revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Ruy FAUSTO

discussão I

 


O artigo de Pierre Magne e Claire Tillier sobre as eleições francesas enfatiza o peso do capital, a gravidade da crise, e os efeitos da sociedade do espetáculo1. Só podemos estar de acordo com os autores, a propósito de cada um desses pontos. A onipotência do capital, que dá notas aos governos (!), uma situação econômica extremamente grave em que o desemprego atinge níveis astronômicos, uma política-espetáculo que é apenas uma das manifestações de um mundo-espetáculo, onde se vê mal a diferença entre a realidade e a imagem. Mas de que modo os dois autores inserem, nesse contexto, as eleições francesas e o seu resultado, a vitória dos socialistas? A tese de Magne e Tillier é a de que "as margens de manobra desse novo governo que promete começar por economizar para, em seguida, redistribuir e colocar o rigor necessário a serviço da justiça, são minúsculas". "O governo socialista não poderá evitar de instaurar um regime draconiano".

Cabe, aqui, perguntar: para Maigne e Tillier, esse impasse seria inevitável?; ele resultaria simplesmente da crise?; ou viria de uma incapacidade do novo governo em encontrar soluções? Para além da crise, Magne e Tilier apontam, desde o início do texto, o que seria uma grave insuficiência. Para eles, o governo Hollande representa uma "esquerda parlamentar de alternância", pratica a "política parlamentar e seu jogo formal de alternância", move-se no terreno dos "partidos de alternância" que admitem como "base comum" "o capitalismo". E nesse sentido ele não poderá produzir "uma verdadeira ruptura".

Entretanto, a tese se complica, porque os autores dizem também, lá pelo final, que não acreditam "mais em revolução".
E aqui, o leitor (revolucionário ou não revolucionário) começa se perguntando por que não acreditam. Eles não dão razões mais precisas para a sua posição (a violência revolucionária tenderia a degenerar em violência tout court ? ou…). Tudo o que encontramos, é uma crítica, a bem dizer bastante tímida, em todo caso rápida, do ponto de vista revolucionário, ou antes do poder de análise dos que esposam esse ponto de vista: os revolucionários ficam como que extasiados com "o despertar radical" e acabam "cegos para o que se passa". "Fora a substância profunda da revolução, todo o resto é espuma da superfície".

E entretanto, o texto como que respira revolução. Ela é certamente o seu critério e a sua medida. É sintomático que um dos três autores citados é Badiou (junto com Guy Debord e Platão), inimigo irredutível da democracia parlamentar. Instalamo-nos assim numa antinomia. O artigo aparece como o grito de uma bela alma que aspira elevar-se até o seu modelo, embora saiba que não pode alcançá-lo. E tudo se passa como se os dois pólos da antinomia fossem mal fundados: a denúncia, que só pode ser revolucionária, da impotência da "esquerda parlamentar" não se funda em outra coisa senão no que hoje se deve chamar de "vulgata marxista". O jogo parlamentar só reporia o capitalismo e barraria o caminho da grande transformação. O outro pólo, já vimos, aparece simplesmente como um ato negativo de fé: "não cremos mais….", sem justificação maior do que a denúncia da pobreza heurística do ponto de vista revolucionário.

Dessa antinomia - ouso dizer duplamente sem fundamento - resulta pelo menos uma análise suficientemente rica do que significaram as eleições francesas? Parece-me que não. Curiosamente - mas no fundo não tão curiosamente -, tudo se passa como se Maigne e Tillier incorressem no erro que precisamente imputam aos crentes do "despertar radioso". Há objetos essenciais, o capital, a crise, a sociedade do espetáculo (ver as citações acima). O resto entra um pouco - esta é, pelo menos, a minha impressão - como "espuma de superfície". Digo que o fato, no fundo, não é tão curioso, porque, apesar do jogo antinômico que os autores acabam armando, é certamente o ponto de vista revolucionário o que predomina, ainda que enquanto ponto de vista de uma "bela alma"… Na realidade, é desse ponto de vista que se constrói a problemática do texto: capitalismo ou não-capitalismo, ruptura ou não-ruptura.

Mas esse quadro não dá nem pode dar conta de um fenômeno como o das eleições francesas desde ano, e do seu resultado. Os problemas reais que essas eleições suscitam não se põem em termos de sobrevivência ou não do capitalismo. O problema efetivo é: o governo que começa agora a sua trajetória poderá fazer uma política de reformas reais, e talvez radicais, ou está condenado a um reformismo adesista ? Essa é a posição efetiva do problema, e a solução é difícil. Na realidade, se o capital domina, e a crise é violenta, há muitas coisas a fazer, mesmo mantido o capitalismo, e a despeito da crise. Por exemplo: reforma radical do imposto de renda - o candidato prometeu um taxa de imposição de 75% para as rendas anuais superiores a um milhão de euros -, enquadramento dos aluguéis, política ecológica séria e responsável que passasse pelo menos pela liquidação da velha central de Fassenheim, taxação do patrimônio e das sucessões de forma a colher fundos para garantir a seguridade social e outros serviços, limitação dos mandatos no espaço e no tempo, diferentes formas de ajuda aos mais fracos ou mais pobres (ver por exemplo, o catálogo das 100 medidas proposta pelo Think Tank de jovens "Cartes sur Table", que Libération publicou no número datado de 13 de agosto deste ano). Também importa, contra Badiou e consortes, - embora o Estado atual seja muito imperfeitamente democrático - garantir a democracia. Assim, se a situação econômica é certamente grave, não é verdade que o campo de toda ação efetiva esteja fechado.

Que pensar do governo Hollande? Que fez ele até aqui? Quais são as perspectivas? Em primeiro lugar, seria bom refletir sobre o que foi a vitória sobre Sarkozy. Vitória dificil e decisiva, que exigiu muito esforço e habilidade. A reeleição de Sarkozy com um programa de extrema-direita teria sido uma catástrofe. Hollande teve seus méritos nesse processo, como também, de outra maneira, Mélenchon. Hollande joga o jogo midiático, a figura do "presidente normal" é ridícula etc? Tudo isso é verdade, mas nada disso é redibitório. Sobre o governo, acho que precisamos esperar mais um pouco para fazer um juízo equilibrado. (Não na inação, é claro, nem abraçando a velha e perigosa denúncia da democracia parlamentar.) O governo Hollande tomou algumas boas medidas iniciais, essencialmente desfazendo as enormidades do Sarkozismo. A primeira discussão do orçamento foi positiva, mas vamos ver a continuação. Quanto à ameaça de repetição do fracasso que, grosso modo, representou o governo Mitterand, observe-se que lá se começou com um programa radical de transição ao socialismo, depois se praticou uma política puramente keynesiana, e afinal se enveredou por um curso neoliberal. Acho que se deve constatar pelo menos uma coisa: a equipe atual pensou muito na experiência em geral negativa do governo Mitterand (não esquecer entretanto da abolição da pena de morte e de algumas outras coisas positivas que, apesar de tudo, aquele governo fez). A perspectiva, do atual governo, de articular uma política keynesiana com economias de gastos inúteis do Estado, não é, a meu ver, uma opção incorreta. Resta saber por que caminhos ela vai ser conduzida. É verdade que as dificuldades são muitas, e que, no PS francês, há de tudo. Mas além da exigência de preservar a democracia, o mínimo que se pode dizer é que o pior não é certo, e que, para além do bordão do onipotência do capital, da crise e da sociedade do espetáculo, há muitas outras coisas importantes a discutir.

































fevereiro #

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1"O capital é um princípio universal". "(…) esse universal esvazia as particularidades e as opõem umas às outras, em vez de uni-las (…). "Todos os indicadores mostram uma França sinistrada. No curto prazo, o crescimento é próximo de nada, o desemprego dispara (…)". "(…) tudo é comunicação, o conteúdo não tem mais nenhuma significação originária. A comunicação é posta como espetáculo para esvaziar os sentidos dos seres e dos atos".