revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Cícero ARAUJO

de mensalões, choques entre os poderes e outros choques...

 


 

Propus-me a escrever, para este número de Fevereiro, sobre o julgamento do mensalão (ou “Ação Penal 470”, segundo o registro oficial) no Supremo Tribunal Federal. A proposta me ocorreu no final do ano passado, com o julgamento já terminado. Houve muita discussão do assunto na imprensa e nas redes sociais naqueles meses, mas hoje parece coisa ultrapassada. Ainda assim, insisto na pauta, tentando incorporar desdobramentos mais recentes.

Como os leitores devem se lembrar, o julgamento começou cercado de dúvidas sobre a capacidade dos ministros do Supremo fazerem-no com a devida imparcialidade. Havia o problema da época escolhida para realizá-lo - muito próxima das eleições municipais -, e uma forte pressão da imprensa no sentido de um resultado que se tinha como o único verdadeiro e correto, bastando para tanto a coragem dos juízes para confirmá-lo oficialmente. Por outro lado, havia notícias de pressões de bastidores, como a que teria ocorrido num encontro privado entre o ministro Gilmar Mendes e o ex-presidente Lula, testemunhado pelo ex-ministro do tribunal e, depois, integrante do próprio governo Lula, Nelson Jobim; além disso, o Senado havia acabado de confirmar a indicação (pela presidente Dilma Rousseff) de um novo ministro do Supremo, Antônio Dias Toffoli, sobre quem pairava de pronto a presunção de parcialidade, logo de incapacidade de julgar o caso, por suas ligações passadas com José Dirceu - de quem fora consultor jurídico -, acusado de ser o pivô das ações que levaram ao escândalo do mensalão.

Apesar da distância dos fatos originais - o escândalo veio a público sete anos antes, ainda na metade do primeiro mandato de Lula -, uma grande expectativa se acumulava em torno do acontecimento que, além do enorme aparato midiático para cobri-lo, seria transmitido ao vivo pela TV. Para uma certa frustração do público, no entanto, a maior parte do evento transcorreu sem os lances dramáticos de uma novela global ou de um filme de ação, a não ser quando os próprios ministros, discordando entre si dos encaminhamentos do processo ou de seus votos, entretinham-no com suas altercações. Estas iam de disputas jurídicas veementes, mas pouco inteligíveis, até agressões verbais - sim, muito inteligíveis, porém fazendo um contraste curioso com aquele figurino pretensamente solene dos protagonistas, com suas capas pretas amarradas, um tanto desajeitadamente, a ternos sóbrios. Fora esses momentos acalorados, o processo obedeceu a sequência burocrática e modorrenta típica dos tribunais superiores brasileiros, com a leitura dos votos dos ministros, especialmente os do relator e do revisor, que transcorriam horas a fio. Isso levava à dispersão, ao sono e até mesmo à ausência intercalada de membros do tribunal. Nada mais aborrecido e anticlímax para um público que havia sido preparado para algo próximo ao espetacular.

Este articulista leu uma grande quantidade de material relacionado ao assunto: matérias da mídia impressa e eletrônica, artigos de opinião, votos de ministros, além de dois livros recentemente publicados, com interpretações opostas sobre os fatos e sobre o julgamento do STF. Impossível dar conta da análise de tudo isso neste espaço. Para começar, ainda é muito difícil estabelecer o que aconteceu realmente. Que houve violação grave da lei, não há dúvida: a própria direção do PT admitiu a existência de um caixa dois de campanha, para custear compromissos assumidos com partidos aliados, já na campanha presidencial de 2002 e na municipal de 2004. Um crime eleitoral, portanto. Mas essa seria uma violação bem menor, comparada à peça de acusação da Procuradoria-Geral da República, que apontou a formação de uma quadrilha, cujo chefe seria José Dirceu, então ministro da Casa Civil de Lula, com o intuito de subornar membros do Congresso Nacional para que votassem nos projetos do governo. Suborno, por sua vez, financiado por um esquema muito complexo de dilapidação do patrimônio público. Essa tese foi veementemente recusada pelo PT e pelos réus, mas foi ela que afinal prevaleceu, apesar dos votos dissidentes de alguns ministros.

Se esclarecer todo esse imbroglio está fora de meu alcance, gostaria pelo menos de dizer algumas coisas sobre o julgamento em si e seus desdobramentos para a política brasileira, para o PT e para a esquerda em particular. Sobre a primeira questão, fica o registro de que nunca um corpo de ministros do Supremo se mostrou tão disposto como o atual para enfrentar um caso de corrupção política e lhe dar uma punição exemplar. Também ficou, no entanto, a impressão de um tratamento desigual: esse mesmo corpo de ministros deu, tempos atrás, em nome do instituto do foro privilegiado, a possibilidade de que um caso muito semelhante - denominado o mensalão mineiro - ocorrido antes do escândalo do mensalão petista, envolvendo políticos tucanos de Minas Gerais (entre os quais o ex-governador Eduardo Azeredo), fosse desmembrado para que seu julgamento ocorresse primeiro nas instâncias inferiores da justiça. Isso daria a parte dos acusados o direito a um segundo julgamento. Não foi o que o tribunal decidiu neste caso, rejeitando uma questão de ordem com o mesmo propósito feito pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, defensor de um dos réus. Além disso, para condenar José Dirceu, acusado de ser o chefe da quadrilha, a maioria dos ministros, capitaneada pelo relator Joaquim Barbosa, teve de acolher uma abordagem do direito criminal e penal que permite condenar sem provas documentais - pois, segundo essa abordagem, quando se trata de crime feito por uma organização criminosa, os verdadeiros mandantes raramente deixam rastros desse tipo -, bastando para tal uma série consistente de indícios. Mas o STF o fez flexibilizando enormemente o que poderia significar esses indícios: para condenar Dirceu como chefe do mensalão, bastou o testemunho duvidoso do ex-deputado federal Roberto Jefferson, estopim do escândalo, que depois foi negado pelo próprio, quando teve de depor oficialmente no inquérito feito pela Polícia Federal. Contra Dirceu, tudo o mais foi feito com base em deduções: coincidências de período entre saques de dinheiro feitas ou autorizadas pelos acusados e votações importantes no Congresso - por exemplo, a da emenda constitucional alterando as regras da Previdência - e até declarações na imprensa como a da então ministra das Minas e Energia de Lula, Dilma Rousseff, dizendo-se surpresa com a rapidez da votação de uma lei relacionada a sua pasta.

Coincidências ou não, indícios desse tipo poderiam até ser ponto de partida para uma investigação, mas no julgamento eles foram oferecidos como provas. Pior: foi com base nelas que a maioria dos ministros resolveu não só condenar, mas condenar com penalidades muito severas, inclusive aqueles (como José Genoíno e o próprio Dirceu) para os quais aos supostos crimes se poderia até imputar a corrupção política, mas não a corrupção pessoal - o enriquecimento ilícito, por exemplo -, porque a esse respeito nada foi encontrado. Quando o ministro revisor do processo, Ricardo Lewandowski, fez objeções que apontavam essa fragilidade da acusação, a maioria preferiu seguir o argumento do ministro Marco Aurélio de Mello, de que pensar no oposto - ou seja, de que isso não demonstrava a realidade do mensalão e não levava ao suposto chefe da organização criminosa, o próprio Dirceu, que afinal era o responsável do governo pela manutenção da base de apoio no Congresso - seria o mesmo que “acreditar em Papai Noel”. Mas essa resposta do ministro Marco Aurélio só revelava sua fragilidade jurídica, pois reconhecia implicitamente que o gap entre a própria condenação e os indícios só poderia ser preenchido por... dedução lógica! Mas se é assim, a lista deduzível dos possíveis chefes poderia ser diferente, ou então bem maior: Antonio Palocci, Gilberto Carvalho, até mesmo o presidente Lula...

Que essa dedução mais ampla não tenha sido feita no julgamento, ainda que alguns ministros tenham querido, talvez, insinuá-la, indica o caráter político de um julgamento que se pretendia estritamente técnico e calçado nas regras do direito penal. Como se a maioria do Supremo tivesse claro que reunia força suficiente apenas para condenar até o nível do que o procurador-geral chamou de núcleo político do esquema - ou seja, os então dirigentes do PT nacional (José Genoíno e Delúbio Soares), mais José Dirceu -, mas não teria como ir além. Contudo, todo o julgamento parece mostrar que assim o foi não por falta de apetite, mas porque os ministros sabiam muito bem do tamanho do enfrentamento político que teriam de empreender. De que estamos falando então? Esse é um tipo de cálculo que se espera de um partido político ou de outras instâncias de representação política, mas não de uma instituição judicial, que naquele momento nem sequer exercia o papel de guardião da Constituição - no qual uma certa ponderação política é considerada aceitável -, mas de instância superior do direito infraconstitucional. Pois se a questão fosse mesmo a de fazer a responsabilização política, e selar a correspondente punição, caberia ao Congresso fazê-lo, tal como prevê a Constituição, que, aí sim, faz as vezes de um tribunal político, seja através do impeachment do presidente, seja através da cassação de mandatos parlamentares. Mas justamente esse ponto crucial já havia sido ultrapassado pela agenda política do país, na medida em que os próprios partidos de oposição, liderados pelo PSDB, fizeram esse cálculo e acharam por bem não levar à frente o impeachment de Lula, limitando-se a exigir a queda de Dirceu da equipe de governo e depois apoiar a sua cassação, o que acabou se consumando. Ultrapassado esse terreno, restava o processo judicial - mas aí as regras do jogo teriam de ser outras. Em princípio, um tribunal judicial, STF incluso, não poderia fazer o que o Congresso deixou de fazer ou o fez às meias, isto é, condenar aqueles a quem se poderia atribuir um crime de responsabilidade política, mesmo que não penal, pelo escândalo.

Nesse ponto, não há como deixar de mencionar a evolução de um processo que certamente não começou com o julgamento do mensalão, mas atingiu com ele um ápice. Esse processo, a meu ver, é mais do que a chamada judicialização da política que, no fundo, é parte integrante do jogo político desde que se decidiu, em todo mundo democrático, aprofundar a intervenção do direito, com mediação dos tribunais, nas decisões legislativas e na elaboração de políticas públicas. Mas no caso brasileiro recente, no qual se assiste a uma interferência do STF e outros tribunais superiores (como o TSE) nas disputas partidárias, o que estamos testemunhando é na verdade uma gradual deslocamento do regime de partidos para uma espécie de regime de juízes, sem que esses últimos estejam devidamente equipados para a qualidade e a intensidade dos conflitos políticos que correspondem aos primeiros. Não só isso: faltam-lhes os procedimentos de legitimação para tanto. Os juízes não são eleitos e não organizam suas divergências através de instituições voltadas para o embate eleitoral, como os partidos, nem se apresentam ao público como homens (ou mulheres) de partido. Quando brigam, quando promovem trombadas públicas, como as muitas que vimos pela TV, o fazem não pelas motivações eleitorais explícitas que opõem os políticos profissionais, mas por alguma outra coisa que, no final das contas, estará fora do alcance do poder dos eleitores. Estamos assistindo, portanto, a uma transformação profunda nas relações entre os poderes constitucionais. E o que aconteceu no processo do mensalão não foi apenas um julgamento polêmico, para o qual se podem atribuir erros técnicos, prejuízos, imprudência e até parcialidade. Foi também um momento especialmente nevrálgico de afirmação de um órgão constitucional sobre e em detrimento dos demais. Como não poderia fazê-lo pelos modos incontornáveis a que os demais estão submetidos - a decisão das urnas -, resta então um recurso que lhe serve como um proxy do sufrágio eleitoral, um substituto embora imperfeito: a afirmação perante a opinião pública. Em outras palavras: projetando a imagem, e buscando legitimar-se como tal, de um STF que é o vingador implacável da justiça. Nada mais oportuno, em vista das mazelas da política brasileira. Porém, esse caminho - os ministros do Supremo devem sabê-lo - tem lá os seus percalços e suas armadilhas. Numa democracia, todo poder constitucional que passa a atirar pedras, tornando-se mais e mais ativo, começa também a expor seu telhado de vidro. Estarão os juízes preparados para esse jogo?

Uma nota final. Apesar do imenso desgaste sofrido com o escândalo e, depois, com o próprio julgamento e seus resultados, o PT se mostrou capaz, até o momento, de sair ileso das urnas. Mas será isso uma prova de vigor? Força eleitoral, sem dúvida. Mas o escândalo do mensalão, e o modo como os dirigentes petistas encontraram para explicá-lo, revelam um partido profundamente ferido em sua subjetividade política e ideológica. Pois trata-se de uma instituição que produziu boa parte de sua identidade coletiva, junto com o processo de vinculação com seus militantes e eleitores, na base de um discurso que contraria tudo o que o mensalão significa, seja na versão dos acusadores, seja na versão dos próprios réus (endossada pela direção do PT e por Lula). Uns bons anos atrás, acho que já desde a década de 1990, ciente de que o discurso tradicional da esquerda, organizado em torno dos ideais socialistas, já não produzia mais o élan que poderia levá-lo ao crescimento e, eventualmente, ao exercício do poder político, o PT resolveu investir pesado no tema da moralidade pública. E, por esse caminho, autorreferir-se como a encarnação da incorruptibilidade política. O que o diferenciaria então dos demais partidos? Além do programa e da ideologia, o PT passaria a oferecer aos eleitores uma esquadra de cidadãos impolutos, um time de varões de Plutarco; e os demais só poderiam ser, por conseguinte, variações de mal gosto da política tradicional, repleta de corruptos. Como se viu, esse discurso, até certo ponto bom eleitoralmente, revelou-se um terrível boomerang, uma vez que o partido ingressou efetivamente no jogo nada idílico do exercício do poder político. Não estou dizendo que atitudes alternativas seriam impossíveis de fato, mesmo para um partido com fortes credenciais de esquerda, como o PT. O problema é que ele teria de mostrar como isso seria possível na prática, com base em sua própria experiência pregressa. Do contrário, produzir identidade com esse tema e, pior, fustigar os adversários com ela, não seria como brincar com fogo, talvez preparando o terreno de sua própria queda, mais cedo ou mais tarde? Não digo a queda eleitoral, porque isso até agora não aconteceu de fato, mas algo talvez pior: o colapso da subjetividade petista, desse enorme patrimônio político construído a duras penas ao longo de tantos anos, que deu a marca de sua combatividade, de sua capacidade de enfrentar as duras batalhas que um projeto político de esquerda está fadado a enfrentar. Se não se dissipou por completo, na certa se enfraqueceu dramaticamente. Esse patrimônio ainda lhe faltará, e muito, se é que já não está faltando.

(Junho de 2013)

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael Moralez