POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
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Yves COHEN |
o conjunto significativo da figura do chefe |
“Desta perspectiva, o menor chefe de polícia do Marrocos e César têm a mesma essência.”1
Este artigo tenta identificar um fenômeno contemporâneo que desempenha um papel significativo na história do século XX e, provavelmente, somente deste século: a figura do “chefe”. Trata-se, assim, de reconhecer um elemento presente na composição profunda da vida social. Essa entidade é pouco abordada pelos historiadores e sociólogos porque é transversal a todos os recortes que configuram tais disciplinas, bem como às suas descrições das totalidades sociais. O período estudado vai de 1890 a 1940 e apenas quatro países serão analisados: a França, a Alemanha, a União Soviética e os Estados Unidos2 . Nesses países em que a revolução industrial já alcançara certo desenvolvimento, constitui-se uma figura do chefe que não existia no século XIX. Para atender à preocupação das elites econômicas, políticas, militares e culturais, essa figura vem de certa forma compensar o desaparecimento da classe natural de comando representada pela aristocracia, e dar uma forma geral à ambição presente em todos os setores da vida social, e, sobretudo, nas empresas. Tal ambição dá-se a ver através de formas muito diversas em numerosos meios sociais que não necessariamente mantêm relações amistosas, mas que contribuem cada um com o seu quinhão. Se tal movimento é específico a cada país, ele não se desenvolve sem circulações transnacionais, como as da psicologia das massas, da gestão científica do trabalho e do culto, não tanto do chefe, mas dessa figura mesma do chefe. As palavras para designar “chefe”
Se em três das línguas concernidas nesta pesquisa existe um termo que se impõe para nomear a figura do “chefe” (chef, em francês, leader, em inglês e Führer em alemão), parece que, em russo, é necessário recorrer a duas palavras e falar das figuras do vožd’ (chefe, mais próximo de guia) e do rukovoditel’ (chefe, mais próximo de dirigente). Voltaremos a essa questão mais adiante. Se tais palavras existem há muito tempo em cada uma dessas línguas, juntamente com outros termos que também designam os portadores de autoridade em diferentes domínios e em diferentes níveis, a figura do chefe só se forma no século XX. Numa primeira fase, que vai do final do século XIX aos primeiros anos do século XX, a significação desses termos já se transforma. Em francês, até o final do século XIX, o sentido da palavra chef era, etimologicamente e praticamente, o da cabeça de um corpo. Em 1694, o primeiro dicionário da Academia Francesa enuncia que “o chanceler é o chef da justiça”, que o “primeiro presidente é o chef do parlamento” etc. Isso não concernia os postos intermediários aos quais se aplicavam uma série de outros nomes que não aquele de chefe. Nas empresas, no século XIX, o chefe é o patrão. Em um regulamento de fábrica de 1862 pode-se ler: “Os contramestres ou funcionários responsáveis pelo estabelecimento, representando os chefs e agindo em seu nome, devem ser obedecidos e respeitados como os próprios chefes o seriam”. No entanto, a palavra “chef” serve cada vez mais para designar títulos precisos como os de “ingénieur en chef”, “chef d’atelier” e, à medida que se aproxima o fim do século, “chef d’équipe”.3 Na administração pública construíram-se no século XIX hierarquias administrativas muito precisas em que os “chefes de divisão” e os “chefes de escritório” têm atribuições bem definidas. Essa construção leva, no começo do século XX, à concepção do “poder hierárquico” como uma sequência de “chefs” que emergem a partir do ministro.4 Reservada até então às mais altas posições, a palavra “chefe” se impõe lentamente para todos aqueles que têm funções de comando intermediário, por menores que elas sejam e por mais próximas que estejam da “linha de frente”. Mas em todos esses casos, somos remetidos a um estatuto individual e não a uma categoria geral dos chefes. Salvo na expressão dos operários grevistas que não se intimidam por essas distinções e gritam, no final do século XIX, “Abaixo os chefes!”, incluindo todos na mesma categoria. A palavra “chef” perde seus predicados em parte graças a essa prática semântica operária.5 Mas é no exército que a palavra chefe alcança a maior generalidade. O general Foch fala, em 1903, de um “chefe localizado em um qualquer nível da hierarquia”.6 /p> Pode-se dizer que o destino da palavra chefe como termo geral começa com a publicação, em 1895, de um livro que encontra imediatamente um grande sucesso internacional, Psicologia das multidões, de Gustave Le Bon. Le Bon propõe soluções para “não ser governado demais [pelas multidões]”.7 O termo que ele emprega é, sobretudo, aquele de condutor (“meneur”). Mas para um engenheiro ou um oficial, é difícil se reconhecer em tal termo porque o condutor, segundo Le Bon, é quase um psicopata que imprime suas convicções às multidões que manipula. É, no entanto, bem aí que se encontra o lugar do “chef”, isto é, no controle e na direção das multidões, sendo que na perspectiva de Le Bon “multidão” designa qualquer grupamento humano. O chef adquire então uma dimensão genérica que vale para todos os níveis. No caso da Alemanha, a palavra Führer se impõe quando pensamos no chefe alemão do século XX. No entanto, até o começo deste século ela designa, ao contrário de “chef” em francês, apenas pequenas funções: a de guia de viagem (tanto o personagem quanto o livro) ou a de condutor de uma máquina. Para falar de um chefe o termo Leiter domina. Além disso, o modelo monárquico é ainda muito proeminente. Em 1868, a primeira obra alemã sobre a gestão de empresas serve-se desse modelo. “Apenas um deve reinar” porque a monarquia é, segundo o autor, a única forma constitucional justificada para a empresa. “O monarca deve ser o empresário ou bem aquele que o substitui. Seu olhar e sua vontade devem tudo penetrar”.8 Ora, esse modelo é invertido nos primeiros anos do século XX. A discussão moderna sobre a gestão científica do trabalho do estadunidense Taylor desempenha um grande papel nesse processo, mas é sobretudo a evolução política que imprime sua marca. Os chefes não devem mais se espelhar no Kaiser, mas é o Kaiser que deve ser, de agora em diante, um bom Führer para o desenvolvimento da Alemanha. Para o vigésimo quinto aniversário de Guilherme II, um intelectual declara: “Nós solicitamos um Führer pelo qual atravessaremos o fogo”.9 Em alemão, scientific management se traduz por wissenschaftliche Betriebsführung e é esse termo de Führung - a orientação ou a gestão - que se aplica à condução da empresa. A discussão que atravessa o país a respeito dos termos de Führer e de Führung é, como se vê, muito anterior à aparição do nazismo. Existe, com efeito, uma transformação semântica e, tal como na França, ela está ligada ao crescimento econômico e industrial e aos problemas políticos que ele coloca às elites de toda natureza. Na Rússia, percebe-se nesse momento a fragilidade do poder czarista e tenta-se pensar no que pode permitir ao país escapar de suas incertezas. Do lado do poder, procura-se evitar não apenas a revolução, mas também a reforma. Nesse país que reclama da falta de homens práticos, é justamente a formação de novas gerações de chefes que parece ser a solução mais promissora tanto para a política quanto para a economia. Um dos principais homens de Estado descreve, em 1896, quais são os chefes de que o Estado russo tem grande necessidade e quais deveriam ser sua educação e suas qualidades.10 Seu livro é traduzido para o inglês em apenas dois anos mais tarde. Estamos mais próximos, aqui, dos chefes que dirigem, os rukovoditeli. Mas do lado da oposição ao poder e da revolução, é o chefe que guia que emerge, tão importante quanto aquele que dirige. O livro fundador do bolchevismo é escrito em 1902, O que fazer?, de Lênin. Ora, trata-se de um livro sobre o chefe e o comando. Ele diz o que deve ser um social-democrata e este deve ser, em primeiro lugar, um chefe. O termo mais empregado é aquele de vožd’, que equivale ao de leader, de Führer ou de Duce em italiano, e secundariamente ao de “rukovoditel’”. Para Lênin, o partido social-democrata deve ser não somente uma organização de militantes, mas, uma “organização de chefes”.11 A língua inglesa conhece uma inflexão do mesmo tipo no mesmo período. Os Estados Unidos, evidentemente, se servem dessa língua na qual a palavra leader existe há muito tempo, mas não o termo leadership (liderança), que só se instala verdadeiramente no final do século XIX. O que se reforça, então, é o discurso que os americanos têm sobre si mesmos e sobre o seu país, fabricado por líderes. A partir daí a preocupação com a liderança se manifesta em todos os domínios, tanto na educação quanto na política, na indústria como no exército. Para o autor da primeira tentativa de escrever uma psicologia da liderança, em 1904, esta é, em toda a sua generalidade, “o fato maior da vida social”.12 A liderança do país, das empresas e de qualquer grupo, assim como os leaders em todos os domínios tornam-se, desde antes da Primeira Guerra Mundial, objetos de uma discussão comum e cruzada da qual o futuro presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, é um dos principais protagonistas. Taylor, que constrói uma teoria perfeitamente determinista da organização científica do trabalho, a qual busca escapar à influência dos indivíduos, também participa paradoxalmente desse vocabulário. Por ocasião de uma conferência em Harvard em 1909, ele exalta “os raros dons dos grandes condutores de homens que apelam ao mesmo tempo à admiração, ao amor, ao respeito e ao temor”. Harvard, justamente, é qualificada por um outro autor como “mãe dos líderes”.13 Vemos formularem-se, nessa instituição, muitas das principais proposições sobre a liderança. Nos Estados Unidos, a instituição escolar será, desde muito cedo, considerada como o lugar da formação de líderes desde a primeira infância. Se a palavra leader pertence de fato à língua inglesa, aquela de leadership é antes americana. Conceber a figura A Primeira Guerra Mundial e as revoluções que ela engendra irrompem sobre essas premissas e reforçam um movimento já claramente desenhado. A figura do chefe então se cristaliza. Ao menos na França, ela é fruto de esforços deliberados. A partir do momento que se forma um “chef”, termo empregado sem predicado, ele encontra sua encarnação. A figura do chefe que já existia é individual. Na verdade, são antes figuras de chefe. A de Napoleão, por exemplo, domina amplamente na França, como a de Bismarck na Alemanha ou aquelas dos grandes presidentes nos Estados Unidos. A guerra promove outras dessas figuras como, na França, os marechais Joffre e Foch e, na Alemanha, Hindenburg. O modelo absoluto da figura individual é Moisés. Um historiador francês bem conhecido da metade do século XIX, Sainte-Beuve, fala dele da seguinte maneira: “Moisés não é apenas um homem, um personagem real, é uma figura: ao mesmo tempo em que ele profetiza o Cristo e o Messias, ele antecipa alguns de seus sofrimentos, de suas situações e de suas agonias dolorosas”.14 Moisés é uma figura porque ele anuncia Jesus. A figura do chefe que se desenha por ocasião da guerra não é aquela de indivíduos, mas de um tipo social. É assim que um psicólogo francês se coloca explicitamente como projeto forjar a figura do chefe ou, mais exatamente “o tipo humano: chefe”. Ele escreve, no primeiro artigo francês sobre “A psicologia do chefe”, “Nós queremos atingir um objetivo mais geral, criar uma abstração, o chefe, na qual serão reunidas as características comuns aos diversos níveis e reagrupadas as qualidades dissociadas que se atribuem ao chefe para perceber, na sua unidade, o tipo humano: chefe”. O objetivo é a descrição de uma categoria geral de chefe. Outros autores, mais próximos das teorias modernas da gestão, colocam-se no mesmo momento a mesma tarefa de esboçar a “fisionomia dos chefes”, no caso de uns, ou de proceder à “elaboração da figura moderna do chefe de empresa”, no caso de outro.15 A partir daí, essas pessoas se propõem a confeccionar uma ferramenta de estruturação do social. O que elas mesmas denominam uma “figura” ou uma “fisionomia” não se reduz à palavra chefe e aos seus diversos equivalentes nas diferentes línguas. A figura do chefe é um complexo significante que comporta, além do nome, componentes de ordens variadas: imagens, representações, “caracteres comuns”, qualidades (ou “traços”), comportamentos, signos, uma relação consigo mesmo como chefe e certamente ainda outros elementos.16 A figura tem diversas faces. Importa notar, certamente, que essa figura do século XX forma-se em um novo regime de imagens. A conduta das massas que a modernidade identifica como um fenômeno que a constitui exige que se retraduza o retrato dos reis em retratos de chefes e que se tire todo partido da reprodução mecânica das imagens.17 A imagem de um chefe, fotografado ou filmado, não mostra as suas enfermidades: Stalin tinha vergonha do seu braço esquerdo mais curto por conta de um acidente quando criança, bem como de seu rosto marcado pela varíola; o conselheiro de relações públicas de Franklin Roosevelt orientou-lhe a jamais ser fotografado em sua cadeira de rodas. O olhar se lança ao horizonte, na direção do futuro em que todas as promessas do presente se realizarão. O chefe é mostrado na sua relação com as massas: Roosevelt ao microfone nos “bate-papos ao pé da lareira” (fireside chats), Stalin no mausoléu de Lênin apontando um corajoso proletário marchando ou uma jovem pioneira, Hitler com a pá na mão na abertura de um canteiro de obras de uma rodovia, Mussolini de frente para uma multidão reunida. Os chefes de outros níveis têm suas fotos estampadas nos quadros de honra ou nas páginas dos jornais “corporativos”. A participação das imagens na construção da figura do chefe mereceria muitos volumes de história comparada, transnacional e transsetorial. A “figura” se aproxima da “persona” que os historiadores das ciências utilizam para falar do erudito, do homem de ciência, da “scientific persona” que se projeta no Ocidente desde o século XVI. Persona, como no caso do chefe, não designa nem uma profissão, nem um “papel”, mas uma “fisionomia reconhecível”.18 Como a figura do chefe, a scientific persona é um complexo significante. Essa figura tem um nome, o de cientista (scientist), que a opõe ao nome da persona que a precede historicamente, isto é, o “filósofo natural” (natural philosopher). Essa fisionomia do erudito também é formada por traços de comportamento padronizados (como a atenção ao objeto, a humildade, o desinteresse), guardadas as especificidades dos diferentes contextos culturais. O termo persona é melhor do que o de “figura”, mais corrente no linguajar dos atores como no das ciências sociais, por chamar a atenção para a importância do envolvimento pessoal. A palavra latina persona significa máscara (de teatro). A persona do chefe seria uma máscara? O estudo da sua “figura” apresenta uma coleção de traços (sobretudo positivos) que se impõem às pessoas, servindo para que estas definam a si mesmas no que têm de essencial. Não mais que a scientific persona, a figura do chefe não é um “papel” como aqueles entre os quais circulamos ao passar de um contexto a outro segundo o sociólogo americano Erwin Goffman.19 A figura de chefe supõe realizar um trabalho sobre si mesmo para que se consiga desempenhar melhor a sua atividade pública. Essa figura tem características coletivas e contribui fortemente para compor a persona; mais que isso, para compor essa personalidade mesma que é objeto de múltiplos cuidados psicológicos e de interesses literários nesse mesmo período. Os chefes são convidados a escutar conferências, a participar de formações especializadas ou a ler livros sobre a personalidade. A partir desse momento, não parece que essa persona contemporânea seja equivalente à persona medieval: ela não constitui uma máscara sob a qual um eu verdadeiro existiria, mais ou menos dominado. Essa fabricação da relação com os outros é uma fabricação de si e não de uma ilusão. Também não estamos, portanto, diante da persona tal como Jung a define: “uma máscara de espírito coletivo, uma máscara que disfarça a individualidade”.20 A persona adotada - como a de chefe - é uma parte da verdade das pessoas, uma verdade ela mesma compósita, múltipla e ao mesmo tempo única. É a mesma coisa para a figura. Esta não é exterior às pessoas. Quando as pessoas se tornam chefes, elas adotam ao mesmo tempo tal figura. Mas podemos acompanhar a contribuição de cada país à elaboração de uma figura. Existem fortes especificidades locais nas figuras de chefe que se constroem em cada país, mas elas não são menos marcadas por uma cultura internacional do comando que circula de modo particularmente intenso. Com o florescimento dos discursos científicos e políticos sobre o chefe, o comando e as multidões em toda uma série de países, formou-se em escala mundial, a partir do final do século XIX e começo do XX, um vasto domínio de circulação21 em que se encontram os leitores de Le Bon, de Lênin, de Taylor do psicólogo francês Binet, do teórico francês da administração, Fayol, de Stalin, de Max Weber, dos psicólogos sociais americanos etc., todos contribuindo de modos mais ou menos diretos para uma concepção de chefe.
As qualidades do líder estadunidenseNos Estados Unidos, desenvolvem-se rapidamente profissões inteiras que têm a tarefa de trabalhar sobre as qualidades do chefe, sua seleção e sua formação. Entre estas estão os educadores, os psicólogos, os sociólogos, os pensadores da gestão, os políticos. Eles criam as formações em leadership nas universidades e as management schools. Desde 1920, diz-se aos contramestres que eles devem ser líderes e propõem-se a eles formações específicas para que se aproximem apropriadamente da figura. Os Estados Unidos são o principal ateliê em que se definem as qualidades do chefe ou, dito de outro modo, os “traços” de sua “personalidade” que contribuem em primeiro lugar para compor a figura do leader. Ora, essas qualidades podem ser muito variadas. De fato, nenhuma lista comum e única chega a se construir a partir das publicações e das trocas. Para um autor, “algumas das qualidades ou características que parecem ser a base do talento para a liderança (leadership ability) são a personalidade, a perseverança, o tato, a coragem, a iniciativa, a decisão e a inteligência”. Para outro, são a “iniciativa, o autocontrole e a autonomia”. Para o terceiro, as jovens líderes podem ter as qualidades de serem confiáveis, amigáveis, ter uma “personalidade magnética”, iniciativa, uma aparência de comando etc. Para uma quarta, que fez pesquisa num acampamento de meninas, são “a saúde e a vitalidade, a lealdade e o entusiasmo” que surgem mais cedo.22 Parece-me que esta constatação basta para caracterizar a dispersão das categorias descritivas utilizadas. Ao contrário, os estudos sobre as qualidades que definem o seguidor, aquele que obedece (follower) são muito mais raros. A followership vale para aquele que “reconhece a liderança responsável, confere todo o valor à opinião dos experts, respeita a experiência passada, sacrifica a si mesmo em nome do dever, coopera com alegria para o bem do grupo, trabalha fielmente nas comissões” e, é claro, reconhece as autoridades.23 As qualidades que caracterizam o líder são, portanto, um grande canteiro aberto em todos os domínios... Masculino? Feminino? Um dos principais autores escreve que:
Mas não podemos nos enganar: a figura do leader é referida constantemente no masculino, e se passa o mesmo nos outros países para os seus chefs, Führer e voždia. Periodicamente, educadores e psicólogos especializados reconhecem a frágil confiabilidade “científica” dos resultados obtidos nas pesquisas sobre a figura do chefe e suas qualidades. Trata-se de uma constatação bem estabelecida às vésperas da Segunda Guerra Mundial.25 Mas pouco importa, é preciso dizer aos líderes que eles o são. Os traços da figura do líder, mesmo que escapem a toda definição científica, lhes fornecessem um espelho reconstitutivo. Edward Bernays, o inventor e grande mestre estadunidense das relações públicas, não se engana quanto a isso. Para ele “a personalidade é um instrumento de propaganda” e constitui uma função constante do conselheiro em relações públicas valorizar de modo vivo a personalidade dos que encarnam os grupos que eles dirigem e, afirma ele, “a opinião o exige instintivamente”.26 A eleição de Franklin D. Roosevelt à presidência dos Estados Unidos em 1932 testemunha bem essa nova cultura. Nos doze minutos da sua primeira comunicação ao povo norte-americano, em março de 1933, no momento mais crítico da Grande Depressão, o termo leadership aparece sete vezes, por exemplo: “Eu assumo sem hesitação a liderança desse grande exército do nosso povo que se consagra a um ataque disciplinado dos nossos problemas comuns”. Não se viu nada parecido nos pronunciamentos inaugurais dos presidentes anteriores. O leader estadunidense é uma das características do país e da sua identidade. O desenvolvimento de uma cultura da liderança corresponde ao momento em que este país apresenta-se como candidato à hegemonia mundial. Ela é indissociável desse projeto. Pensar em termos de leadership em qualquer país do mundo remete assim invariavelmente à referência e à política estadunidense. Na França Na França, as qualidades do chefe não são objeto de pesquisas conduzidas por psicólogos experimentais que tentariam, como nos Estados Unidos, calcular a parte de umas e de outras e suas correlações. Alguns termos diferentes dos usados para descrever as qualidades estadunidenses afloram nos textos franceses, como aqueles de caráter e de exemplo a dar, mas outros também são comuns. Assim, um dos principais pensadores da administração, do comando e do chefe, Henri Fayol, quer, em primeiro lugar, que o chefe tenha “saúde e vigor físico” e, em segundo, inteligência e vigor intelectual. Em seguida aparecem as qualidades morais, que são a vontade refletida, firme e perseverante; a atividade, a energia e mesmo a audácia se necessária, a honestidade, a iniciativa, a coragem de assumir responsabilidades, o sentimento do dever e a preocupação com o interesse geral. O caráter, muito estimado pelos militares, não está presente porque Fayol o considera muito impreciso e pouco apto a reagrupar os elementos precedentes. Em quarto lugar, convém que o chefe tenha uma “sólida cultura geral”. É preciso também que ele saiba administrar e que seja competente em seu domínio.27 O grande exemplo do chefe francês, sua grande figura singular é, durante esse período, incontestavelmente Lyautey, o oficial tornado marechal, artesão da colonização principalmente na África e um dos primeiros a pensar o chefe no texto que ele publica em 1891 sobre “o papel social do oficial”. Pensar sobre o chefe na França é pensar em Lyautey. Neste país, o ser-chefe tem interesses comuns com a humanidade. Em primeiro lugar, diferentemente da proposição de J.-M. Lahy, para quem nem todos são chefes porque ser um chefe é pertencer a um tipo humano particular, diz-se frequentemente que cada um pode ser chefe. Um antigo capelão das trincheiras e futuro responsáveis pelos escoteiros da França assim o anuncia: “Nem todos serão diretores gerais, mas todos nós poderemos ser chefes, nem que seja chefe de esquadrão, chefe de equipe ou chefe de família. Para falar sinceramente, ninguém escapa a isso” 28 . A proposição vai ao encontro de várias outras escritas por diferentes autores. Ser um chefe é ser um homem e reciprocamente. Uma das obras francesas mais reputadas sobre o chefe, escrita por um grande engenheiro - e leitor de Lyautey -, Raoul Dautry desenha o retrato do homem do seu tempo: Um homem pode ser um verdadeiro chefe mesmo que exista sob suas ordens apenas dois operários sem qualificação. Não basta ser um general para ser incontestavelmente um chefe. O chefe é aquele que permanece inteiramente fiel às responsabilidades da sua função, aquele que a anima suscitando nela iniciativas, que realiza os ritos com amor, que, no desenvolvimento da sua tarefa, sabe entrar numa relação de amizade com os outros homens. Sobre este, não é nem mesmo preciso dizer que é um chefe. Ele é um homem. Um chefe é apenas aquele que, em qualquer nível hierárquico, assegura totalmente o seu ofíciode homem. Mesmo Marc Bloch, que encontrou um chefe notável durante a “Drôle de guerre”, comenta: “Fiz a descoberta de um homem”.29 A figura francesa do chefe é, assim, naturalizada. Esse pensamento amplamente compartilhado do homem como chefe - homem masculino - data essa época que é muito difícil de ser representada hoje, mesmo que tenham se passado pouco mais do que setenta anos. SoviéticosA figura stalinista do chefe é o chefe autorizado a sê-lo. Ela não comporta a menor reserva que viria da propensão libertária do marxismo que, nesse caso, não existe. Ela pode se dividir em duas. Existe, em primeiro lugar, o chefe de empresa, o rukovoditel. Esse chefe emerge do comando único que Lênin havia definido desde 1918. Segundo ele, se os operários têm todos os direitos na política, no trabalho eles devem obedecer rigorosamente ao chefe: É preciso aprender a conjugar o espírito democrático das massas trabalhadoras, tal como ele manifesta-se nos meetings, isto é, impetuoso, transbordante como uma inundação de primavera, com uma disciplina de ferro diante do trabalho, com a submissão absoluta durante o trabalho à vontade de uma única pessoa, o chefe soviético (soveckogo rukovoditelâ).30 Como esse chefe é funcional e necessário à construção do socialismo, ele pode ter qualidades. O governo estalinista relança o chefe único após o período da NEP, quando estava integrado ao “triângulo” composto pelo diretor de fábrica ou da administração (1), pelo secretário do partido (2) e o do sindicato (3). A diretiva de setembro de 1929 que reinstaura o “comando único” na economia desencadeia grandes discussões nas empresas. O desafio consiste em evitar a ingerência direta do partido e do sindicado nas decisões de gestão. A realidade das práticas é, evidentemente, diferente da regra. Se para as maiores empresas e as construções mais importantes dos primeiros planos quinquenais, o chefe operacional (o diretor) assume claramente a precedência sobre o responsável do partido no mesmo nível, o mesmo não ocorre necessariamente no caso dos diretores de empresas mais modestas. Em todo caso, o diretor é portador de “direitos”, de autoridade. A tal ponto que, no congresso do partido de janeiro de 1934, o dito “congresso dos vencedores”, os grandes chefes do país e a Pravda pedem que os diretores se apresentem a partir de então como chefes, e que tenham, portanto, suas qualidades, particularmente a de ter “avtoritetnyï”, isto é, ser competente em seu domínio. A figura do chefe econômico e administrativo exige que ele (também nesse caso, é extremamente raro que seja “ela”) seja treinado, experimentado, competente e atento ao seu pessoal e capaz de responder instantaneamente a toda injunção da instância superior. A figura do chefe político é um pouco diferente. Seus primeiros traços são posicionais. Ele deve colocar-se à frente das massas, estar na vanguarda, e não ser seguidor. Em uma carta de 1934, Stalin chama a atenção dos membros do comitê político, a mais alta instância do partido comunista, sobre o que poderia ser o modelo do chefe. Os negócios vão muito mal na região de Cheliabinsk, onde um certo Ryndin é o secretário do partido. Stalin escreve que “Ryndin é um demagogo de baixa vontade, ele se conforma aos seus colaboradores, ele se deixa levar, não sabe os dirigir, os conduzir, ele tem medo de ofendê-los”.31 O chefe deve conduzir e não permanecer atrás, ele deve ter essa coragem de não ser complacente com seus próprios subordinados. Inúmeras são as menções à necessidade de chefes “fortes” e a denúncia dos “fracos” (sem falar dos oportunistas): essa força deve ser orientada em direção aos inimigos sempre ameaçadores, mas também em direção aos amigos, porque eles estão sempre prontos a ceder aos inimigos.32 Quanto às suas qualidades, a figura do chefe político oferece a imagem reversa da figura liberal. Stalin a desenha em pessoa e pensando na sua própria pessoa. Ele é aquele a que chamamos oficialmente o Vožd, qualificação que havia sido concedida antes, ainda que mais discretamente, a Lênin. Para Stalin, não se trata de modo algum de ser um “homem excepcional”. Na verdade, as massas promovem mesmo pessoas comuns!”. Stalin pronuncia essas palavras em uma conversa en petit comité com os seus companheiros mais próximos em 07 de novembro de 1937, após as festividades do 20° aniversário de outubro, momento que é, também, o mais intenso da repressão conduzida no país contra toda uma série de grupos sociais e nacionais e, ao mesmo tempo, contra amplos setores do partido comunista e outras organizações públicas. Isso significa que as proposições de Stalin têm um sentido muito particular nesse momento de grande extermínio. O alvo dessas críticas é principalmente formado por trotskistas, essas “figuras” que se apoiavam apenas em homens de elite. Stalin opera, nesse ponto, uma inversão essencial. Ao descrever a si mesmo e seus companheiros próximos como “ordinários”, ele desenha a boa figura do chefe para o movimento comunista inteiro. O chefe comunista é justamente aquele que não tem as qualidades que em breve denominaremos “carismáticas”. Por exemplo, ele não necessariamente sabe falar de modo ardente: “Comparado ao talento oratório deles, eu sou um orador pobre”, diz Stalin pensando em Trotsky e em seus supostos amigos. O que se torna o máximo para um dirigente comunista é precisamente a ausência da melhor qualidade do chefe liberal. É a lógica mesma do desdobramento do culto comunista do chefe que foi, muitas vezes, nomeada de culto à personalidade. O culto de Stalin não para de se desenvolver na URSS a partir de 1929. Mas ele é negado, pois não pode haver culto da personalidade e, aliás, a própria modéstia de Stalin e dos dirigentes comunistas o proíbe. Stalin ataca explicitamente a possibilidade de um culto à personalidade: “As personalidades aparecem e desaparecem na história, o povo permanece e ele não se engana jamais […] A personalidade não é o essencial”. Desde então, todo chefe stalinista tem como primeira qualidade a de ser modesto. Para melhor ser chefe, é preciso tomar emprestada a velha figura operária do antichefe, isto é, de um chefe diferente daquele que protege os lucros e os projetos capitalistas, cortês, atendo, afetuoso e paternal, mas implacável com o inimigo que ele “desmascara” dentro ou fora do partido. A figura do chefe não é menos imponente no comunismo no poder do que em outros lugares. Ela chega mesmo a ser provavelmente mais estruturante do social do que em um país liberal onde, mesmo se ela é por vezes mais hesitante e pouco clara, a busca de conciliação entre o chefe e a democracia é constante, como o mostram as publicações e os debates sobre essa questão que ocorreram nos Estados Unidos e na França a partir do início do século XX. As formas alemãs e hitleristas da figura do chefeDe todo modo, no período entre guerras, essa capacidade de conciliar a figura do chefe com a democracia perdurou na Alemanha durante os menos de quinze anos da República de Weimar, até que uma outra fórmula, a de que a democracia é inimiga radical do Führer, se tornasse vitoriosa, lançando a Alemanha no crime absoluto e na destruição através de uma guerra mundial que ela mesma provocou. A figura do Führer desenvolve-se ao mesmo tempo em dois lugares, o da política e o da indústria, mas também em dois tempos. O tempo do debate público durante a República de Weimar fornece a imagem de uma Alemanha que é apenas mais um dentre os vários países em que a obsessão do chefe e dos chefes se desenvolve. A vitória de Hitler em 1933 lança o país no reino extremo de uma figura do chefe não apenas exacerbada, mas localizada no coração de tudo o que é essencial. A partir do momento em que Guilherme II aparece como um frágil chefe de guerra em 1917 impõe-se a necessidade de uma república constitucional. Em numerosos pontos do espectro político a mesma coisa é dita: faltou à Alemanha um Führer. É nesse contexto que aparece a proposição de Max Weber. Weber intervém ao mesmo tempo na política e na sociologia e, nos dois lados, ele confere prerrogativas ao chefe. Além disso, ele propõe um quadro interpretativo muito forte para o debate sobre a autoridade e sobre o chefe em curso não apenas na Alemanha, mas também em outros países. Esse é o momento em que ele aperfeiçoa sua sociologia da dominação e, ao mesmo tempo, participa de modo intenso da cena política. Pouco confiante na capacidade da democracia alemã permitir uma “seleção de chefes” satisfatória, Weber propõe um presidente eleito diretamente pelo povo, autorizado a dissolver o parlamento e a tomar medidas de exceção. Aí está o lugar imediato para o chefe carismático que ele define politicamente ao mesmo tempo em que o pensa sociologicamente. Para Weber, a democracia não é a escolha: Ou bem a democracia admite à sua frente um verdadeiro chefe e, por consequência, aceita a existência de uma “máquina”, ou bem ela renega os chefes e recai, então, sob a dominação dos “políticos profissionais” sem vocação que não possuem as qualidades carismáticas profundas que constituem os chefes.33 O chefe weberiano tem, portanto, as qualidades que o tornam carismático. Em uma passagem, essas qualidades são a vontade e a potência da palavra demagógica e, em outra, as três “qualidades” maiores do chefe político são a paixão, o senso de responsabilidade pessoal e a “capacidade de visão”.34 Importa notar que naquele momento e até depois da Segunda Guerra Mundial a noção de carisma é quase restrita à sociologia alemã. É apenas após essa guerra que sua capacidade de nomear a figura do chefe se desenvolve ao mesmo tempo no seio da disciplina sociológica e no discurso ordinário, primeiramente nos Estados Unidos. Atualmente, não é possível falar de um líder sem acrescentar “carismático”. Antes da Guerra era suficiente dizer “leader”, “chef” ou “Führer” para obter as mesmas conotações que a expressão “chefe carismático” fornece hoje. No âmbito da indústria, ao lado dos conceitos de racionalização e organização do trabalho, desenvolve-se a noção de “conduta de homens” (Menschenführung). Do que se trata? O Menschenführer, em qualquer nível que seja, deve ser um chefe, um leader. Suas tarefas são, em primeiro lugar, políticas. Elas consistem em assegurar a coesão do corpo social e restaurar uma cooperação pacífica no trabalho, expulsando o espírito de luta. Elas consistem também em gerar certo número de técnicas sociais como a seleção por testes, a orientação profissional, o aprendizado e, em um registro mais geral, a política social. Os principais institutos responsáveis pela formação de profissionais para o patronato alemão resvalam no nazismo a partir de 1933. A partir de 1934, a lei faz oficialmente do gerente um Betriebsführer, quer dizer, o Führer da firma. Esse Führer deve ser o primeiro portador da “ideia nacional-socialista do trabalho”. Suas qualidades tornam-se então propriamente magnéticas: ele deve acreditar nessa ideia, “ele deve ser exemplo dela e levá-la até o último homem da sua equipe” 35 . Seu instinto e seu sangue o conduzem em todos os seus atos e não a sua função nem qualquer técnica administrativa. O trabalho sobre si para aperfeiçoar a sua personalidade é seu primeiro dever. Vemos, novamente, em outro contexto, emergir a temática da personalidade. Ao se transformar em um polo magnético, o Führer da empresa tem como única fonte de legitimidade sua relação com o Führer alemão. O princípio do Führer, que se torna a lei social, implica que cada alemão possa considerar-se como um Führer com a condição de que ele aceite uma submissão total a Hitler. Hitler não representa o povo: ele é o povo e o povo alemão, excluindo qualquer outro. Ele não pode ser o Führer de pessoas que pertencem a sub-raças. Assim, a principal qualidade de todo pequeno ou médio Führer é a de “ir ao encontro do” Führer, fazendo-se seu intermediário. A figura do chefe nacional-socialista, que é durante doze anos a figura alemã, tem os traços do Führer. Inseparável de Hitler e da Alemanha, ela não pode comparar-se, a partir daí, a nenhuma outra. Ela desmorona ao mesmo tempo em que a Alemanha nazista, levando consigo a própria palavra Führer que permanece ainda muito afetada por esse percurso trágico. Dos títulos de nobreza aos grandes homens e por fim aos chefes Além dessas emergências dispersas e quase independentes, ainda que conectadas, a figura do chefe é objeto de operações idênticas em muitos países. Tal é o caso quando se separa o que é dito do “grande” do que é dito do “chefe”. O esforço do século XVIII tinha sido o de permitir que a grandeza se libertasse da lógica estamental. Após a separação, por vezes violenta, dos nobres e dos grandes, vem o momento de se separar os grandes e os chefes. O discurso comum dos operadores dessa distinção consiste em dizer que a autoridade moral não supõe necessariamente o comando: “Nós devemos fazer uma distinção entre a eminência intelectual e a liderança (leadership)”, escreve um psicólogo americano, mobilizando termos próximos aos de outros autores franceses. Segue-se uma definição aparentemente forte da liderançaque significa “o contato direto, face a face, entre os chefes e os que o seguem: é o controle social pessoal” 36 . O “face a face” é a característica distintiva do comando? Ainda que não seja novo, um dos maiores problemas dos chefes e líderes do século XX é o comando e a influência à distância. Isso é tão válido para o gerente de empresa quanto para o oficial e o político e, dentre os políticos, tão válido para o chefe democrático quanto para o ditador. Para o controle à distância, existem técnicas intelectuais, como o gráfico ou o organograma que servem para representar os processos e as organizações e que atuam conjuntamente com uma outra forma de representação supostamente exata, a fotografia. Para favorecer o contato o mais direto possível com as massas, os chefes do século XX dispõem ainda de novos recursos técnicos comuns como o telefone, a rádio e o cinema. A manifestação de massa é fortemente apreciada pelos regimes fascistas e o poder stalinista, mas ela é pouco corrente nos Estados Unidos. Franklin Roosevelt, que se apresenta explicitamente como um leader pra os Estados Unidos e emprega muito conscientemente todas as técnicas modernas da liderança, é o primeiro a utilizar de modo sistemático as transmissões radiofônicas “ao pé da lareira”. Na falta do contato direto, físico, pessoal, ao alcance da voz e da vista, a rádio lhe permite resolver o problema do chefe distante, quer dizer, ela transporta a sua presença para longe, e até cada pessoa em particular, assim como outros se servem do telefone ou da carta manuscrita. O chefe do século XX, figura da modernidade, procura também distinguir-se do mestre brutal e do homem com mão de ferro das épocas precedentes. Classe?Se a figura do chefe é aquela de um tipo social, podemos ir mais longe e dizer que se trata de uma classe? Isso parece difícil, uma vez que um chefe pode ser ao mesmo tempo um pai e um patrão, um padre e um professor. Não vemos desenhar-se uma classe nem pelas relações econômicas claras nem por relações de poder delimitadas. O que poderia ser comum é uma cultura da autoridade e um culto dos títulos. Mas mesmo que os chefes tenham todos uma posição de autoridade que supostamente os levaria a compartilhar a cultura correspondente, isso não basta para fazer deles uma classe. Dada a sua generalidade, a figura atravessa todas as fronteiras sociais e tem, para inúmeros autores, a vocação de unir todo o corpo social, ainda que se excluam de fato implicitamente, salvo exceções, as mulheres e, por vezes, os não-nacionais ou os anti-nacionais. É certo que por meio dessa própria transversalidade busca-se promover o espírito de comunidade e não o espírito de luta social por direitos. Nessa perspectiva, aliás, a União Soviética está no mesmo tom que os países liberais e fascistas. As doutrinas do chefe que aí se desenvolvem visam igualmente desqualificar toda política, privar todo conflito social de justificação, já que a promoção dentro dos quadros do regime estaria aberta a todos, ou quase todos. A figura do chefe pode ser uma maneira de falar de um social sem classes. Ela representa o mundo como um acúmulo de hierarquias em que, no fim das contas, cada um tem o seu lugar. Ela é uma realidade profunda desse tempo, sob a forma relativamente simples de uma representação, mas, também, na sua existência objetiva e quase material, como uma tensão, como um conjunto significativo complexo e plástico, onipresente, acessível e disponível, sem uma definição perfeita sobre a qual todos estão de acordo, sem ter outra existência para além das suas diversas ocorrências (que não são nem repertoriadas nos glossários nem nos catálogos de categorias econômicas ou sociológicas). Reciprocamente, o social concebido como composto de classes não exclui os chefes. É bem esse o sentido da batalha teórica entre Lênin e Rosa Luxemburgo. Em um texto redigido contra esta última, o primeiro afirma que as “massas” se dividem em “classes” que são dirigidas por partidos políticos, eles mesmos “dirigidos” por pessoas “que denominamos chefes”.37 Para concluirA figura do chefe foi objeto de investimentos intelectuais, afetivos, sociais, cognitivos, culturais e políticos, basta que se busque obter um pequeno título de chefe ou ao contrário tornar-se um grande chefe, que se aceite seguir um chefe ou servir um deles de uma maneira ou de outra, que se tente pensar a sociedade ou simplesmente conceber uma ferramenta cômoda para conduzi-la. Como foi dito, a figura conta apenas com traços positivos e atrativos. Para melhor se distinguir, a figura stalinista do chefe empresta traços daquilo que o chefe não deve ser em outros lugares - ordinário, modesto, sem preocupação com a sua personalidade, sem dom de orador particular. Mas seria preciso determinar o que é a figura do chefe para aqueles que não a promovem, que não gostam dos chefes ou dos seus chefes, que recusam a autoridade e o comando, em outros termos, a figura do contrachefe ou do antichefe. O século XX lhe deixou pouco espaço. Para as elites que dispõem de poder em um domínio ou outro, e até mesmo para uma parte daquelas que foram portadoras dos protestos e das revoluções, existia um problema de autoridade e de controle das massas ou das multidões e, para todos elas, a solução era o chefe. É muito provável que não seja assim hoje. Nesse sentido, para concluir, me parece que convém, em primeiro lugar, compreender as figuras extremas do chefe - a nazista, a fascista e também a stalinista - em uma paisagem mais vasta que inclui o liberalismo: por um lado, elas emergem sobre um terreno de discussão idêntico sobre a necessidade de chefes ou de um chefe em tempos de produção, de política, de guerra e de cultura de massa; por outro, os liberais não recuaram diante do culto do chefe. Em seguida, é preciso notar que as ciências sociais, em particular a sociologia, são parte dessa mesma história, tanto na sua tentativa de comentá-la “em tempo real” quanto como interventora a partir das suas proposições. Por fim, emerge a necessidade de sugerir que após um século em que a solução das questões sociais esteve no chefe, em que dominou a concepção de Le Bon segundo a qual “os homens numa multidão não podem ficar sem um mestre”, podemos propor a hipótese de que estamos em um outro período, aquele em que as multidões recusam os mestres e não querem ser dirigidas: é talvez essa a mensagem não apenas do Maio de 68 francês e do ano de 68 no mundo todo, mas aquela dos movimentos que eclodiram cerca de 2010 de Túnis à Moscou. |
fevereiro #
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ilustração: Rafael Moralez