revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Cícero ARAUJO

o que esperar da comissão nacional da verdade

 


No último dia 16 de maio, quando empossou os membros da Comissão Nacional da Verdade, conforme lei aprovada no final do ano passado, Dilma Rousseff fez um discurso que há tempos não se via um presidente da república fazer. Não foi uma daquelas falas chatas, relatoriais e cheias de números e metas, pelas quais a presidente se deixa levar algumas vezes, ao assumir a persona da fria gerente de governo. Nesse dia, ao contrário, ela mostrou ser capaz de fazer um discurso ao mesmo tempo vibrante e político. Mais do que isso, um discurso de Estado, não apenas de governo.

Está certo que Dilma foi muito ajudada pela coreografia do evento: lá estavam todos os ex-presidentes da república desde 1985 (exceto, claro, o falecido Itamar Franco), além de ex-ministros da Justiça e ex-secretários de direitos humanos do período. Convidadas pelo cerimonial do Planalto, essas pessoas não poderiam esperar nada menos do que uma fala "suprapartidária", como se diz. Dilma, no entanto, foi além, e conseguiu resgatar, com precisão, o amplo consenso constitucional que até essa data permitiu ao país desfrutar (nas suas palavras) "vinte e oito benditos anos" de democracia. Ao dar o tom da fala e da própria cerimônia, esse resgate abriu o caminho para que a presidente explicasse as balizas que devem nortear o trabalho da Comissão da Verdade - projetando, num horizonte apropriadamente histórico, as determinações da Lei 12.528, que aprovou sua instalação.

Contudo, não é porque colocou entre parênteses as brigas partidárias que o discurso não tenha tocado em questões muito sensíveis. Convocados a participar, e sentados na plateia, lá estavam os três comandantes das forças armadas, por sinal um tanto constrangidos. E poderia ser diferente?O principal objeto dos trabalhos da comissão será "examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos" (Art.1º. da lei) praticadas durante a ditadura patrocinada pela corporação militar. Embora a lei fixe um período mais amplo (1946-1985), é evidente que a comissão vai enfocar a virada histórica que se inicia com o golpe de 1964. Sobre isso não deixou nenhuma dúvida a presidente Dilma, mas também José Carlos Dias, que fez uso da palavra representando os membros da comissão empossada. Mesmo que a norma seja muito clara, no Art. 6º, no sentido de manter intacta a lei da anistia aprovada em agosto de 1979, durante o governo do general João Figueiredo, e de não atribuir à comissão o aspecto de um tribunal de justiça, os debates que antecederam a sua aprovação causaram bastante estresse na área militar - no alto comando por certo, mas especialmente nos clubes e associações de oficiais. A estridência maior, como seria de esperar, partiu dos oficiais aposentados.

A tensão se deve, por um lado, ao temor de que os trabalhos tomem rumos diferentes do previsto, criando um clima favorável à revisão da lei da anistia ou à reanimação de processos judiciais contra torturadores e autores de assassinatos e desaparecimentos. (A reanimação de processos já está acontecendo de fato, e de modo independente, como ilustra o caso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que há pouco foi reconhecido oficialmente como torturador por um tribunal de São Paulo.) Por outro lado, mesmo que a revisão da lei da anistia seja pouco provável, incomoda profundamente a hierarquia militar a disposição de passar a limpo os crimes mais hediondos da ditadura. Por mais modestos que sejam os objetivos da comissão da verdade, visto que suas atividades não poderão assumir "caráter jurisdicional ou persecutório" (Art,4º.), ainda assim estará na sua alçada investigar, com apoio do poder público, o que e como aconteceu, e relatá-lo oficialmente ao país. A "verdade" a que se refere o nome da comissão não significa nada mais do que isso: a simples revelação dos fatos contra a tentativa, ultrajante para os diretamente atingidos e também para a memória do país, de ocultá-los ou negá-los.

Ocorre que, embora simples de definir, essa verdade não será nada fácil de obter na prática, especialmente se depender da colaboração de testemunhas que, afinal, estiveram envolvidas nos crimes investigados: por exemplo, para conhecer o destino e a identificação dos corpos dos desaparecidos. Mais complicado ainda será transformar a iniciativa num modo de "promover a reconciliação nacional", como prevê o Art. 1º. da lei. Para esse objetivo, não basta trazer os fatos à luz do dia, a despeito de ser um passo indispensável: é preciso também cozer os fios que poderiam uni-los, produzindo uma reinterpretação e uma reavaliação de sua história. E aqui se mexe num vespeiro que transcende os traumas deixados pelos violadores dos direitos humanos em suas vítimas ou familiares, porque põe em questão as crenças mais arraigadas das gerações que se dividiram entre o apoio e a oposição à ditadura. É possível que essas crenças não rasguem mais os corações de muitos (talvez a maioria) dos que as vivenciaram na época; mas elas ainda persistem, seja entre sobreviventes da contenda, seja entre grupos de ativistas das gerações mais jovens. É como se velhas querelas entre esquerda e direita, que se encontram no âmago da crise de 1964 e seus desdobramentos, continuassem mal resolvidas, apesar das décadas que nos separam desses acontecimentos.

 

O que passar a limpo ?

 

Sobre a questão, duas perspectivas toscas, mas antagônicas, da história brasileira da segunda metade do século XX disputam encarniçadamente a opinião pública e, de quebra, os trabalhos da comissão da verdade. Opostas em tudo - em seu teor ideológico, no conteúdo de suas narrativas, no que consideram como fatos relevantes etc -, menos no maniqueísmo que as formatam, a isto tendem se reduzir: uma eleva a heroísmo aquilo que a outra rebaixa a máxima vilania, e vice-versa. Como se a história do Brasil pudesse ser comparada a uma luta de vida e morte entre bandidos e mocinhos. É claro que, se esse antagonismo tomar conta do debate e da pauta da comissão, será muito difícil promover a reconciliação nacional, por mais que ela consiga escavar o chão que leve mais perto dos fatos brutos. Nesse caso, o buraco sempre estará mais embaixo, pois não é sobre fatos que se dará a disputa.

No entanto, como o impasse poderia ser resolvido? A resposta mais simples a essa pergunta, oferecida por grupos de direitos humanos e defensores das vítimas da repressão, é a seguinte. Que os assassinos e torturadores produzidos pelo regime autoritário, até agora intocados, sejam responsabilizados por seus crimes e devidamente punidos. Aparentemente, nada mais justo. Eles seriam levados ao banco dos réus não por terem reprimido opositores armados, mas pelo modo como o fizeram: por terem cometido "graves violações de direitos humanos" ao usar ilegalmente o aparelho do Estado, contra pessoas já desarmadas ou que nunca estiveram armadas, porém sob sua custódia. Nesse rol estão inscritos os sequestros, as torturas e os desaparecimentos, atos indesculpáveis até mesmo segundo a legalidade do autoritarismo, para não falar dos documentos internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário pelo menos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Tais medidas certamente aplacariam as queixas contra a impunidade, que hoje não se concentram apenas nas vítimas ou seus familiares e nos grupos da sociedade civil que as defendem, mas se estendem a parte da opinião pública sensível ao discurso dos direitos humanos e até mesmo a organismos internacionais1. Contudo, por mais corretas do ponto de vista moral e legal, seu prevalecimento na atual conjuntura só poderia acontecer ao custo de uma tremenda simplificação da linha divisória que supostamente separa culpados e inocentes, bem ao gosto das visões maniqueístas acima mencionadas. Pois em muitos casos não seria difícil individualizar as figuras sinistras que executaram as barbaridades ainda pendentes de responsabilização. Tomem-se os torturadores, por exemplo: seus crimes são muito palpáveis e contra eles não faltam documentos e testemunhas diretas (entre os quais, os próprios sobreviventes). Não andam às escondidas, seus endereços residenciais ou de trabalho são bem conhecidos e circulam por aí à vontade; pior, vão à imprensa para tripudiar e tergiversar, só sabem se defender acusando etc, o que os torna ainda mais execráveis do que já pareciam. Como eram a face menos invisível dos porões da ditadura, os últimos elos da cadeia de comando, tudo concorre para que se transformem no objeto principal, no foco não só dos tribunais, mas da expiação coletiva. Não poderia haver pessoas mais adequadas às molduras de uma história em preto e branco.

Todavia, a questão dos desaparecidos é mais complicada. Outra vez, há que acatar plenamente a demanda, mais do que justa, humanitária, de que seus paradeiros sejam esclarecidos, ou seus restos encontrados, pranteados e dignamente sepultados pelos familiares. Essa é a matéria que talvez reúna as maiores esperanças de avanço nas atividades previstas pela comissão. Se é demais esperar que esclareça todos os casos, que pelo menos vá além do que se sabe. Mas aqui o objetivo de localizar os corpos e dar-lhes sepultura digna não converge facilmente com o desejo, não impossível porém mais difícil de satisfazer, de individualizar os criminosos e torná-los objeto adicional da execração coletiva. Porque, para tanto, os próprios criminosos, ou seus cúmplices, teriam de depor publicamente contra si mesmos, e confessar seus atos ou omissões. Que um ex-delegado do extinto Dops (Departamento de Ordem Política e Social) tenha feito isso espontaneamente, num livro de publicação recente2, mas em circunstâncias e com intenções ainda um tanto obscuras, parece ser a exceção que confirma a regra. A conferir.

De qualquer forma, a questão dos desaparecidos nos aproxima de um tópico que, embora elementar numa análise que leve em conta a sua dimensão política, é pouco afeito à simplificação histórica. É que o manto de chumbo que, nesse caso, encobre os fatos que revelariam o paradeiro dos desaparecidos, diz muito da natureza sistêmica do aparato de violência imposto pela ditadura militar. A repressão era uma máquina de triturar opositores, descobrir e quebrar suas ligações e, pelo exemplo, intimidar vozes potencialmente discordantes. Não era uma quadrilha de bandidos que havia se alojado nos interstícios do Estado, à revelia dos governantes. Pelo contrário, era um instrumento desses últimos; um instrumento de exercício do poder político que, porém, tinha de atuar na sombra de uma legalidade seletiva, dócil para os colaboradores ativos, mais ou menos correta, quando não severa, para os passivos e definitivamente ausente para os que diziam "não", com armas ou sem elas. Fazer desaparecer seus corpos não era expressão de puro e simples sadismo, o "excesso" de um grupo de executores de ordens, mas um método sistemático, ainda que tosco, de evitar que as autoridades competentes passassem pelo constrangimento de exibir e explicar a estranha falta de sobreviventes. Esses, pelo menos, teriam a chance de passar pelo chamado "devido processo legal", que o Estado brasileiro como ente político-jurídico pretendia garantir, e que os governantes fingiam respeitar. Eis que a hipocrisia também cobrava seu preço, inescrupulosamente repassado aos dissidentes - no fundo, aos seus familiares.

O caráter sistêmico da repressão ditatorial nos faz pensar nos elos de uma cadeia, numa articulação hierárquica, onde teria de haver autores intelectuais, mandantes, cúmplices e operadores, cada qual com sua parcela, maior ou menor, de responsabilidade. O fato de que décadas se passaram desde que ela deixou de existir, e que grande parte dos personagens principais dessa trama, talvez todos, já estejam mortos, embora impunes, apenas deixa claro as imensas dificuldades de se fazer uma "justiça de transição", quando a própria transição como passagem de um regime político para outro se tornou coisa do passado. O que existe agora não é mais uma máquina de triturar opositores, mas pessoas que foram peças dessa máquina, nem por isso menos conscientes disso e, no entanto, provavelmente a parte mais descartável e pour cause a menos encoberta de todo o complexo. Que elas sejam agora o foco da indignação pública, das inquirições oficiais e, eventualmente, dos tribunais, não poderia deixar outra coisa senão uma trava amarga nos que sinceramente pelejam por uma plena reparação dos crimes da ditadura. A rigor, em seu sentido jurídico, essa reparação não poderá mais ser completa e nem mesmo satisfatória, apesar das várias medidas pecuniárias, simbólicas e outras já adotadas ou reconhecidas pelos governos quesucederam a ditadura, e ainda que aquelas pessoas venham a ser julgadas e punidas. Satisfatória mesmo só a busca da reparação política e histórica que, de qualquer maneira, e fossem outras as circunstâncias, também teria de ser feita. Mas afinal, isso é apenas um prêmio de consolação ou, ao contrário, o que mais importa?

 

Por que reconciliação nacional

 

Mesmo que uma análise politizada do problema que aqui se examina requeira a exposição do caráter sistêmico da repressão, de seus encaixes num todo articulado, ela não poderia contentar-se com isso. Os governantes do Estado autoritário e, para começar, os protagonistas do golpe que derrubou um regime constitucional, não se articularam movidos apenas por seus interesses e por sua própria vontade. Eles também supunham estar representando um anseio social mais amplo. Os militares não eram seres de outro planeta, como esses invasores dos filmes de ficção, que repentinamente surgem nos céus ou do fundo dos oceanos onde hibernavam, para então instalar uma sanha de destruição e terror sobre a sociedade. Nada disso: sua emergência política, como tutores do país, se deu em meio a profundos conflitos civis e sociais, dos quais tiveram primeiro de se tornar instrumentos, para em seguida instrumentalizá-los. A corporação militar mesma era parte desses conflitos, e cindia-se internamente. No papel de instrumentos, os quartéis foram solicitados pelas elites civis e seus respectivos partidos, além de representantes mais diretos de grupos sociais. Estes, adversários mortais entre si, esperavam um apoio das armas, mas cirúrgico, ou pelo menos uma aliança de igual para igual, como já havia acontecido antes. Dessa vez foi diferente: os papéis se inverteram. Como se sabe, todos se deram mal, uns mais, outros menos, um lado antes e o outro lado depois.

Seria de uma teimosia atroz continuar pensando, como se pensou durante vários anos regime autoritário adentro, que a parte imediata e mais profundamente derrotada pelo golpe, a esquerda e a centro-esquerda em suas diversas matizes, teria sido o lado inocente desse enredo. Se a direita liderada pela UDN (União Democrática Nacional) tramou com a alta hierarquia militar, ganhando a maioria para o seu lado, a esquerda, por sua vez, buscou trazer as forças armadas para o embate quebrando essa mesma hierarquia, imaginando com isso introduzir a luta de classes em seu interior, para benefício das classes oprimidas. Não há nada de inocente nessa aposta; talvez ingenuidade, porque a tentativa acabou inviabilizando o chamado "dispositivo militar" de proteção do governo que mal ou bem promovia os interesses dessas classes, o qual dependia justamente da hierarquia. Para tal apreciação, pouco importa de que lado estava a boa intenção e de que lado estava a vilania, quem pretendia libertar o povo e quem pretendia escravizá-lo. Não se trata de fazer um juízo moral do processo, mas de compreender as lições de seu desfecho trágico. E uma delas, aliás, a mais importante em termos de orientação política - porém desprezada durante muito tempo pelos maiores perdedores, que por isso mesmo trataram de se proteger no refúgio subjetivo das boas intenções -, é que ambas as partes, em seu flerte com os militares, mostraram um apego muito superficial ao convívio democrático. E com uma disposição tão fraca nesse quesito, qualquer bloco que vencesse (e quem venceu, no fim das contas, foram os convidados, e não os anfitriões!) acabaria impondo uma ditadura, velha conhecida desta parte da América, e não uma "nova" democracia, como também ambos os lados, em sua insatisfação com o status quo, prometiam.

Pois bem: o leite e o sangue foram derramados, uma ditadura de direita e seus opositores fizeram sua história. Não a fizeram sozinhos: cada qual buscou diferentes alianças sociais, de uma maneira ou de outra tentando comprometê-las no embate. Durante um certo tempo, o autoritarismo foi bem-sucedido nesse jogo, indireta e involuntariamente ajudado pela oposição armada, uma juventude recrutada da própria elite social e suas franjas de classe média, que nesse tempo apoiava, majoritariamente, o campo governista. Aquilo era sim um enfrentamento da ditadura, mas não ainda na forma de uma clara oposição entre um campo democrático e um campo autoritário. Aliás, foi preciso que a própria luta armada encontrasse seu beco sem saída para que o processo começasse a evoluir nessa direção. Felizmente, por diversas razões - cuja análise demandaria mais do que é possível dizer aqui -, não tardou para que o regime autoritário também encontrasse o seu. A saída do imbroglio, no entanto, foi demorada e cheia de idas e vindas.

A chamada "transição", é certo, começou a conta-gotas, mas para surpresa de todos, inclusive da oposição, acabou se acelerando, até fazer desaguar um poderoso movimento de massas. Porém, mesmo que tenha havido saltos, não ocorreu nenhuma ruptura institucional mais séria. O regime foi derrotado, mas seus colaboradores civis, com maior ou menor sucesso,mantiveram-se na cena pública; os chefes militares recolheram-se aos quartéis, mas habilmente garantiram imunidades para si e seus cúmplices. Foi, enfim, o preço de uma transição negociada. Poderia ter sido diferente? Claro que poderia, para pior ou para melhor. Mas exagera-se na disposição complacente ou conciliatória da liderança oposicionista que a negociou, como se tivesse um propósito não declarado de encaminhar a transição para uma democracia limitada e antipovo. Esse juízo de intenções despreza o contexto institucional e os limites que esse contexto específico impôs à transição brasileira.

No que diz respeito ao encontro de uma saída institucional, os militares brasileiros podem não ter sido tão brilhantes, mas também não foram tão desastrados como seus colegas do Cone Sul. Embora com muitas divergências internas, eles resolveram tomar a iniciativa nessa direção, aproveitando o fato de que o regime nunca rompera de todo a via institucional, o que fez a oposição, inteligentemente, também a aproveitar. Pelo caminho institucional, porém, só mesmo através de acordos - "pactos políticos" - com todas as suas ambiguidades de aproximação e enfrentamento. Mas se houve exagero na aproximação, este foi de grau, não de qualidade. Porque, no essencial, haver topado aquele caminho acabou sendo a melhor maneira não só de enfrentar o autoritarismo, como tática política, mas de chegar à democracia.

Neste ponto, e, para concluir, é preciso retomar o argumento que une a análise precedente com a questão do modo pelo qual, uma vez que se chegou a um regime democrático mais ou menos estável, se poderia administrar os traumas deixados pelo passado autoritário. Ou melhor, esse passado que no fundo ainda não se tornou passado, como se constata no debate acirrado sobre as maneiras de lidar com as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura, em vista da série de iniciativas governamentais que agora culminam na instalação da Comissão Nacional da Verdade. Essa última medida indica a continuidade de tendências anteriores no sentido de evitar a judicialização do problema, isto é, entregar seu encaminhamento inteiramente aos tribunais.

Ao ver deste articulista, a política adotada é correta. Primeiro, porque o caminho da judicialização nos leva ao cipoal das divergentes interpretações das leis em vigor, especialmente a lei da anistia, seguidas de infindáveis questões burocráticas que acabam desembocando na sala daqueles onze juízes que compõem o Supremo Tribunal Federal. Obviamente, são obrigados a tomar uma decisão que, no entanto, ultrapassa o jurídico. Exatamente por isso que, em segundo lugar, é preciso continuar insistindo no caminho do convencimento e da negociação. É claro que não se trata de convencer ou negociar com ex-torturadores, sequestradores etc. O problema maior, ao contrário, é convencer a sociedade brasileira de que a questão é relevante, que não interessa apenas aos diretamente atingidos pela repressão e seus familiares, mas a todos os cidadãos e à saúde das instituições. Portanto, é preciso sempre apresentá-la como uma questão de Estado, o que requer acordo e firme comprometimento de todo o campo político que lutou contra o regime autoritário, base do consenso constitucional que estabilizou a atual experiência democrática do país. Porém, há algo mais.

Como foi dito acima, a ditadura militar logrou durante certo tempo costurar uma aliança social em torno de si, que foi além de uma solda das forças armadas com políticos profissionais, burocratas e alta burguesia. Ela envolveu também classes médias e até mesmo camadas populares. Derrotar a ditadura implicou um lento e paciente trabalho de desamarramento de cada uma dessas costuras, até deixar exposto o núcleo do autoritarismo. Implicou também a reelaboração de um projeto institucional democrático para o país e uma reconversão para seus valores intrínsecos, a fim de que não se repetissem os fracassos de tentativas anteriores. Esse último esforço, vale frisar, não atingiu apenas os atores que colaboraram com a ditadura, fossem eles indivíduos, instituições ou classes sociais, mas também aqueles que desde o início a ela se opuseram, entre os quais se travou uma dura batalha intelectual. Não é por acaso que, no desdobrar da transição, tenha emergido uma convergência entre campos políticos, à direita e à esquerda, que até o golpe de 1964 haviam travado um duelo de morte, ao ponto da mútua destruição. Essa inédita aproximação expressou simbolicamente uma convergência ainda mais ampla da própria sociedade brasileira, que afinal possibilitou os tais "vinte e oito benditos anos" de estabilidade democrática (também inéditos) a que se referiu Dilma Rousseff em seu discurso. É assim que se deve entender o mote da reconciliação nacional: não como uma perversa e atávica propensão à "cordialidade", nem como uma aversão ao conflito, mas como uma necessidade interna de reprodução do novo regime. Pois este, ao não depender da força bruta e da intimidação, precisa recorrentemente promover uma cultura política adequada a seu sustento. E no cerne dessa cultura está o hábito do convívio dos adversários, por maiores que sejam suas divergências.

Por isso mesmo, esse quadro complexo é incompatível com qualquer apresentação maniqueísta da história da ditadura e do que levou a ela. Definitivamente, essa história não corresponde a uma divisão tout court entre heróis e vilões. E se é ponto pacífico que a ditadura produziu barbaridades indesculpáveis, também o é que alguns grupos oposicionistas, especialmente durante a luta armada, nem sempre agiram de forma tão desprendida, como uma certa versão romanceada desse período pretende. Convertê-los em simples e despojados resistentes lockeanos, democratas convictos ou até em tiranicidas ao estilo de senadores romanos, é um eloqüente exercício de interpretação do que aconteceu. Porém, convenhamos, há nisso algo de justificação ad hoc, e não parece muito fiel aos fatos. Se queremos sinceramente a verdade factual, temos de estar preparados para revelações desagradáveis às nossas próprias convicções. Porque não é de sua natureza favorecer sempre o mesmo campo, seja de direita, de esquerda ou o que for. Às vezes, a verdade dói para todos os lados.

Não se trata de reavaliar se as ações dos guerrilheiros os levaram a cometer "graves violações de direitos humanos". Independente do que se pense delas, seus autores já foram julgados e punidos por isso. Fosse essa a questão, bastaria reafirmar que os algozes da ditadura, esses sim, permanecem sem julgamento e sem punição, não só porque cometeram graves violações, mas porque o fizeram sistematicamente e, pior, com o respaldo do poder do Estado. Contudo, já ficou bem claro, conforme estabelece a lei, que a comissão não vai nem pode julgar ninguém. Ela simplesmente buscará restabelecer os fatos e apontar oficialmente o que aconteceu, quem fez e quem deixou de fazer. O que deve acontecer depois, essa é uma questão a ser disputada em seu devido tempo. Mais central do que isso, agora, é insistir que só haverá ganho político efetivo em sua tarefa, se a comissão conseguir retirar a opinião pública de um horizonte estreito e descontextualizado dos fatos a revelar, ainda que seu foco mantenha-se (como deve se manter)nas graves violações da ditadura. Para esse propósito, no entanto, todos os fatos importam, porque é a única maneira de oferecer, mesmo para aquelas violações, uma narrativa isenta e equilibrada. Esse desafio transcende o problema da identificação de culpados e inocentes, e é o que poderá fazer do trabalho da comissão um novo impulso à reconciliação nacional.


(Agosto de 2012)

































fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ






1Como vem acontecendo com a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que recentemente condenou o Brasil por ainda não ter feito a investigação penal da operação do Exército que levou ao massacre de guerrilheiros e camponeses no Araguaia.

2O livro Memórias de uma guerra suja, publicado por Marcelo Netto e Rogério Medeiros, traz depoimento inédito de Cláudio Guerra, um ex-delegado do Dops que confessa ter participado do assassinato e desaparecimento de vários militantes de esquerda e indica locais em que foram enterrados clandestinamente.