a ênfase recairia no papel dos Ordinarien (professores plenos) e na relação entre universidade e Estado (autonomia vs controle estatal). Finalmente, o termo também poderia se referir a grupos político e socialmente conservadores e suas preferências por um tipo específico de educação superior, a saber, a importância da universidade para a formação [training] de  elites, uma função que a universidade alemã desempenhou durante o século XIX e o começo do XX. Assim, o uso do termo conservador não resultaria necessariamente em uma defesa da universidade de Humboldt ou em um suporte da estrutura da universidade de pesquisa alemã do XIX. Pode-se facilmente imaginar que outros modelos elitistas - por exemplo, o modelo francês das grandes écoles - serviriam ao mesmo propósito.

Esses três usos do termo conservador no discurso sobre universidade tende a se sobrepor, mas apenas parcialmente. Os participantes, às vezes, moviam-se de um para outro sentido sem indicar, ou mesmo notar, a mudança. Essa confusão complicou os debates acalorados dos anos 1960, quando, em geral, era aceito que as universidades alemãs careciam de reforma mas a direção da mudança estava em disputa. Nessa situação, o nome de Humboldt podia ser invocado por mais de um campo, cada um referindo à universidade de Humboldt por motivos diferentes e incompatíveis. Aqueles que se opunham à reforma podiam fazer uso de Humboldt, tal como aqueles que favoreciam a reforma mas discordavam em relação a certas propostas estruturais.

Humboldt na antiga universidade alemã

A universidade do pós-guerra na Alemanha Ocidental (em claro contraste com a Alemanha Oriental) preservou mais ou menos sua antiga organização, apesar de que com uma ênfase mais forte em relação à autonomia do corpo docente vis-à-vis o Estado.8 Por conta do impacto adverso do Estado Nacional Socialista sobre a autonomia da universidade, a posição de decano [senior faculty] foi fortalecida para proteger a universidade contra uma aparelho ideológico de Estado. No coração dessa universidade estavam a Lehrstuhl (cátedra) e a comunidade dos Lehrstuhlinhaber (catedráticos), uma estrutura que se tornou mais e mais problemática nos anos 1960 quando a população estudantil cresceu agudamente. A questão, então, era se se expandia as universidades existentes ou criavam-se novas. Nos dois casos, a reforma teria de lidar com estruturas antigas remanescentes. Teria chegado o tempo de se libertar das datadas estruturas institucionais, como propunham alguns reformadores? Nesse sentido, os debates altamente controvertidos (controversial)  invocavam o projeto de Humboldt de inúmeras maneiras, na maior parte das vezes para apoiar certas posições, mas ocasionalmente também para marcar a distância em relação a uma noção de universidade que tinha de ser superada - Humboldt como a carga de um passado em menor ou maior grau ambíguo.

            Nos anos 1950, a autocompreensão da universidade era articulada nos seus pronunciamentos rituais, como comunicados do Rektor (reitor) para os novos estudantes. Um bom exemplo seriam os comunicados de Helmut Coing na Universidade de Frankfurt. Coing, um membro da faculdade de Direito, também desempenhou um papel importante no Wissenschaftsrat, uma comissão estabelecida pelo governo federal e os Estados para estudar a estrutura da educação superior e fazer recomendações por meio de relatórios anuais. No outono de 1955, ele apresentou para os novos estudantes uma breve história da universidade alemã da Idade Média até o século XX, em que o movimento reformador ligado ao nome de Humboldt desempenha um papel central. Nessa história, Coing enfatiza que a nova universidade de Berlim (1810) reconceitualizou a relação entre ciência e sociedade. Enquanto a universidade ainda funciona como uma plataforma de formação profissional (direito, medicina e teologia), seu propósito mais amplo é provir uma educação geral no pensamento científico. A ideia de Wissenschaft (ciência), Coing enfatiza, transcende a formação profissional promovida. Invocando o modelo humboldtiano, ele sublinha a unidade da Wissenschaft em contraste como a concepção iluminista de ciência. Wissenschaft é o processo de criar conhecimento, e a universidade é onde isso acontece em meio à comunidade de professores e estudantes que estão envolvidos por igual nesse processo. Assim, Coing enfatiza a “ligação entre ensino e pesquisa” como um momento definidor da universidade moderna.9 Nesse contexto, o estudante possui Lernfreiheit, isso é, o privilégio de escolher seus próprios cursos, em flagrante contraste com o estudante do Gymnasium (escola ginasial preparatória para o ensino superior).

            A questão crítica, portanto, é se a universidade de 1955 ainda está em condições de viver conforme às ideias de Humboldt. Coing admite prontamente que a universidade contemporânea não se aparenta com a Universidade de Berlim de 1810, porque a evolução tecnológica, ele diz,  complicou o processo teórico da ciência. Como resultado, a educação universitária tornou-se, ao mesmo tempo, mais especializada e mais abrangente. Somado a isso, requer-se um maior número de cientistas e estudantes para garantir o avanço do conhecimento. Em resumo, Coing pinta um quadro em que a universidade contemporânea está determinada pela especialização de modo a deixar o estudante ingressante perdido em relação a para onde ir. Não obstante, Coing não deriva daí a óbvia conclusão de que os estudantes à sua frente estão fadados a se submeter à especialização profissional para cumprir suas metas.  Ao invés disso, próximo do fim de seu comunicado e sem qualquer mediação, ele recomenda um enfoque amplo e transdisciplinar. Ele quer que os estudantes peguem cursos também em áreas sem relação com sua futura profissão. Ele encoraja a curiosidade intelectual e os estudo da ciência em nome da ciência. Destarte, Coing brande uma educação liberal e geral em uma universidade organizada por disciplinas especializadas. Mas não há mediação entre a estrutura institucional existente que favorece a formação profissional e a Bildung do estudante individual recomendada - possivelmente, porque a estrutura dos anos 1950 ainda é suficientemente frouxa para permitir ao estudante desviar-se de uma linha de estudos estritamente disciplinar. A ambivalência de Coing ilumina a diferença entre a rigorosa estrutura organizacional de disciplinas autônomas em uma universidade moderna, de um lado, e, de outro, o conteúdo intelectual dessas disciplinas que, supostamente, ainda pode ser sintetizado pelo estudante.

            Em mais de um aspecto, o comunicado de Coing era típico das respostas dos anos 1950 para as mudanças tanto internas quanto externas à universidade. Há a percepção de que a universidade contemporânea está centrada primeiramente na formação profissional no interior das disciplinas existentes; mesmo assim, no plano normativo, a retórica humboldtiana da Bildung continua. A contradição é ocasionalmente mencionada, mas ainda não é vista como um problema mais sério. E, especialmente, não é questionada como a unidade entre ensino e pesquisa evoluiu através dos séculos XIX e XX. Isso significa que aquelas forças que resistem ou visam bloquear reformas vão, uma década mais tarde, invocar o modelo humboldtiano para articular sua posição. As ideias de Humboldt são interpretadas, então, como uma parte necessária e lógica da estrutura institucional estabelecida. Qualquer mudança no nível institucional vai, portanto, implicar uma ameaça à ideia de universidade. Por conseguinte, aqueles que querem preservar a ideia humbodtiana de universidade têm de resistir a qualquer reforma que, fundamentalmente, mine ou altere a velha estrutura. Em certa medida, esse tornou-se o dilema do movimento de reforma dos anos 1960. Ele se manteve preso ao modelo humboldtiano no sentido de que os reformadores eram confrontados com o que era tida como a ligação entre a ideia de universidade e sua estrutura institucional existente. Seus planos, mesmo que benéficos em certos aspectos, destruiriam a ideia clássica de universidade, a ideia de Bildung. Esse argumento poderia vir tanto de uma posição conservadora quanto de uma posição progressista.

Nos anos 1960, a noção de Humbodt de universidade torna-se uma posição conservadora que bloqueia reformas inevitáveis. À luz de um maior número de estudantes e da eficácia declinante do ensino e da aprendizagem nas universidades da Alemanha Ocidental em comparação com instituições em outros países europeus e nos Estados Unidos, a pretensão de que as ideias de Humboldt pudessem ou devessem inspirar a universidade do futuro não era mais autoevidente. Em retrospecto, Die Idee der Universität (A ideia de Universidade, 1946), de Jaspers, escrito imediatamente depois da guerra para restaurar a fortemente comprometida universidade alemã, apareceu como uma posição que perdeu seu apelo, uma constelação  institucional que pertencia ao passado. Dentre outras coisas, o filósofo Jaspers, que já havia participado nas discussões dos anos 1920, não antecipou a universidade de massas dos anos 1960. Para Jaspers, permanecia autoevidente que apenas uma pequena porcentagem da população  frequentaria a universidade; o acesso seria baseado em uma seleção rigorosa a partir de um contingente geral com o qual nem todas as classes sociais contribuiriam (IU, 101-9). O que Jaspers tinha a dizer sobre as massas reflete uma bem assentada aversão à mediocridade intelectual de grupos sociais fora do parâmetro da tradicional Bildungsbürgertum (burguesia ilustrada) (IU, 100). A ideia de universidade de Jaspers reivindica abertamente (em proximidade com Martin Heidegger) o princípio da Geistesaristokratie,  uma clara separação entre a aristocracia intelectual e as massas: “As massas são hostis ao excepcional” (IU, 101). Em outros aspectos igualmente, Jaspers dá continuidade às noções tradicionais da posição da universidade vis-à-vis o Estado e a sociedade. Ele situa firmemente a universidade do lado da teoria, não da praxis, o que significa que ações (Handeln) sociais e políticas estão excluídas (exceto aquelas de autogoverno, obviamente). Mesmo que se espere que a universidade sirva o Estado e a sociedade, ela não participa dos conflitos sociais e políticos. Em resumo, a universidade de Jaspers permanece apolítica, um ponto que se tornaria importante nos debates das décadas de 1960 e 1970. O poder do Estado, tanto em termos financeiros quanto administrativos, sempre é assumido como necessário e benéfico desde de que o Estado respeite a autonomia intelectual da universidade. Jaspers não pôde possivelmente antever a ulterior evolução da relação entre Estado e decanos [senior faculty], quando o Estado usou seu poder também para interferir em assuntos curriculares.

Jaspers não propõe nem antecipa mudanças estruturais significativas. Nem as posições predominantes dos Ordinarien, nem a Laufbahn (o padrão tradicional de carreira) na universidade (doutorado, habilitação) são questionadas. A participação do corpo acadêmico também não entra na discussão. Para colocar brevemente, Jaspers afirma o status quo sem despender muito tempo aos seus problemas, que já eram visíveis antes de 1933. Enquanto em 1946 a intenção de Jaspers poderia ser entendida como advogando mudanças vis-à-vis a universidade do Terceiro Reich, duas décadas depois, o mesmo texto se tornou um documento conservador, um instrumento para defender o status quo. No contexto histórico, no entanto, o termo conservador não se aplica nem para seu autor nem para a intenção e função original do ensaio, mas para sua utilização nos debates da década de 1960, em que a junção entre a ideia humboldtiana de universidade e sua encarnação atual na universidade contemporânea foi colocada sob pressão.

Humboldt e a reforma na Alemanha Ocidental

            Mesmo que a reforma universitária fosse parte do discurso sobre o ensino superior desde a fundação da República Federal,10 ela se tornou um tópico urgente apenas nos anos 1960. As  progressivas recomendações do Wissenschaftsrat, que se tornou instrumento crucial de reformas na década de 1960 na medida em que ele reuniu representantes decanos do corpo docente da universidade, administradores universitários, e representantes dos Estados, poderia ser utilizado como um índice para medir o crescente descolamento entre ideia e realidade. Iniciando suas atividades no final da década de 1950, o Wissenschaftsrat começou a avaliar a situação efetiva (empiricamente) e a preparar-se para a futura reforma.  Em causa estava a unidade de ensino e pesquisa. Deveria existir um novo tipo de docente voltado primordialmente ao ensino, liberando, dessa forma, a outra parte do professorado para pesquisa? A maioria do membros, sob a liderança de Coing, não favoreceu essa solução e recomendou expandir as universidades existentes criando mais posições docentes (Parallellehrstühle).11 Inicialmente, a estrutura institucional dada era considerada aproblemática, enquanto era negada a necessidade de novas universidades para lidar com a crescente população de estudantes. A expansão proposta, no entanto, implicaria consequências estruturais indesejadas. O aumento sugerido no número de membros decanos [senior faculty] também conduziria a um significante aumento no corpo acadêmico em geral  (Assistenten et al.) e, com isso, a uma hierarquia mais pronunciada que, mais tarde, levantaria a questão da participação na governança universitária. Assim as reformas propostas continham, desde o começo, problemas que mais tarde criaram conflitos entre várias facções.

A direção das recomendações era ao menos parcialmente motivada pela persistente  influência do mito de Humboldt, especialmente a noção de que as ideias de Humboldt foram essenciais para criar a moderna universidade alemã e, por isso, não poderiam ser abandonadas sem o perigo de destruir o conceito específico de ensino e pesquisa que dela eram parte.12 Tornou-se difícil imaginar que o conjunto de ideias do Denkschrift de Humboldt, de 1810, poderia também ser materializada em uma estrutura institucional diferente. Tão tarde quanto 1963, o proeminente sociólogo Helmut Schelsky, em seu influente estudo Einsamkeit und Freiheit (Isolation and Freedom), louvava o Wissenschaftsrat por permanecer próximo dos princípios tradicionais do modelo humboldtiano, uma posição que ele modificaria significativamente alguns anos depois, quando ele mesmo se envolveu ativamente no processo de reforma.13 A sociedade industrial moderna, tal como ele e outros observadores críticos da cena acadêmica notaram, demandava um tipo diferente de universidade. Assim, a maioria dos advogados do movimento de reforma que estavam envolvidos ou na expansão das existentes ou na fundação de novas universidades, distanciavam-se de Humbodlt ao enfatizar as mudanças históricas e ao negar, com isso, o valor trans-histórico de suas ideias. Eles também se distanciavam da noção de que a universidade era primeiramente um lugar em que as elites nacionais deveriam ser formadas, o que os conservadores sociais assumiam como dado.

            A defesa de Humboldt veio, de maneira de certo modo inesperada, de um campo diferente. Alguns dos críticos do movimento de reforma à esquerda reinvocaram Humboldt para expor algumas consequências negativas do planejamento do processo e de seus resultados efetivos. Mas antes que eu me volte para essa curiosa revivescência, preciso esboçar os objetivos do movimento de reforma dos anos 1960 no contexto do discurso sobre a universidade em curso. De um lado, havia, especialmente em meio ao professorado, a crescente preocupação em relação ao rápido aumento de novos estudantes e as esperadas consequências negativas a ele relacionadas para a qualidade do ensino e da pesquisa (Vermassung). De outro lado, havia a sensação de que, sob a condição de uma instituição honrada pela tradição, a universidade alemã não se adaptava a uma sociedade industrial moderna com um sistema político democrático. Enquanto a primeira preocupação poderia ser tratada ou pela criação de universidades suplementares ou pela expansão das já existentes, a última apontava para a missão e a função da universidade em si. A Bildung do indivíduo ainda era sua função primordial ou ela devia favorecer a formação profissional para ir ao encontro dos carecimentos da sociedade industrial moderna? Mas a ênfase crescente na função social da universidade na discussão em pauta tanto quanto as reformas propostas em si mesmas iriam produzir quase simultaneamente um novo tipo de criticismo que desqualificava a universidade transformada como tecnocrática. É no contexto dessa controvérsia que a ideia de Humboldt da universidade viria novamente para o proscênio, não somente por meio da familiar perspectiva conservadora, mas também por meio de uma posição reformista que clamava pela democratização da universidade.

            As recomendações do Wissenschaftsrat de 1965 tocavam, pela primeira vez, no espinhoso problema dos Studiengänge (currículos) e dos diplomas acadêmicos e a sua função social.14 A comissão se afastava da ideia de uma educação elitista sem nenhuma função social e abraçava currículos profissionais diferenciados específicos, apontando para diplomas socialmente úteis. Isso significava que todos os estudantes iriam frequentar a universidade somente por um período limitado, definido em termos de currículos mais longos ou mais curtos. O modelo para esse novo desenho era claramente o sistema britânico e norte-americano de educação superior com a distinção entre estudos de undergraduate e graduate e seus respectivos diplomas. A proposta era dupla: primeiramente, esperava-se que a reforma lidasse com a ineficiência e a massificação da universidade alemã; em segundo lugar, ela também visava cristalizar os processos de aprendizado ao introduzir exames ao final de cada fase (Zwischenprüfungen). Havia - possivelmente pela primeira vez - a noção de que deveria existir algum tipo de controle de contrapartidas [output control]. Com um olho no mercado de trabalho, a universidade deveria ser responsável [accountable] em relação à formação que ela propiciava. Isso significa que os reformadores criaram uma ligação entre o financiamento público e o benefício público [public welfare].

            A convicção de que a reforma curricular não era apenas desejável, mas também inevitável para a sobrevivência da universidade alemã não era, de modo nenhum, limitado ao Wissenschaftsrat. Estados individuais, assim como grupos individuais de planejamento, estavam se movendo na mesma direção. Dentre os seus líderes, estava Ralf Dahrendorf, um sociólogo de formação, um eloquente progressista-liberal, e um membro proeminente da geração mais jovem de acadêmicos que deixou seu cargo e serviu por diversos anos como Staatssekretär (subsecretário) ao Estado de Baden-Wüttermberg. Nesta função ele se tornou um dos mais enérgicos reformadores. Mesmo que os detalhes de seu trabalho não sejam importantes para este ensaio, a direção geral de seus esforços merece atenção porque ele se tornou alvo de criticismo severo, tanto de seus colegas conservadores quanto da esquerda. Seus adversários o viam como um típico tecnocrata que queria transformar a universidade em um conjunto de escolas profissionais às custas da autonomia e da liberdade intelectual. Para Dahrendorf, filho de um líder sindical, a universidade alemã ainda era uma instituição largamente controlada  e organizada pelas e para as classes alta e média e, assim, não era mais apropriadas para a sociedade democrática moderna. Uma de suas principais preocupações era abrir o ensino superior para os filhos da classe trabalhadora.15 Seu forte interesse na reforma universitária, e possivelmente, também, sua indiferença frente à retórica da universidade humboldtiana, tinha de ser vista sob esta luz. Sua proposta, baseada no trabalho de um comitê de patrocínio estatal em Stuttgart, visava reorganizar o currículo geral de modo que o estudante individual cursaria a Kurzstudium, isto é, ganharia um diploma em menos tempo, deixando, normalmente, a universidade depois de três anos com um BA.16 Um grupo menor continuaria por mais dois anos e receberia um MA, enquanto apenas uma pequena fracção iria dispender mais um ano na universidade para obter um PhD ou um diploma profissional parelho.

            A semelhança deste plano com as ideias desenvolvidas pelo Wissenschaftsrat é bastante óbvia, tal como Dahrendorf admitiria prontamente (NW, 19). Mais importante é a questão da legitimidade. Traria a reforma uma melhora substantiva além de melhor controlar o número de estudantes matriculados que era, claramente, um objetivo importante para os reformadores? A resposta de Dahrendorf é pragmática. Ele está convencido de que o novo Kurzstudium de três anos será aceito pela indústria alemã e, após a modificação das regras para promover Beamte (funcionários públicos com estabilidade), também pelo Estado. O argumento de Dahrendorf começa  com os carecimentos existentes da sociedade moderna, que são assumidos como dados, e propõe adaptar a universidade a eles. Os estudantes são vistos como uma população a ser controlada [managed] por meio de bons conselhos e melhores planos de carreira. Para facilitar esta profissionalização da educação superior, Dahrendorf também propõe um novo tipo de instrutor, a saber, o Studiendozent, cuja função primordial é ensinar sem ter sérias obrigações de pesquisa; um desvio decisivo do modelo humboldtiano.

            A ambiguidade das ideias de Dahrendorf tornam-se evidentes quando elas são comparadas com as recomendações do Spellings Comission on Higher Education sob George W. Bush em 2006. Sua semelhança é inegável. Mas enquanto a proposta de Dahrendorf enfatizava o aspecto progressista de abrir a universidade para as classes mais baixas, a Spellings Comission favorecia uma solução pelo mercado. É a diferença entre uma abordagem liberal-esquerdista e uma abordagem neoliberal. Do ponto de vista do Estado, o incentivo para essa solução é óbvio: é menos dispendiosa, como enfatiza Dahrendorf (NW, 31). Ao mesmo tempo, Dahrendorf compreende sua ideia como parte de um projeto mais amplo em que educação superior não é privilégio de uns poucos, mas o direito do cidadão comum. Ele defende, portanto, uma universidade que é aberta para todos as classes sociais e que se defina a si mesma antes em termos de formação científica e profissional do que de Bildung.

Dahrendorf já havia apresentado essas preocupações gerais em seu estudo de 1965, Bildung ist Bürgerrecht (Educação é um direito do cidadão). A universidade do futuro, ele argumenta, precisa decidir se ela quer servir a um espectro mais amplo de estudantes ou a uma pequena elite.17 Dahrendorf apoia, claramente, democratizar a universidade, mas ele também acredita que a oposição pode ser superada, que poderia ser possível desenvolver uma elite universitária organizada democraticamente. No entanto, não está claro como essa síntese pode ser obtida. O argumento de que o conceito de ciência usado no discurso alemão sobre a universidade está ultrapassado (vermodert) não resolve a tensão entre os carecimentos da média dos estudantes e a pesquisa científica, para não mencionar a necessidade de uma educação liberal em sentido amplo [general liberal education]. Portanto, não era surpreendente que as ideias de Dahrendorf fossem criticadas severamente por aqueles que queriam manter a Bildung como parte da educação de uma universidade.

            A oposição ao pragmatismo de Dahrendorf concentrava sua concepção de educação, especificamente na proposta de reforma curricular, mas também no entendimento implícito da estrutura institucional. No começo, o movimento estudantil, em parte influenciado pelo seu congênere dos Estados Unidos, estava seriamente envolvido com a ideia de uma reforma da universidade como parte de reformas sociais mais amplas.  Os líderes do movimento sentiam que a universidade alemã permitia liberdade individual mas não encorajava a participação em sua governança. Os representantes estudantis, em uma conferência de 1967 - Jens Litten, Ulrich Preuss, e Kurt Nevermann -, contestaram não apenas a ideia de praxis de Dahrendorf, mas também o seu conceito de democratização. Para eles, responder simplesmente aos anseios da sociedade existente não era suficiente, e a reforma que deixava a hierarquia da presente universidade intacta não podia encorajar a democratização ou responder aos problemas do futuro. Assim, a crítica da esquerda se voltou para a ideia de Bildung a fim de articular aspectos eliminados, ou ao menos marginalizados, no plano de Dahrendorf. Para a ideia de uma “universidade crítica” (Litten, citado em NW, 47) um termo cunhada por volta de 1965, o conceito de Bildung parecia ser unversichtbar (inegociável), fosse o nome de Humboldt mencionado ou não.

Na discussão após a apresentação de Dahrendorf na Gesprächskreis (mesa de discussão), em julho de 1967, tornou-se claro que, para os estudantes, a reforma universitária deveria reforçar aqueles aspectos da instituição que iriam, em última instância, promover e encorajar mudança social. Por esta razão, eles se opunham a meramente adaptar a universidade aos carecimentos da sociedade industrial, que, aos seus olhos, não era nem democrática, nem autocrítica. Nesse contexto, Preuss voltou-se explicitamente para Humboldt para elaborar a ideia de uma universidade crítica:

O fato [ . . .] de que Humboldt esteja morto há 150 anos não significa que ele está ultrapassado. Ele focou a unidade de teoria e prática. Essa unidade não podia ser realizada da maneira como ele a concebeu. Mas eu acredito que é tarefa dos intelectuais críticos dentro da universidade de se manter firmes a esta ideia, que não é de forma nenhuma reacionária simplesmente porque à luz dos eventos históricos ela é considerada inapropriada nos dias de hoje (citado em NW, 51)

            Aqui, Humboldt é enfaticamente salvo da avaliação de Dahredorf, que o tinha como um teórico pré-moderno, cujas ideias impediam a reforma e o progresso. Para Preuss, é o pragmatismo de Dahrendorf que bloqueia um verdadeiro progresso, porque ele reproduz exatamente as mesmas estruturas sociais que Dahrendorf visava superar por meio de uma sociedade aberta e liberal.

Esta defesa de Humboldt feita pela esquerda deve ter aparecido como uma surpresa para Dahrendorf, que estava, naturalmente, acostumado à oposição conservativa ao movimento reformista feita em nome de Humboldt. Os críticos conservadores invocavam a unidade de ensino e pesquisa assim como a liberdade de ensinar e aprender para deslegitimar as recomendações dos reformadores. Para a maioria, contudo, esta oposição significava pouco mais que uma defesa das estruturas institucionais estabelecidas e queixas a respeito de indevidas pressões do Estado e  muito  trabalho por excesso de estudantes.18 Nesse discurso, Humboldt desempenhava o papel de uma  célebre autoridade dotada de poder legitimador. Não é exatamente a propensão utópica do conceito de Humboldt que é invocada. Como mencionei, a crença na energia utópica medrou em meio à esquerda durante o final dos anos 1960 e o começo dos 1970 em clara oposição à Leistungselite (meritocracia), que era promovida pelo mundo dos negócios.

            O que é digno de nota a respeito da utilização de Humbodt por parte do movimento estudantil e de alguns de seus partidários acadêmicos  (dentre eles Jürgen Habermas) foi o remanejamento do contexto. Enquanto a interpretação hegemônica de Spranger a Schelsky enalteceu firmemente os momentos de individualismo e descolamento do mundo prático, o movimento estudantil enfatizava o aspecto comunal, ou seja, a democratização necessária da universidade como parte de uma sociedade democrática moderna. A universidade tinha de ser salva das reformas que a tornariam parte de um projeto mais amplo de criar uma formierte Gesellschaft (uma sociedade regulada tecnologicamente), com ênfase em eficiência e orientação por resultados; uma sociedade caracterizada por sua efetiva carência de abertura e igualdade. As recomendações do Wissenschaftsrat, aparentemente situadas do lado do progresso, eram consideradas como sendo motivadas pelo mesmo espírito (soubessem os reformadores ou não). Onde os reformadores, como Dahrendorf, viam progresso, o movimento estudantil via sobretudo regressão. Por essa razão, a unidade de ensino e pesquisa, a participação dos estudantes na pesquisa, uma pedra angular do modelo humboldtiano, eram defendidas vigorosamente contra todas as tentativas de pautar  educação pela eficiência. Em contraste, a ideia de universidade proposta pelo movimento estudantil focava o momento de reflexão crítica (sobre as funções sociais da universidade) e a ligação entre teoria e prática (o máximo uso social do conhecimento criado e transmitido na universidade).

Deve-se compreender a demanda por democratização, que exercia um papel central no programa dos estudantes, no contexto de uma oposição ao ideal de formierte Gesellschaft apresentado pelo campo tecnocrático dos conservadores.19 Inicialmente, democratização significava a universidade como uma instituição aberta que poderia ser estruturada por um pensamento crítico desenvolvido pela comunidade universitária. Também queria dizer eliminar a hierarquia existente naquela comunidade. Mesmo se os pais fundadores da moderna universidade alemã não eliminavam a estrutura institucional dada e, com isso, a diferença entre professores e estudantes, a sua ideia de comunidade de aprendizes [learning community] (especialmente nos escritos de Schleiermacher) iria ao mesmo tempo atenuar o aspecto hierárquico expresso no estatuto do professor como Beamter (funcionário público com estabilidade).

            Sob a condição de uma crítica às recomendações do Wissenschaftsrat e outros corpos acadêmicos, a invocação dos direitos estudantis está fundada na compreensão da universidade como uma livre comunidade de pesquisadores (incluindo os estudantes) sem consideração em relação aos carecimentos profissionais da sociedade.20 A ênfase é colocada claramente antes na participação estudantil do que no gerenciamento administrativo. Em outras palavras, a formação profissional não é o centro da universidade crítica. Quanto mais a universidade está descolada das expectativas mundanas da sociedade, tanto mais ela pode desempenhar o seu papel crítico. A forte - no limite, violenta - objeção ao número limitado de anos para completar um curso de estudos estava enraizado no conceito de universidade como uma instituição comunalmente partilhada [commonly owned], em que nem o professorado nem o Estado tinha o direito de expulsar aqueles estudantes que atingiram o seu tempo previsto de curso (Zwangsexmatrikulation). Em resumo, os estudantes favoreceram uma nova compreensão da universidade como um bem público que não era posse do Estado ou dos decanos. Mas essa ideia não foi aceita nos debates em questão, em parte porque os estudantes buscaram traduzi-la diretamente em reivindicações políticas. Como deixa claro uma resolução estudantil na Universidade Livre de Berlim de 22 de junho, 1966, eles reivindicavam que todas as decisões sobre a condição dos estudantes requeriam participação estudantil.21 Em confrontação com a administração universitária em 1966, esta reivindicação se tornou um clamor  por Drittelparität, isto é, uma exigência de um terço dos votos em todas as comissões importantes da universidade. A ideia de comunidade acadêmica dos pais fundadores transformou-se em um grito por direitos formais de voto.

Não é surpreendente que a maioria dos membros do professorado tenha respondido colericamente a essas demandas, uma vez que eles não iriam reconhecer a ideia de universidade de Humboldt em um programa proposto pelos estudantes. Baseado na interpretação que eles tinham da ideia  nuclear de Humboldt de uma comunidade universitária de iguais participantes, os estudantes queriam reformas estruturais que iam muito além das recomendações do Wissenschaftsrat ou dos planos do Estado de Baden-Württemberg (Dahrendorf). A sugestão, por exemplo, de abolir o Lehrstuhlprinzip (organização das disciplinas em torno de cátedras) e da Habilitation (segunda dissertação)  minavam seriamente as organizações existentes. Se alguém coloca a noção de comunidade acadêmica, consistindo de professores e estudantes, no centro do modelo humboldtiano, as demandas estudantis eram uma extensão lógica do projeto humboldtiano, apesar dos pais fundadores, claramente, não terem desenvolvido esses planos. A ideia de uma autonomia acadêmica, que depois da Segunda Guerra Mundial significava primeiramente autonomia dos Ordinarien, é transformada na independência de todos os participantes frente à intervenção estatal.

A intervenção de Habermas

Em um nível mais abstrato, Habermas ofereceu um argumento similar para a democratização da universidade em 1967.22 Desde 1964, ele foi um dos mais articulados partidários de esquerda do movimento estudantil e da reforma universitária. Embora o seu contínuo diálogo com os líderes estudantis não tenha deixado de apresentar fricções devido a diferenças tático-estratégicas, Habermas continuou   favorável a eles até, pelo menos, 1968. Olhando para a distinção entre conhecimento empírico, especialmente nas ciências naturais, e conhecimento prático em moral e política, ele observou que o escopo de se obter boas respostas para questões práticas requeria um diálogo racional baseado somente na qualidade do argumento. Mesmo ele não tendo proposto reinstituir a filosofia como a disciplina central da moderna universidade, ele assinalou a ela um importante papel para além da sua tacanha tarefa nos departamentos de filosofia. Suas regras discursivas podem, como sugere Habermas, servir como uma metametodologia para a universidade em geral. É evidente que Habermas entende a universidade como uma comunidade governada pela discussão racional. Democratização, então, significa que nenhum segmento da instituição fique eximido do império do diálogo racional. Portanto, os estudantes deveriam ser incluídos ao invés de excluídos. “Eles têm um papel legítimo quando determinam a política local e nacional sobre as universidades e a educação superior”.23 De maneira similar ao movimento estudantil, Habermas interpretava a universidade como uma instituição política na medida em que sua governança  deveria ser baseada em discussões racionais entre todos os seus participantes. Em sua leitura de novembro de 1967, na Goethe House de Nova Iorque, Habermas, conscientemente, expandiu a discussão sobre o envolvimento político do movimento estudantil para fora da universidade, isto é, a transição da reforma da universidade para questões sociais mais amplas: “Eles [os estudantes] parecem, agora, considerar o campus como nada mais do que uma plataforma de treinamento para a mobilização de tropas. Seu alvo não é mais a universidade como tal, que se tornou um oponente por demais insignificante” (RS, 19-20). De maneira clara, para ele, o investimento deles na noção humboldtiana de comunidade acadêmica autônoma tornou-se mais fraco e mais questionável.

            Em que medida Habermas, que era obviamente solidário às reivindicações estudantis sobre as condições das universidades alemãs, apoiou a politização geral dos estudantes? Sua avaliação mostra uma certa ambiguidade. Enquanto ele explica cuidadosamente as razões para protestos estudantis na Alemanha Ocidental e Berlim, ele não se identifica com o movimento, que ele interpreta como um movimento geracional. Mas não existe tentativa de legitimar a politização dos estudantes invocando a ideia humboldtiana de universidade. Com efeito, Habermas descreve a presente universidade alemã quando do despertar de Humboldt no século XIX como uma universidade puramente de pesquisa, com pouca preocupação pelos carecimentos dos estudantes, uma universidade que, ainda por cima, excluía as classes mais baixas. Aqui, Humboldt é usado como um símbolo negativo. “A universidade deveria educar e cultivar, mas ela não formava massas ou especialistas” (RS, 21). Nós podemos observar a tensão entre Bildung e o carecimento de participação política. Para Habermas (nesse aspecto, ele está próximo de Dahrendorf), a universidade da Bildung de classe média parecia ultrapassada, tendo em vista os conflitos sociais e políticos de caráter global. Para resgatar o conceito original, seria necessário distinguir, portanto, muito claramente entre a universidade histórica de pesquisa do século XIX e a ideia humbolditana. Mas em 1968-69, Habermas não continuou sua estratégia. Ao invés disso, ele optou abertamente   por reforma política por cima do movimento estudantil. Em uma proposta de três pontos, ele conclamava para que se avaliasse criticamente as práticas profissionais (análise crítica das implicações sociais e políticas da pesquisa), se planejasse a pesquisa de maneira politicamente consciente (nas ciências naturais e sociais), e se transformasse o sistema educacional (PS, 176-85). Embora por volta do final de 1968, as simpatias de Habermas pelo movimento estudantil tenham esfriado consideravelmente, ele ainda conferia para ele uma importante, mas limitada, função na necessária transformação da universidade. Além disso, ele partilhava da crença de que a universidade era uma instituição crucial para a transformação social, mesmo que não no sentido da ação política direta que os estudantes preferiam.

A posição de Habermas continha todos os elementos que o professorado conservador deplorava: a democratização da universidade, participação estudantil e direitos estudantis, e reforma curricular que tinha a intenção de intensificar o vínculo entre a academia e o mundo social. Do ponto de vista conservador, o denominador comum de tudo isso é a destruição da autonomia da universidade enquanto corporação. Quando Habermas sugeriu que o professorado alemão deveria decidir se apoiava as recomendações do Wissenschaftsrat e, com isso, salvar a sua posição dominante na universidade, ou interpretar essas recomendações como um chamado para sérias reformas estruturais, ele apontava para a precária situação dos docentes em um tempo de mudança histórica (PS, 145). De maneira geral, o professorado resistia a mudanças e queria manter as estruturas  historicamente consagradas; no entanto, estava inclinado a cooperar em algum grau com as reformas propostas e conduzidas pelo Estado na medida em que essas reformas não subvertessem o status de que gozavam. Pressões, especialmente do movimento estudantil, poderiam levar a um realinhamento de professores formalmente liberais em torno de posições conservadoras. A ascensão do neoconservadorismo na Alemanha Ocidental foi, largamente, o resultado de 1968.24

A virada neoconservadora: Hermann Lübbe

            Em certos sentidos, os neoconservadores tornaram-se a facção mais bem articulada do campo conservador, na medida em que tinham de legitimar sua posição, especialmente vis-à-vis aqueles liberais que se deslocaram para a esquerda. Hermann Lübbe (n. 1929) é um bom exemplo dessa mudança. Ele foi formado em filosofia pelo filósofo conservador Joachim Ritter na Universidade de Münster e, como Dahrendorf, deixou sua posição acadêmica por muitos anos para servir como um subsecretário na administração do Estado da Renânia do Norte Vestfália entre 1967 e 1970. Apesar de sua formação conservadora, ele se tornou um membro do Partido Social Democrata e se envolveu com o movimento de reforma universitária durante o início dos anos 1960 como um membro do Senado25 da Universidade de Bochum; ele também se tornou um membro do comitê de fundação de uma outra universidade na parte leste da Vestfália. Em linhas gerais, Lübbe era favorável a mudanças e apoiou efetivamente a reforma universitária. Foi somente em 1970 que ele se juntou ao Bund freier Wissenchaften, uma associação de professores fortemente oposta às demandas do movimento estudantil. A esta altura, ele estava convencido que a Freiheit der Wissenschaft (liberdade de pesquisa) estava ameaçada. Lübbe não deixou dúvidas de que o contramovimento dos decanos estava concentrado em restaurar a ordem na universidade, uma situação que o Estado deveria garantir. Em sua oposição ao “extremismo ideológico”, ele menosprezou a ideia de autonomia universitária e enfatizou a responsabilidade do Estado diante da universidade (a universidade “é em primeiro lugar e acima de tudo, uma instituição estatal”).26 Ao mesmo tempo, ele defendia rigorosamente a liberdade de pesquisa, isto é, um elemento substancial do modelo humboldtiano.

Essa ambivalência levanta a questão mais geral: qual é o papel de Humboldt na oposição (conservadora) ao movimento estudantil? A resposta reside na participação de Lübbe no movimento de reforma universitária e nas suas afirmações do início até a metade dos anos 1960, quando a iniciativa vinha ou do Estado ou de membros progressistas do corpo docente. Em 1972, no prefácio para Hochschulreform und Gegenaufklärung (University Reform and Counter-Enlightenment), ele afirma explicitamente que a universidade de Humboldt chegou ao fim. Era, como ele nota retroativamente, um processo inevitável que não poderia ser revertido (HG, 10); no entanto, essa afirmação pode ser lida de duas maneiras bastante diferentes. Ela pode se referir ou à estrutura da moderna universidade alemã no despertar da fundação da Universidade de Berlim ou ao ideal humboldtiano de uma comunidade acadêmica livre que nunca se materializou muito bem. A primeira interpretação definiria Lübbe como um modernizador da universidade, alguém que almeja abolir e substituir estruturas ultrapassadas. A segunda interpretação implicaria, possivelmente, uma discordância mais radical com a noção de comunidade acadêmica autônoma concentrada na Bildung. Ao descrever o movimento estudantil como um movimento juvenil irracional a serviço do contra-iluminista, Lübbe reivindicava para si a posição do observador ilustrado que via a universidade nas garras de forças  regressivas.

Sem entrar muito em detalhes, houve remanejamentos consideráveis no desenvolvimento da posição de Lübbe entre 1965 e 1970. Diferentemente de acadêmicos conservadores convencionais que simplesmente defendiam a estrutura existente da universidade alemã ao insistir em sua natureza apolítica, Lübbe reconhecia integralmente o inevitável envolvimento político-social da universidade como parte da totalidade social. Com efeito, em 1965, o ano decisivo para a reforma universitária na República  Fedareal, ele enfatizava a dependência da universidade em relação ao sistema político por conta das crescentes necessidades financeiras da universidade de pesquisa. A autonomia da república velha de scholars, ele argumentava, era uma coisa do passado, porque esta mesma autonomia era garantida, em última instância, pela “kulturverwaltende Obrigkeit” (o Estado como o guardião da cultura) (HG, 13), uma alusão velada à universidade prussiana. Em contraste, na sociedade moderna, pesquisa e educação superior tinham uma função social bem mais central e eram, portanto, também mais expostas ao impacto do sistema político. Para Lübbe, era importante reconhecer o deslocamento da ênfase do lado intelectual para o lado material. A prosperidade das sociedades modernas depende da qualidade da educação e pesquisa superiores: “A ciência se tornou uma parte essencial das atividades humanas. Ela se tornou a fundação material de nossa existência” (HG, 14). Dada esta premissa, Lübbe conclui que a sociedade, mediante o seu sistema político, tem de patrocinar a pesquisa e a educação superior. Mas isso tinha de ser feito apenas com a ajuda de especialistas capazes de reconhecer as ligações específicas entre carecimentos sociais e pesquisa científica. Na esteira do sociólogo Schelsky, Lübbe argumenta que processos de planejamento racional dependem de especialistas em Bildungsökonomie (economia educacional). Wissenschaftspolitik (política científica), como parte da civilização moderna, também inicia um complexo processo, com vários graus de mediação entre a comunidade de cientistas, de um lado, e o cidadão comum, de outro, o que significa que o político foi colocado no domínio da ciência e vice-versa. Mas tem de se perceber que Lübbe compreende a participação do cidadão nas políticas de pesquisa científica como uma atividade fortemente mediatizada. A reforma necessária da universidade alemã devia ser deixada nas mãos de especialistas vindos seja do Estado seja da administração universitária.

Dada a ênfase de Lübbe na cientificação da moderna sociedade, surge a questão sobre em que medida o modelo humboldtiano ainda pode servir como um ponto de orientação. Em 1967, ele examina explicitamente o papel de Humboldt na reforma universitária prussiana de 1809-10, provavelmente, com um olho para a utilização de Humboldt no discurso moderno sobre a universidade. Enquanto a abordagem padrão do programa de Humboldt concentra-se nas suas notas não publicadas de 1809 e 1810, Lübbe olha para o contexto mais amplo do serviço de Humboldt como diplomata e conselheiro político dos reformadores prussianos Karl Freiherr vom Stein e Karl August Fürst Hardenberg. Ele argumenta que a reforma universitária tem de ser vista como parte do programa mas amplo de modernizar a Prússia. Somado a isso, Lübbe sublima a ligação da reorganização feita por Humboldt da universidade com o Iluminismo Prussiano, embora ele reconheça explicitamente a distância entre um “pragmatismo unilateralmente orientado para a ciência” (HG, 113) e a ideia de Humboldt. Mais importante, contra a compreensão convencional  dessa ideia tida na fórmula de uma síntese de educação e ciência, em que a ênfase tende a recair  em conduzir a pesquisa científica, para Lübbe “a ênfase é colocada na educação” (HG, 113). A razão para essa ênfase, como argumenta Lübbe, tem a ver com o ambiente social em que a Universidade de Berlim foi fundada. A transformação de teorias científicas em tecnologias socialmente úteis estava para além do horizonte de 1810. Em outras palavras, para Lübbe, a universidade de Humboldt ainda era essencialmente pré-moderna. Por essa razão, Humboldt, como sugere Lübbe, define a universidade mais em termos da Bildung do que das ciências modernas. Aqueles que foram educados em uma universidade reformada estarão qualificados para participar nos negócios do Estado, porque eles desenvolveram juízo crítico.

Lübbe vê o sucesso da universidade humboldtiana, como ela se desenvolveu nos séculos XIX e vinteXX, nde a maior parte dos intéerpretes olham na garantia da liberdade de ensinar e pesquisar. Antes, ele sublinha o papel central do Estado para a força e a prosperidade da universidade alemã: “A íntima ligação entre universidade e Estado vem sendo obviamente tão bem sucedida que ninguém tentou seriamente privatizar a universidade na Alemanha” (HG, 116). Esse argumento fala em favor antes da continuidade do que da reavaliação radical da ideia de universidade.

Leitores do ensaio de Lübbe que procuram uma aplicação para a situação contemporânea ficarão desapontados, não apenas porque o autor evita a questão crucial de se saber se o modelo humboldtiano é ainda de algum valor para o movimento de reforma, mas também por conta da ambivalência de Lübbe em relação à ideia de Humboldt. Embora ele sublinhe o caráter pré-moderno do plano de Humboldt, ele enfatiza a diferença entre a estrutura corporativa da universidade do século XVIII e o caráter moderno burguês do programa de Humboldt. Concentrado-se no novo papel da faculdade de filosofia, ele reconhece a natureza quase revolucionária de estabelecer a ideia da crítica filosófica no núcleo da universidade, a ideia kantiana de crítica era indubitavelmente moderna e possivelmente ainda proveitosa para a discussão contemporânea. Mas não pode haver dúvida de que Lübbe considerava o modelo humboldtiano institucionalmente ultrapassado, e de que era sincero sobre a reforma estrutural da universidade, como seu artigo de 1966 “Reformprobleme der Philosophischen Fakultät” (“Problems of Reforming the Faculty of Philosophy”) deixa claro. No entanto, o conceito de reforma propagado nesse ensaio concentra-se em questões estruturais e organizacionais, e não na ideia de universidade. Por exemplo, ele aponta que o crescimento das cátedras universitárias (Lehrstühle) que pretendia lidar com o aumento da população estudantil resultou em um professorado mais hierarquizado, uma situação com consequüências érias para organizar o currículo. A antiga noção de que pesquisa e ensino deveriam estar necessariamente ligados, Lübbe sugere, estava se tornando menos plausível neste ambiente. Assim, nas discussões dos anos 60, a sobreposição de problemas institucionais e questões intelectuais não era sempre reconhecida. A concepção humboldtiana poderia ser entendida ou como um modelo estrutural-institucional ou como um construto filosófico.

Diferentemente do típico proponente do modelo humboldtiano, Lübbe percebe essa separação, em última instância, como uma vantagem para a reforma curricular, já que ela  presumivelmente fortaleceria a qualidade da instrução dos estudantes mais jovens, um argumento que também era favorecido por Dahrendorf. Na aproximação de Lübbe à economia da universidade, torna-se bastante claro que ele quer abandonar não apenas a estrutura do modelo humboldtiano, mas também uma de suas ideias essenciais, a saber, a noção de uma comunidade de pesquisa em que ambos, docentes e estudantes, participassem. Esta posição tinha consequüncias significativas em relação a democratizar a universidade. Se ensinar e pesquisar são separados e pesquisar torna-se mais ou menos uma prerrogativa docente, não se pode falar em igualdade fundamental entre cidadãos acadêmicos. A resposta incrementalmente negativa e hostil de Lübbe ao movimento estudantil traz essas predisposições para o primeiro plano.

Como argumentei, há uma conexão implícita entre a posição anti-Humboldt de Lübbe, sua compreensão de que reformas organizacionais e conceptuaisleram necessárias à universidade, e sua oposição às demandas estudantis. É em nome do progresso iluminista que Lübbe se opõe agudamente à reivindicação de democratizar a universidade, porque esta ideia é baseada, em última instância, na noção fundamental de igualdade de docentes e estudantes como membros da comunidade acadêmica. Nesta luta, como outros que antes eram liberais, ele usa a estratégia de transformar seus oponentes ideológicos à esquerda em Dunkelmänner (obscurantistas) e representantes do contra-iluminismo. Por exemplo, ele compara os estudantes radicais em suas leituras dos trabalhos de Marx a religiosos sectários, um topos que Schelsky também utilizou.27 .

No fim dos anos 1960 e começo dos 1970, o foco da crítica de Lübbe se deslocou para a crítica do intelectual de esquerda cuja presença na universidade era vista como um perigo para o quadro institucional, mas não apenas para o universitário. Na percepção de Lübbe, o que estava em jogo se tornou maior. Como resultado, a retórica se tornou mais estridente. Definindo-o como uma revolução cultural, Lübbe transformou o movimento estudantil em uma ameaça à ordem constitucional da República Federal. Agora Lübbe, o neoconservador reconciliado, transformou-se em um defensor radical da lei e da ordem, para quem aqueles que eram mais solidários ao movimento estudantil são Mitläufer, um termo usado para cidadãos alemães que apoiaram passivamente o Terceiro Reich.

Em 1970, Lübbe concluiu que a reforma universitária foi um erro, na medida em que a maioria dos objetivos não foram alcançados. Mais ainda, ele estava convencido de que a universidade poderia ser salva apenas por intervenção externa, embora ele não definisse as necessárias intervenções que poderiam salvar a universidade. Não existe razão para assumir, no entanto, que o modelo humboldtiano, tanto como uma ideia, quanto como uma estrutura institucional, deveria ser revivificado. Com efeito, em artigo publicado originalmente no Deutscher Allgemeines Sonntagsblatt de 6 de dezembro de 1970, Lübbe tira sarro dos membros docentes que ainda acreditam na autonomia universitária e assinala (com uma referência velada ao movimento estudantil): “Aplaudido por professores que estão interessados exclusivamente na autonomia [da universidade], a universidade se tornou mais descolada de seu meio social que nunca. A torre de marfim não foi finalmente aplainada, mas reconstruída em concreto como um posto de observação para a crítica social universal” (HG, 71-72). Humboldt é, explicitamente, declarado ultrapassado.

A reforma universitária revisitada nos anos 1980

            Por volta da metade da década de 1970,  as reformas universitárias da Alemanha Ocidental chegaram a um fim, em grande medida porque os Estados (Länder) não eram mais capazes, financeiramente, de sustentar o programa, em parte por conta do impasse ideológico entre os partidários da reforma e seus oponentes à direita. Quando Lübbe retornou ao tópico da universidade em 1988 - a ocasião foi uma conferência da qual Hans Georg Gadamer e Habermas também participaram - o tom de completo desespero havia desaparecido. Lübbe havia deixado a República Federal e aceitado a cátedra de filosofia na Universidade de Zurique. Agora, o progresso global do trabalho científico organizado é tido como dado. Com efeito, Lübbe afirma com satisfação que em termos de investimento para o apoio da ciência, a República Federal é um dos países líderes. No entanto, este apoio massivo tem, também, como sugere Lübbe, um lado negativo, a saber, a ênfase em projetos socialmente relevantes em detrimento daqueles em que somente a curiosidade do cientista motiva a pesquisa. A ameaça à descoberta científica não provém mais de estudantes indisciplinados e obcecados, mas da própria lógica interna da pesquisa científica. O próprio processo de organização científica, Lübbe argumenta, ameaça experiências vividas. Este conceito aponta para uma situação em que o senso comum não é mais suficiente para avaliar e valorar projetos científicos. Como resultado, a distância entre o mundo da vida, em que as decisões políticas tem de ser tomadas,e a universidade de pesquisa, aumentou e continuará aumentando, um desenvolvimento que corta a base do processo democrático. Assim, o processo científico, em termos culturais, torna-se cada vez menos relevante para o cidadão comum, porque ele não pode ser traduzido em um entendimento do mundo compatível com o senso comum.

Que conclusões Lübbe deriva dessas observações para a ideia de universidade? Em sua revisão sobre o antigo movimento de reforma, ele enfatiza o importante trabalho do Wissenschaftsrat, no começo dos anos 1960, mas ataca severamente as contribuições do movimento estudantil como primordialmente destrutivas. À luz da complexidade da ciência moderna, Lübbe recomenda despolitizar a universidade, um espaço que deveria ser dedicado ao trabalho da ciência. De modo um tanto estranho, no entanto, Lübbe falha em conectar a primeira parte de seu ensaio com a segunda. Enquanto ele examina as limitações da compreensão positivista de ciência e propõe a ideia de experiência como um contrapeso, sua revisão do movimento de reforma recai em uma noção de autonomia científica autossuficiente que não pode ser perturbada por considerações éticas e políticas. Novamente, a relevância positiva da ciência como um todo é dada como certa e não é exposta a uma metacrítica. Não há, claramente, nenhum retorno a Humboldt. Somente rumo ao final, Lübbe levanta a questão de normas que são necessárias para regular os resultados da ciência por conta de seu potencial perigo à vida humana. E ele sublinha acertadamente a importância das humanidades para esta tarefa quando ee refere, especificamente, para “carecimento por orientação cultural”28 das civilizações modernas. Ainda assim, este insight não o predispõe a rever seu conceito universalista de ciência, juntamente com o seu pano de fundo positivista. Por essta razão, inda não há lugar para Humboldt.

A contribuição de Habermas para a mesma conferência, em contrapartida, invoca explicitamente o espírito de Humboldt para descrever a universidade como uma instituição em que eine ideale Lebensform”(um ideal de forma de vida) pode ser encarnado.29 A seguinte definição traz enfaticamente à tona a retórica do idealismo alemão: “A ideia de universidade aponta para normas da Bildung que definem todas as formas do espírito objetivo” (IUL, 140). E Habermas não para simplesmente por aí. Olhando de volta para os anos 1960, ele aponta que os debates sobre reformas eram conduzidos sobre a falsa premissa de que a questão era ou preservar ou renovar a ideia de universidade. O resultado foi uma transformação institucional que nenhum dos lados queria ou previu. Olhando para trás, Habermas interpreta as mudanças correntes como um processo de sobrediferenciação que não está mais necessitado de legitimação normativa (IUL, 146).  Ao mesmo tempo, ele indica aqueles aspectos da universidade que uma abordagem a partir da teoria dos sistemas tende a negligenciar, a saber, Bildung, a preparação da próxima geração de acadêmicos, e a reflexão sobre a tradição cultural. É precisamente nesste ontexto que ele retorna à ideia da universidade como ela foi primeiramente articulada na reforma prussiana de 1809-10.  No entanto, a concepção inicial sugeria uma síntese de todas as disciplinas que não poderia, como Habermas admite prontamente, ser realizada no plano de uma reforma organizacional  no final do século vint

Portanto, a pergunta crucial é: em que medida o cerne da ideia ainda é relevante? Humboldt pode ser um ponto de orientação? Mesmo em 1988, Habermas está convencido da relevância de Humboldt para a universidade contemporânea alemã. Sua reconstrução cuidadosa do programa idealista enfatiza a centralidade da filosofia para a Wissenschaft e o ensino tal como a unidade da inovação científica e do aprendizado: “A construção do pensamento filosófico também determina a forma de sua mediação pedagógica” (IUL, 151). Em resumo, está em jogo a integração de “processos de pesquisa e processos de educação” (IUL, 152). Nesta formulação, supunha-se que a universidade  fosse o microcosmos de uma sociedade (futura) de cidadãos livres e iguais. Habermas conclui que as condições institucionais não poderiam comportar esta ideia, e a evolução posterior das ciências empíricas tornou ainda mais improvável que a ideia fosse em algum momento se tornar realidade. Dadas essas transformações, seria a ideia mais do que a ideologia do professorado alemão, como mais de um crítico chegou a sugerir?

A resposta é desenvolvida em dois passos. Em primeiro lugar, Habermas aponta para o revivescimento do modelo Humboldtiano durante os anos da reforma. Um exemplo citado é o estudo de Schelsky de 1963, que, de acordo com Habermas, não se satisfaz com uma explanação puramente funcionalista da universidade, mas propõe deslocar o momento necessário de autorreflexão teórica para o interior das disciplinas individuais. Ao mesmo tempo, ele nota que esse projeto foi somente parcialmente bem- scedido e não renovou a ideia de universidade. Em segundo lugar, Habermas tenta defender o ponto de que a compreensão da teoria dos sistemas da universidade como uma instituição sem carecimento de orientação de normas e valores é prematura. Não é surpresa que, nos anos 1980, Habermas sinta o carecimento de defender a compreensão da universidade contra a teoria dos sistemas, com suas teses de que processos de diferenciação, tal como eles ocorrem na evolução da ciência moderna, não dependem de regulações normativas. De modo mais específico, ele argumenta que a universidade não pode ser completamente separada do mundo da vida, isto é, da esfera em que os valores e as normas são indispensáveis para a vida das comunidades humanas. A diferenciação ocorre em uma instituição que ainda mantém normas e estruturas ligadas.

Se Habermas não propõe o revivescimento dogmático da ideia de Humboldt, ele defende uma recepção crítica e seletiva que continua e modifica o programa idealista. Mesmo em uma época de diferenciação avançada nas ciências, há um momento de consciência comunal na universidade, um solo comum para as várias práticas. Teoricamente, Habermas localiza o solo dessa consciência no papel da linguagem e da comunicação. O ponto de referência histórico é o ensaio de Schleiermacher “Gelegentliche Gedanken über Universitäten im deutschen Sinne” (“Ideias casuais sobre universidades no sentido alemão”). Seguindo Schleiermacher, Habermas reinterpreta a universidade como uma comunidade comunicacional a serviço da ciência. Todos os processos de aprendizagem acadêmica “dependem do estímulo e da força produtiva do conflito discursivo” (IUL, 170). Em última instância, o argumento de Habermas em apoio à ideia de Humboldt de universidade, está concentrado antes em ensinar e aprender do que em produção de conhecimento e relevância social. Ensinar parece estar no centro da instituição.

Humboldt no debate norte-americano

            Como eu mostrei, o liberalismo alemão pragmático em ambas as suas variedades, a mais progressista (Dahrendorf) e a mais conservadora (Lübbe), não está interessado na conexão com Humboldt. Aqui, a universidade avançada da sociedade tardo-industrial é definida em termos de eficiência social. A principal função da universidade é, tal como era no século VIII, a formação de profissionais. Por esta razão, a unidade de pesquisa e ensino, se não rejeitada por completo, não é mais vista como o núcleo da instituição. Este pragmatismo social se contrapõe a ambos, i.e., tanto à crença do professorado conservador na continuidade do valor do modelo humboldtiano, quanto ao revivescimento da ideia de Humboldt em nome da universidade crítica proposto pela esquerda. Se a cena norte-americana difere da alemã em mais de um aspecto, elas partilham similaridades interessantes no que diz respeito à ideia nuclear de universidade. No caso norte-americano, no entanto, a constelação descrita acima torna-se mais visível nos anos 1980, no contexto das guerras culturais, quando o papel e a função da universidade é colocada sob intenso escrutínio, especialmente pelo lado conservador. A tese de que a universidade fracassou fundamentalmente em desempenhar sua devida função por conta de sua politização (por radicais de esquerda) não apenas pôs pressão crescente nas administrações universitárias para reafirmar a missão de ensino tradicional, mas também renovou a discussão sobre a ideia de universidade. Em contraste com os anos 1970, o discurso dos anos 1980 é dominado por vozes conservadoras ou neoconservadoras, que querem resgatar a universidade das ideologias radicais e trazer de volta a ordem no campus.30 Se a lta política é bem conhecida, as bases conceituais e filosóficas receberam bem menos atenção, na medida em que elas foram encobertas pela estridente polêmica entre conservadores e liberais. Ao se olhar mais proximamente àas ideiasfilosóficas subjacentes às posições políticas, sobressai que o campo conservador é menos homogêneo que o esperado e que a defesa da universidade por conservadores centrada em valores depende de ideias fundamentais que liberais poderiam igualmente invocar para explicar sua ideia de universidade. Istso é, a poêmica contra a universidade politizada pode, à direita, enfatizar tanto valores tradicionais quanto o carecimento por uma universidade transformada que possa servir melhor à sociedade norte-americana contemporânea. Nesste complexodebate, o nome de Humboldt ou os eventos da reforma prussiana do começo do século dezenove XIXmpenhavam um papel significante, mas isso não quer dizer que a ideia da moderna universidade de pesquisa, formulada nesse ponto da história, não seja relevante para o discurso norte-americano contemporâneo. A noção de autonomia universitária, supostamente minada por radicais de esquerda, e a ênfase em ensinar como um diálogo entre professor e estudante deve sua força intelectual a um antigo discurso alemão que é raramente reconhecido ou admitido.

Em contraponto ao discurso alemão das décadas de 1970 e 1980, os debates norte-americanos e as acaloradas controvérsias estavam centradas sobretudo na função de ensinar as humanidades. A importância da pesquisa nas ciências naturais patrocinada pela universidade de pesquisa não era seriamente questionada porque ela poderia ser defendida pragmaticamente tanto como parte da defesa nacional quanto como ferramenta de progresso social. A batalha concernia a missão do college. Em jogo, estavam valores e ajuizamentos de valores, a necessidade de continuar ou reverter as mudanças feitas durante os anos 1970. O “relatório em humanidades na educação superior”, editado por William J. Bennett em 1984, é um documento típico de uma tentativa de redefinir o papel das humanidades na educação conferida no college. Há, antes de mais nada, a vontade de afirmar a centralidade das humanidades: “As humanidades não são um luxo educacional, e não é somente para pessoas da área”. O carecimento de uma educação geral calcada nas humanidades é reafirmada sem menção àquelas forças presentes na educação superior que querem rebaixar ou marginalizar os estudos de literatura, filosofia e artes. Este programa é apresentado sob o guarda-chuva das “questões perenes da vida humana”.31 Quando chega-se ao currículo e às listas de leitura desejados, o relatório permanece um tanto dentro das fronteiras da tradição da civilização ocidental, somente com breves excursões [minor excursions] em culturas não-ocidentais. Em grande medida, as propostas visam retornar aos anos 1950 e se eximem de mencionar ou interpelar as controvertidas novas disciplinas tais como feminismo, black studies, e estudos coloniais e pós-coloniais. Como seria de se esperar, não há, de todo, menção à cultura popular. O declínio das humanidades nos currículos do college é atribuído primeiramente à falha dos docentes em tornar o assunto relevante do que à mudança de interesses dos estudantes que estão mais afinados à formação pré-profissional. Por conseguinte, a questão do ensino torna-se crucial.

O relatório considera as expectativas e exigências profissionais - em resumo, a crescente importância da pesquisa - como uma séria ameaça ao papel das humanidades no currículo do college. Há a percepção de uma clara divisão entre os carecimentos do college e as expectativas da universidade de pesquisa. Esta tensão é típica para os debates dos anos 1980 e 1990. Vozes conservadoras, não apenas em humanidades, expressam a preocupação sobre a indevida importância da pesquisa na acadêmia. Em grande medida, educadores conservadores querem abaixar o profissionalismo da escola de bacharelado [graduate school], isto é, a universidade de pesquisa, e destaca o lugar essencial do college para educação superior. Também há uma certa indisposição contra considerações de mercado e toda compreensão dos estudantes como clientes ou consumidores. Tem-se de admitir a existência de áreas como contabilidade, comunicação, ou estudos preliminares de direito, mas não se pode lhes conceder proeminência no currículo.

Enquanto o relatório de Bennet reiterou mais ou menos uma missão formulada nos anos 1950, o relatório submetido por Lynne V. Cheney, em 1988, ampliou significativamente seu espectro ao incluir filme e televisão como meios prestativos e apropriados para ensinar o cânone ocidental. Suas recomendações incluíam o uso de programas televisivos e filmes para popularizar as grandes obras da literatura. No entanto, não há um apoio de estudos de mídias per se; o objetivo é, antes, uma recepção popular mais ampla do cânone tradicional que passe ao largo da especialização entre scholars e do efeito alienante da teoria literária. Ambos são vistos como resultado lógico da ascensão da universidade norte-americana de pesquisa durante a segunda metade do século XX. Novamente, as expectativas e as exigências do programa da graduate school colidem com a ideia de uma educação geral para a undergraduate school. Essa tensão é, antes, percebida como uma ameaça às humanidades do que um problema de mediação entre as mais avançadas formas de scholarship e a sala de aula da undergraduate school. Essa sensação de ameaça é devida, em parte, à compreensão conservadora da política curricular na universidade contemporânea. O relatório de Cheney acusa, em 1988, que o uso da literatura na sala de aula restringe-se ao uso político: “Verdade, beleza e excelência são tidos como irrelevantes; questões de qualidade intelectual e estéticas desprezadas”.32 Aqui,ela adentra a esfera das guerras culturais dos anos 1980, a calorosa controvérsia sobre a civilização ocidental. Questionar o cânone ocidental é visto como uma heresia, e aqueles que o fazem são considerados como radicais indesejados. Nos escritos de Roger Kimball e Allan Bloom, essa polêmica é muito mais eloquente. Ambos atacam as mudanças que tiveram lugar durante os anos 1970 como perigosas aberrações impostas à universidade por radicais de esquerda tais como Elaine Showalter, Houston Baker, e Fredric Jameson.33

No contexto desse ensaio, os elementos específicos dessa polêmica - por exemplo, o ataque frontal a Paul de Man e sua desconstrução - são de menor interesse. O que é digno de nota, no entanto, é que ambos, Kimball e Bloom, percebem a crise da universidade como uma crise das humanidades. (A óbvia diferença entre eles é que Bloom é intimamente familiar com a área, enquanto o conhecimento de Kimball é de segunda mão). Em contraponto, os críticos conservadores da universidade alemã sublinhavam as ciências sociais e a filosofia política como o cerne do movimento de protesto. Mais ainda, o movimento estudantil alemão propunha reformas estruturais radicais, enquanto no caso norte-americano a estrutura básica da universidade nunca foi desafiada. Ao invés disso, os ativistas demandavam mudanças no currículo por meio de novos programas em que tópicos e problemas que não tinham espaço no currículo antigo pudessem ser ensinados. Da perspectiva conservadora, os programas mais notórios e perigosos eram estudos feministas, black studies, estudos pós-coloniais, áreas cuja natureza política era manifesta. Nesse sentido, a defesa da composição estabelecida das humanidades significava salvaguardá-las da intromissão da política. Assim Kimball cita Richard Rorty dizendo que “tinha chegado uma nova cultura norte-americana de esquerda feita do desconstrutivismo com novos historiadores, pessoas nos estudos de gênero, estudos étnicos, estudos de mídia, uns poucos marxistas remanescentes e por aí afora. Essas pessoas gostariam de usar os departamentos de inglês, francês e literatura comparada das universidades como palco para sua ação política” (TR, xii). A noção de palco nos dá a entender que o assunto é tido como secundário em relação à função primordial de transformar a universidade em um campo de batalha político. O rancor da direita contra a politização das humanidades tinha de ser visto em um contexto mais amplo da vigente despolitização das ciências sociais que já havia ocorrido em um estágio anterior. Tocado para fora das ciências sociais, o pensamento radical havia se mudado para as humanidades.

O que torna as humanidades o centro da crise identificada é, acima de tudo, a preocupação com valores tidos como necessários para a sociedade democrática e, em segundo lugar, a ideia de uma educação liberal como preparação para formações profissionais posteriores. Em resumo, a defesa do currículo tradicional das humanidades é ao mesmo tempo entendido como uma  defesa da democracia; aqueles que propõem e introduzem mudanças são hostis à democracia ocidental. Ao construir a defesa das humanidades como uma defesa da democracia norte-americana, Kimball confere à sua agenda conservadora uma urgência que vai bem além da discussão acadêmica. Ao mesmo tempo que ele concede que não há nenhuma ameaça de revolução política na universidade dos anos 1990, ele aponta para o que ele vê como um perigo renitente, a saber, a reestruturação do currículo por membros radicais do corpo docente - mas agora para durar. Daí que só o retorno à tradição ocidental e seu cânone estabelecido garantiria estabilidade política. É assumido tácita mas acriticamente, por sinal, que o cânone ocidental é em si mesmo conservador, e, portanto, a instrução baseada nesse cânone tem de patrocinar objetivos políticos conservadores.

Humboldt redescoberto: Bloom, Readings e Nussbaum

            A busca por restaurar o status quo ante é um movimento tipicamente conservador. Mas a questão definitivamente mais séria e mais interessante é como a defesa das humanidades é concebida em termos de suas subjacentes pressuposições filosóficas e pedagógicas. Há mais do que a acusação de subversão? (TR, 166-67). Enquanto o estudo de Kimball permanece no nível da polêmica e da insinuação, Closing of the American Mind (1987) de Bloom oferece não só uma exposição filosoficamente mais embasada de sua posição, mas também uma relação [account] mais completa das questões pedagógicas envolvidas. Sem nenhuma dúvida, a noção de uma educação liberal tomada como a fundação de todos os estudos universitários está no centro do projeto de Bloom. Embora ele não introduza o conceito explicitamente, o termo alemão Bildung pode ser a  classificação mais apropriada. Em Bloom, a ideia de uma educação liberal é intimamente ligada ao cânone ocidental e sua extensão pedagógica no curso dos Grandes Livros. Em suas palavras: “Um bom programa de educação liberal abastece o amor do estudante pela verdade e a paixão para viver uma boa vida”.34 A questão da boa vida transcende, claramente, as questões acadêmicas no sentido estrito. Bloom privilegia as humanidades em relação às  cincias sociais e naturais como  o cerne da educação liberal, porque elas dizem respeito aos valores humanos essenciais. Diferentemente da maioria dos humanistas conservadores, no entanto, Bloom concentra-se na filosofia, especialmente na filosofia antiga, mais do que na literatura. Sua tentativa de resgatar a universidade contemporânea se assenta primordialmente, como seu mentor Leo Strauss já havia advogado, na interpretação de Platão. O momento decisivo da pedagogia de Bloom, portanto, é o diálogo entre professor e estudantes sobre filosofia antiga. Ler os antigos sob a orientação do professor experiente abre o caminho para a verdade e para a boa vida.

No discurso norte-americano sobre educação no college, o método dialógico, contudo, também pode ser encontrado em autores que partilham muito pouco com Bloom. Isso seria verdade para Martha C. Nussbaum, bem como para Bill Readings. Em Cultivating Humanity (1997), Nussbaum propõe defender as humanidades por meio de um método dialógico de instrução.35 Isso também se aplica, porém de um modo mais complexo, a Readings, cuja severa crítica da universidade contemporânea em The University in Ruins (1996) remonta indiretamente a Humboldt.36 Esses estudos apareceram quase uma década depois das guerras culturais e, portanto, respondem por um conjunto de problemas bastante diferente. Isso é particularmente válido para Readings, enquanto Nussbaum ainda pode ser lida como uma réplica à mensagem conservadora de Bloom. O conceito de Readings de universidade corporativa põe em destaque as verdadeiras mudanças organizacionais nas universidades norte-americanas durante os anos 1980, transformações que não tiveram um papel significativo nas controvérsias da década anterior. Para Readings, a nova universidade corporativa redefiniu a si mesma de acordo com as diretrizes de um empreendimento comercial em que o sucesso é medido, antes, em termos de investimento de capital e eficiência do que em termos de  transmissão de valores liberais ou conservadores. O novo tipo ideal, a que todas as universidades existentes só podem se assemelhar parcialmente, tornou-se apolítico não porque ele quer preservar o cânone da civilização ocidental, mas porque ele transformou todos os elementos do currículo em mercadorias. Isso inclui Dante, Shakespeare, e Goethe tanto quanto estudos de gênero e estudos pós-coloniais. Nesta universidade, o estudante tornou-se um cliente que olha para sua educação como um investimento pré-profissional. Esta versão neoliberal da universdade, em que o centro de gravidade se deslocou para a administração central, é igualmente indiferente às ideias da esquerda radical e dos contra-ataques da direita. Ela rejeita a noção de comprometimentos [commitments]  ideológicos em nome da accountability financeira e realizações [accomplishments]  profissionais. É, por sinal, digno de nota que os críticos conervadores e neoconservadores dos anos 1980 não perceberam ou responderam às efetivas transformações da universidade norte-americana. Por volta dos anos 1990, o oponente de uma educação tradicional liberal não era mais o estudante radical ou um professor de inclinação esquerdista, mas um administrador que define as reformas curriculares em termos de estudantes inscritos [student enrollment]  e créditos cursados [credit output].

Ao colocarmos a questão de que perspectiva esse modelo de universidade liberal pode ser criticado, nós fazemos, então, uma descoberta inesperada. Antes de tudo,  as humanidades, como no caso de Bloom, mais do que as ciências naturais, são a última linha de defesa, porque estas podem argumentar em prol de sua relevância em termos de utilidade social. Em segundo lugar, e mais importante, em sua defesa das humanidades, ambos, Nussbaum e Readings, fazem uso de ideias centrais para o projeto de Humboldt. Apesar de pertencerem a campos ideológicos diferentes e, portanto, defenderem  programas e modelos curriculares diferentes, eles partilham a concepção de quem é o oponente e quais são as forças destrutivas na universidade contemporânea. Eles estão preocupados com a transformação silenciosa da universidade em uma coleção de escolas profissionais e colleges preprofissionais. Especialmente para Readings, essa universidade se tornou uma parte da indústria de serviços. Como ele registra: “por sua parte, a universidade está se tornando uma corporação burocrática transnacional” (UR, 3). Nesse quadro, a administração central da universidade tomou o papel do malfeitor. A tese é que essa administração cortou, ou está, cortando, a lgação entre educação e democracia que era uma parte essencial da educação superior nos Estados Unidos.

O elemento notável dessa resistência é a proximidade das ideias de Humboldt. Em nome da educação liberal, esses autores se opunham a uma concepção pragmática da educação com uma ênfase na formação profissional e pré-profissional. O mercado de trabalho não é o objetivo pretendido. Mais ainda, o método da educação não é voltado para transmissão de conhecimento ou mesmo de métodos científicos e teóricos que são importantes para a descoberta científica e  conquistas acadêmicas [scholarly achievements]. Ao invés disso, o cerne comum é um processo de aprendizado dialógico entre professores e estudantes. O centro é uma comunidade de estudantes, no sentido lato do termo, que partilha por meio do diálogo a aprendizagem e a progressão que não é limitada a aspectos cognitivos. Readings introduz o conceito de ensino descentrado [decentered teaching] para marcar a distância com a universidade contemporânea de pesquisa: “Ensino descentrado começa com a atenção à cena pragmática do ensino. Isso é para recusar a possibilidade de qualquer ponto de vista privilegiado de modo a tornar o ensino alguma outra coisa que não a auto-reprodução de um sujeito autônomo” (UR, 153).

            No caso de Nussbaum, a estrutura dialógica de ensino é ainda mais pronunciada. Ela escolhe o diálogo socrático como o modelo para a educação de cidadãos críticos no college. Mas, explicitamente, não é o Sócrates de Platão que ela invoca. Ao invés disso, ela se refere ao Sócrates histórico, que questionava as tradições de Atenas fazendo perguntas inesperadas e subversivas. Diferentemente de Bloom, que quer basear a educação (política) dos estudantes na República de Platão e entende o estudo do cânone ocidental como uma autêntica [authoritative] introdução às ideias com quais um jovem carece se familiarizar, Nussbaum pensa os diálogos socráticos como um meio de se abordar não apenas a civilização ocidental mas também as culturas não-ocidentais. Sócrates se torna o educador de um mundo feito por conflitos sociais e culturais, de uma realidade sem tradições seguras a que a universidade possa reivindicar. Nessa situação, o objetivo tem de ser “uma comunidade raciocinante” [reasoning community] (CH, 19).

A presença intelectual de Humboldt e Schleiermacher no discurso contemporâneo sobre a universidade norte-americana é digna de menção, apesar de não se poder afirmar com certeza que Bloom e Nussbaum estejam cientes dessa relação (Readings, claramente está). Para a crítica da universidade neoliberal, isto é, a universidade de excelência concentrada na eficiência e na accountability, a ideia de uma comunidade acadêmica definida por um diálogo constante entre professor e estudante torna-se um apetrecho crucial. O paralelo com a situação alemã dos anos 1960 é difícil passar desapercebido. De uma maneira similar, Humboldt era invocado para criticar as reformas universitárias em curso que enfatizavam a formação profissional e a noção de contrapartidas [output]. A idea de Bildung como um meta plano auto-reflexivo [self-reflective metalevel] foi introduzida pela esquerda para se opor às tendências “tecnocráticas” da reforma universitária. Simultaneamente, também temos de assumir as dessemelhanças decorrentes da diferença cultural e de uma situação histórica significativamente transformada. A esperança por reformas institucionais fundamentais que definiu a década entre 1965 e 1975, na República Federal, não tinha equivalente nos debates norte-americanos dos anos 1980 e 1990. Aqui, o foco se deslocou de reformas institucionais para reformas curriculares e de ensino. O conceito de universidade de pesquisa, no entanto, que sempre foi parte do modelo humboldtiano, não desempenha mais um papel de destaque nas reflexões de Bloom, Nussbaum e Readings. Mais explicitamente, Nussbaum quer revitalizar a ideia de uma educação liberal no contexto do college, enquanto Readings vê a universidade de pesquisa como parte da universidade de excelência contemporânea que comprometeu a noção de pesquisa por torná-la parte da produção industrial. Em resumo, não é o lado do modelo de Humboldt, que os historiadores destacaram tradicionalmente quando escrevem sobre a universidade alemã, que recebe maior atenção. É, antes, a noção de uma comunidade acadêmica crítica, autônoma, voltada para o aprendizado que fica no centro. Se a universidade norte-americana (enquanto uma universidade constituída de college, graduate school e profissional schools) pode ser resgatada de alguma forma (o que Readings considera duvidoso), isso tem de ser feito de dentro para fora. Não há confiança de que reformas estruturais vão conseguir uma transformação de verdade, já que as mudanças estruturais que ocorreram efetivamente nas universidades norte-americanas usaram o modelo de negócios e procuraram a aliança com o mundo comercial. Elas fortaleceram a posição da administração central em detrimento dos docentes e redefiniram a noção de autonomia acadêmica em termos antes financeiros do que intelectuais. Para os proponentes da universidade corporativa, a ideia de Humboldt de universidade é parte de um passado que não pode e não deve ser recuperado, pois, se levada a sério, ela colidiria com o futuro alinhamento da universidade e a indústria a serviço da utilidade social. Para Readings em particular, o modelo histórico de universidade humboldtiana, que inclui a ideia de Wissenschaft e de pesquisa autônoma, não pode ser restaurado, já que a universidade de pesquisa existente está irremediavelmente corrompida por seu entrelaçamento com o mundo corporativo. Ao invés disso, ele concentra-se na noção central de ensino dialógico. O engajamento com o futuro das humanidades da parte de Nussbaum e Readings não inclui o componente de pesquisa da universidade.

Na constelação alemã, os proponentes da modernização no movimento de reforma universitária opuseram-se, implícita ou explicitamente, ao modelo humboldtiano, tendo-o como inapropriado para o futuro. Eles lutaram contra ambas versões, a conservadora e a da esquerda utópica, e voltaram-se para as necessidades da moderna sociedade industrial. Em outras palavras, eles optaram pelo lado profissional. Nós encontramos uma atitude semelhante entre os proponentes da universidade neoliberal nos Estados Unidos? Claro que se deve ter em mente que os proponentes norte-americanos de eficiência e accountability (auxiliada por uma forte administração central) não encararam o legado de Humboldt do mesmo jeito que seus aliados alemães, já que o modelo norte-americano de universidade de pesquisa, apesar de ter uma dívida com suas origens alemãs, privilegia a inovação na pesquisa e formação profissional.37 A clara divisão entre college e graduate school no sistema norte-americano encoraja por certo essa ênfase, já que o aspecto de uma educação liberal pode ser atribuído ao college, deixando a formação científico profissional para a graduate school. Foi Talcott Parsons, em seu estudo clássico sobre a universidade norte-americana, que enfatizou essas diferentes funções, encontrando, através disso, uma maneira de acomodar Humboldt.38 Mas análises mais recentes da educação superior chegaram a conclusões nitidamente diferentes. Na visão de Bloom e Readings, a ideia de uma educação liberal está ameaçada.

Abandonando Humboldt: O modelo neoliberal

            Obviamente, não há lugar para Humboldt na universidade de excelência. Mas a ascensão desse novo tipo permanece um mistério em uma análise puramente fenomenológica, porque o pano de fundo histórico da universidade contemporânea, especialmente seu pano de fundo econômico, permanece largamente inexplicado. Quando se examina a mudança social, política e econômica do meio da educação superior desde os 1980, o fenômeno observado por Readings pode ser entendido como parte de uma nova lógica organizacional.39 A pressão estava vindo de diversos lados, dentre eles, a redução do financiamento estatal [state funding], que resultou em dependência em relação a anuidades e financiamento privado e, portanto, em carecimentos crescentes de doadores e patrocinadores para financiar o crescimento, em geral, e crescimento da pesquisa, em particular. Os contatos mais intensos com o setor privado levaram, por sua vez, a um deslocamento da pesquisa básica para a aplicada. O resultado dessas diferentes pressões era bifronte: ele encorajou, se não tornou necessário, o fortalecimento da administração central no processo decisório em detrimento do poder docente, e ele invadiu a organização do currículo, ditando-o em termos dos supostos [perceived] desejos e preferências dos estudantes cujas anuidades tornaram-se parte crucial do orçamento. Pressionada dessa forma, a própria administração deslocou-se para um modelo de accountability e eficiência emprestada do mundo dos negócios. Ela começou a impor formas de controle de qualidade burocrática que também, e incrementalmente, espalharam-se no interior da esfera do ensino e do aprendizado. Essas medidas eram primeiramente concebidas para assegurar a qualidade do ensino controlando as atividades docentes em sala de aula.

As cores sombrias que Readings utiliza para pintar a universidade neoliberal refletem essa lógica organizacional alterada. Mas, ao mesmo tempo, a universidade de excelência de Readings é um tipo ideal (negativo), no sentido de Weber, a que as universidades presentes se assemelham em diferentes graus. Portanto, as notáveis adaptações que ocorreram nos Estados Unidos não significam que as universidades, como instituições, tenham esquecido a diferença entre sua missão e os objetivos do mundo de negócios. Por conta da sua economia modificada, o perigo para elas jaz, antes, na necessidade de traduzir ideias sobre educação e pesquisa na linguagem do mundo corporativo para atrair o financiamento necessário e o apoio de legisladores. Nessa tradução, as ideias de Humboldt tendem a se perder, uma vez que não há equivalentes econômicos para a noção de comunidade de scholars envolvidos em um diálogo de ensino e aprendizagem.

Essa perda torna-se bastante aparente quando olhamos o ensaio de Eugene W. Hickok de 2006: “Higher Education Needs Reform, too”. Para Hickok, a principal preocupação é a competitividade nacional em termos econômicos.40 Portanto, sua análise enfatiza diversos fatores que carecem, em sua avaliação, de atenção especial, dentre eles o custo crescente da educação superior, a extensão e a profundidade do currículo e taxa de repetência. A resposta é um clamor por mais accountability. A ênfase na accountability está também presente no artigo de Charles Miller e Genri Malandra escrito para a comissão sobre “o futuro da educação superior”. Da evidência estatística disponível, os autores concluem que a educação do college norte-americano é deficiente em muitos aspectos. Em suas opiniões, mesmo questões básicas de proficiência atrapalham o sistema. Mas tem-se de notar que a perspectiva dessa crítica é o mundo exterior, especialmente o mundo corporativo. “Empregadores afirmam que os graduados do college que contratam não estão preparados para o trabalho [workplace], carecendo de um novo conjunto de habilidades necessário para o emprego bem-sucedido e contínuo desenvolvimento de suas carreiras”.41 A resposta a muitos desses problemas parece ser testes crescentes para assegurar que o conhecimento necessário foi adquirido. Novamente, accountability é a palavra chave nesse discurso, porque ela é pressuposta para garantir a bonança da economia nacional. Nas palavras de Frank H. T. Rhores, ex-presidente da Cornell University: “talento... é agora a mercadoria mais procurada no mundo. Rankings internacionais comparando educação podem bem indicar futuros rankings de sucesso das economias nacionais”.42 Suas recomenações enfatizam corretamente a ligação entre a educação básica norte-americana (K-12)43 e a educação do college, mas ele parece favorecer estender os métodos de ensino das escolas para o college. Em outras palavras, para ele o college é uma escola e deve ser tratada como tal. Não se poderia estar mais longe de Humboldt. Nessas afirmações, a universidade é descrita como um local de formação profissional, como uma Fachhochschule para propósitos sociais específicos. No mesmo contexto, a ciência é vista primeiramente em termos de pesquisa aplicada e socialmente útil, o que significa que o trabalho acadêmico feito em humanidades pode nem sequer ser qualificado como pesquisa legítima (como argumentam ocasionalmente observadores internacionais). Assume-se tacitamente que pesquisa deve ser orientada para o mercado, e, portanto, ela não é verdadeiramente discutida no relatório.

Uma indicação do forte ânimo anti-Humboldt da discussão contemporânea é o relatório da Comissão de Spellings. O relatório discute os problemas da educação superior em termos de um modelo econômico em que o investimento tem de ser monitorado. Dentre os termos chaves, nós encontramos corte de custos, aperfeiçoamento de produtividade, custo de gerenciamento, e accountability. O processo de aprendizado é descrito como um valor agregado ao repertório acadêmico do estudante [students’ academic baseline]. De maneira similar, o relatório discute a qualidade do ensino. Depois de uma breve descrição dos bem-sucedidos novos cursos introdutórios, o relatório conclui: “Os resultados falam por si mesmos: mais aprendizado a um custo mais baixo para a universidade. As instituições relatam uma média de 37 por cento de redução de custo e uma aumento do engajamento e do aprendizado do aluno”.44 Nessa equação, a força diretriz é, antes, a redução de custo do que a natureza específica do aprendizado e a mudança do sujeito do aprendizado durante o processo. A intenção do relatório de Spellings pode ser resumida em atualizar o existente sistema norte-americano de educação superior à luz da crescente competição global. Portanto, a tarefa é vista primeiramente como um problema de gerenciamento que só pode ser devidamente abordado depois que os dados faltantes tiverem sido fornecidos e a nova tecnologia (agora disponível) implementada. O resultado esperado será melhores estudantes e graduates segundo os termos do modelo econômico subjacente que mede resultados [achievement]  por meio de testes. O conceito de uma educação liberal não desempenha um papel muito relevante no relatório de Spellings.

O novo perfil definido no relatório de Spellings já tinha sido antecipado na transformação da universidade de pesquisa que começou nos anos 1980 e acelerou-se na primeira década deste século. Enquanto a antiga universidade de pesquisa estava envolvida simultaneamente em ciência básica e aplicada, e, por conseguinte, transferia tecnologia ao setor comercial, na nova versão está fortemente envolvida em pesquisa ligada imediatamente com o mercado: “Universidades tornaram-se agentes significativos de desenvolvimento econômico... elas agora se sentem compelidas a promover condições para a geração de desenvolvimento regional” (KM, 181). Este novo desdobramento implica em uma interação muito mais forte entre pesquisa acadêmica e tecnologia industrial. Nessa relação, no entanto, a indústria tende a ser o parceiro que toma as decisões, restringindo à universidade de pesquisa não somente no que diz respeito à escolha dos projetos de pesquisa, mas também por meio do impacto de uma cultura de pesquisa que não é definida em termos de transparência e abertura de discussão. A nova universidade de pesquisa tem de negociar cuidadosamente a reivindicação de independência e liberdade acadêmicas para seu corpo docente e as necessidades dos seus parceiros comerciais de desenvolver produtos para o mercado. Em que medida a universidade se torna um agente da indústria, e em que medida a universidade não se torna ela mesma um empreendedor? Quando uma universidade observa o seu lugar e o seu papel na região em que está situada, ela percebe que ela é muitíssimo parte da estrutura econômica, com obrigações tanto quanto oportunidades por meio de considerações de pesquisa que beneficiam a região e, dessa maneira, indiretamente, a universidade.

Da perspectiva do modelo humboldtiano, esse desdobramento recente da universidade de pesquisa ameaça claramente a definição fundamental de ciência e sua ligação com o ensino pois  a pesquisa (Wissenschaft) deve ser compreendida como uma investigação autônoma em prol do avanço do conhecimento teórico em meio à comunidade acadêmica. A trajetória da universidade de pesquisa norte-americana contemporânea é anti-humboldtiana. Ela pode lidar com a ideia de Wissenschaft de Humboldt limitando seu uso a certas partes do empreendimento como um todo, a saber, pesquisa pura e ensino (com uma ênfase no currículo próprio ao undergraduate). Para ser bem sucedida, a universidade de pesquisa de hoje tem de viver com uma tensão entre suas próprias ambições empreendedoras, incluindo suas inúmeras ligações com o mundo comercial, e sua identidade mais antiga como uma instituição dedicada ao ensino e à exploração científica. A ameaça, no entanto, não para por aí. A evolução recente da universidade de pesquisa norte-americana também coloca pressão sobre a compreensão de sua missão educacional. Isso se torna claro no teor do relatório de Spellings: sua ênfase em habilidades e testes reflete uma situação em que a academia passou a ser parte de um sistema mais amplo em que a universidade não é mais claramente separada da indústria e do comércio. Educação superior já é, portanto, vista em termos de necessidades do mundo corporativo. Nesse contexto, a visão de Humboldt não pode ser senão um tíbio eco de um remoto passado.

Apesar da severa recessão econômica vigente, engendrando uma crise radical dos mercados financeiros dos EUA, não ter abonado o mundo corporativo, não é de modo algum evidente que a  agressiva crítica a Wall Street em curso vá minar o modelo neoliberal. É mais plausível que possíveis revisões das ideias de Spellings e sua comissão deixem as premissas fundamentais no lugar, já que reparar o estrago causado para a economia norte-americana (e do mundo todo) parece, antes, requerer um melhor modelo econômico do que um forte apoio a humanidades e pesquisa científica pura no contexto de uma universidade crítica e autoreflexiva. O mesmo seria válido para o cenário alemão. O Processo de Bolonha, que resultou na reestruturação da universidade alemã de acordo com ideias anglo-americanas de educação superior, é baseado em um conceito neoliberal de universidade, e não há sinais quaisquer de que a crise atual vá levantar questões sobre a direção das recentes reformas. Especialmente no contexto alemão, em que as conquistas do Humboldt histórico na Reforma Prussiana de 1810 são bem conhecidas, é fácil desprezar a universidade humboldtiana como ultrapassada e inadequada para os desafios dos dias de hoje, e seria difícil extrair e destacar aquelas ideias que ainda são relevantes para a tarefa presente. Somente uma releitura radical e não ortodoxa dos escritos de Humboldt poderiam realizar tal feito.









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ilustração:Rafael Moralez



1             Este artigo foi traduzido do original em inglês: Hohendahl, Peter Uwe “Humboldt revisited: Liberal Education, University Reform, and the Opposition to the Neoliberal University”. In: New German Critique, 113, Vol. 38, No. 2, Summer 2011, pp. 159-196. Agradecemos ao autor do artigo, Peter Uwe Hohendahl, e ao editor da revista, Franz Peter Hugdahl, a gentil concessão dos direitos de tradução e publicação deste texto. Tradução: Ricardo Crissiuma

2            Sylvia Palatschek, “Die Erfindung der Humboldtschen Universität: Die Konstruktion der deutschen Universitätsidee in der ersten Hälfte des 20. Jahrhunderts,” Historische Anthropologie 10  (2002): 183-205.

3             Rüdiger vom Bruch, “A Slow Farewell to Humboldt? Stages in the History of German Universities, 1810-1945,” in German Universities Past and Future: Crisis or Renewal?, ed. Michael G. Ash (Providence, RI: Berghahn, 1997), 3-27

4               Na tradução de alguns termos, como aqui, optamos, excepcionalmente, por manter o termo original em inglês - sempre destacado entre chaves e em itálico - para eventual desambiguação do leitor. Em alguns casos de nomenclaturas próprias ao sistema de ensino norte-americano e termos técnicos já relativamente incorporados ao português, deixamos somente o termo em inglês, em itálico e sem tradução. Todos os demais casos de termos em línguas estrangeiras que aparecem ao longo do artigo - e são em número razoável, dado seu propósito de estabelecer comparações entre o sistema de ensino alemão e inglês - são reproduções diretas do texto original. 

5              Wilhelm von Humboldt, Werke, ed. Andreas Flitner and Klaus Giel,vol. 4 (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1964), 255-66.

6              Eduard Spranger, Wilhelm von Humboldt und die Reform des Bildungswesens (Tübingen:Niemeyer, 1960); Clemens Menzel, Die Bildungsreform Wilhem von Humboldts (Hannover: Schroedel, 1975); Paul R. Sweet, Wilhelm von Humboldt: A Biography, 2 vols. (Columbus: Ohio State University Press, 1978-80); Dietrich Benner, Wilhelm von Humboldts Bildungstheorie: Eine problemgeschichtliche Studie zum Begründungszusammenhang neuzeitlicher Bildungsreform (Weinheim: Juventa, 1990).

7              Karl Jaspers, Die Idee der Universität (Berlin: Springer, 1946). Daqui em diante, citado como IU.

8              Ernst Anrich, Die Idee der deutschen Universität und die Reform der deutschen Universitäten (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1960); Daniel Fallon, The German University: A Heroic Ideal in Conflict with the Modern World (Boulder: University of Colorado Press, 1980), 54-59; Konrad H. Jarausch, “West German Universities, 1945-1989—an Academic Sonderweg?,”in Ash, German Universities, 33-49.

9              Helmut Coing, Über die Ziele des Universitätsstudiums: Vier Immatrikulationsreden (Frankfurt am Main: Klostermann, 1958), 11.

10            Rolf Neuhaus, ed., Dokumente zur Hochschulreform, 1945-1959 (Wiesbaden: Steiner, 1961).

11           Olaf Bartz, Der Wissenschaftsrat: Entwicklungslinien der Wissenschaftspolitik in der Bundesrepublik Deutschland, 1957-2007 (Stuttgart: Steiner, 2007), 50-61.

12            Palatschek, “Erfindung der Humboldtschen Universität.”

13           Helmut Schelsky, Einsamkeit und Freiheit: Idee und Gestalt der deutschen Universität und ihrer Reformen, 2nd ed. (Düsseldorf: Bertelsmann, 1971).

14           Wissenschaftsrat, Empfehlungen des Wissenschaftsrates zum Ausbau der wissenschaftlichen Einrichtungen, 3 vols. (Bonn: n.p., 1965); Bartz, Wissenschaftsrat, 81-89.

15            Ralf Dahrendorf, Arbeiterkinder an deutschen Universitäten (Tübingen: Mohr, 1965).

16            Ralf Dahrendorf, Neue Wege zur Hochschulreform: Differenzierte Gesamthochschule— autonome Universität (Hamburg: Decker, 1967). Daqui em diante citado como NW.

17           Ralf Dahrendorf, Bildung ist Bürgerrecht: Plädoyer für eine aktive Bildungspolitik (Hamburg: Nannen, 1965), 106-7.

18 Wolfgang Schöne, Kampf um die deutsche Universität: Streitschrift anläßlich der am 14.Mai 1966 verabschiedeten Empfehlungen des Wissenschaftsrates zur Neuordnung des Studiums and den wissenschaftlichen Hochschulen (Hamburg: Selbstverlag, 1966).  

19           Axel Schildt, Moderne Zeiten: Freizeit, Massenmedien und “Zeitgeist” in der Bundesrepublik der fünfziger Jahre (Hamburg: Christians, 1995); Jens Hacke, Philosophie der Bürgerlichkeit: Die liberalkonservative Begründung der Bundesrepublik (Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2006), 136-52.

20            Stephan Leibfried, ed., Wider die Untertanenfabrik: Handbuch zur Demokratisierung der Hochschule (Cologne: Pahl-Rugenstein, 1967), 208.

21            Ibid., 292-93.

22            Jürgen Habermas, Kleine politische Schriften I-IV (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981), 134-56. Daqui em diante citado como PS.

23            Jürgen Habermas, Toward a Rational Society: Student Protest, Science, and Politics (Boston: Beacon, 1971), 11. Daqui em diante citado como RS.

24           Hermann Lübbe, “Neo-Konservative in der Kritik,” Merkur 28 (1983): 622-31; Hacke, Philosophie der Bürgerlichkeit, 94-133.

25            Senado corresponde aqui ao mais alto órgão colegiado da estrutura decisória da universidade - equivale, portanto,  ao que algumas instituições preferem denominar de Conselho Universitário (N.T.).

26            Hermann Lübbe, Hochschulreform und Gegenaufklärung (Freiburg: Herder, 1972), 95. De agora em diante citado como HG.

27            Helmut Schelsky, Die Arbeit tun die anderen: Klassenkampf und Priesterherrschaft der Intellektuellen (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1975).

28           Hermann Lübbe, “Die Universität im Geltungswandel der Wissenschaft,” in Die Idee der Universität: Versuch einer Standortbestimmung, ed. Manfred Eigen et al. (Berlin: Springer, 1988), 134.

29           Jürgen Habermas, “Die Idee der Universität—Lernprozesse,” in Eigen et al., Die Idee der Universität, 140. De agora em diante, citado como IUL.

30           Gerald Graff, Beyond the Conflict: How Teaching the Conflicts Can Revitalize American Education (New York: Norton, 1992); John K. Wilson, The Myth of Political Correctness: The Conservative Attack on Higher Education (Durham, NC: Duke University Press, 1995); Jeffrey Williams, ed., PC Wars: Politics and Theory in the Academy (New York: Routledge, 1995).

31           William J. Bennett, To Reclaim a Legacy: A Report on the Humanities in Higher Education (Washington, DC: National Endowment for the Humanities, 1984), 8.

32           Lynne V. Cheney, Humanities in America: A Report to the President, Congress, and the American People (Washington, DC: National Endowment for the Humanities, 1988), 12.

33           Roger Kimball, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education (New York: Harper, 1990), xi. Doravante citado como TR.

34           Allan Bloom, The Closing of the American Mind: How Higher Education Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today’s Students (New York: Simon and Schuster, 1987), 345.

35            Martha C. Nussbaum, Cultivating Humanity: A Classical Defense of Reform in Liberal Education (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997). Doravante citado como CH.

36            Bill Readings, The University in Ruins: Cambridge and London (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996). Doravante citado como UR.

37           Lawrence A. Versey, The Emergence of the American University (Chicago: University of  Chicago Press, 1970); Roger L. Geiger, The Advance of Knowledge: The Emergence of the American University (Chicago: University of Chicago Press, 1986); Geiger, Research and Relevant Knowledge:American Research Universities since World War II (New York: Oxford University Press, 1993).

38           Talcott Parsons and Gerald M. Platt, The American University (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973).

39           Sheila Slaughter and Harry L. Leslie, Academic Capitalism: Politics, Policies, and the Entrepreneurial University (Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1997); Roger L. Geiger, Knowledge and Money: Research Universities and the Paradox of the Marketplace (Stanford, CA: Stanford University Press, 2004), doravante citado como KM.

40           Eugene W. Hickok, “Higher Education Needs Reforms, Too,” Chronicle of Higher Education, March 10, 2006.

41           Charles Miller and Geri Malandra, “Accountability/Assessment” (issue paper), in A National Dialogue: The Secretary of Education’s Commission on the Future of Higher Education (Washington, DC: US Department of Education, 2006), www2.ed.gov/about/bdscomm/list/hiedfuture/reports/miller-malandra.pdf.

42           Frank H. T. Rhodes, “After Forty Years of Growth and Change: Higher Education Faces New Challenges,” Chronicle of Higher Education, November 24, 2006.

43 K-12 é a designação para a soma do ensino primário e secundário nos Estados Unidos. A expressão é fruto da fusão abreviada de Kindergarten com o número da série do último ano do ensino secundário norte-americano, 12 (N.T.). 

44           Margaret Spellings, ed., A Test of Leadership: Charting the Future of U.S. Higher Education; A Report of the Commission Appointed by Secretary of Education Margaret Spellings (Washington, DC: Department of Education, 2006), 21.