revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ruy FAUSTO (com agradecimento a Cícero ARAUJO)

em torno da insurreição de 1917 e dos seis primeiros meses do poder bolchevista

 

(2ª parte)

 

Nota: A primeira parte desse texto foi publicada no nosso número anterior. No início dela, resumi alguns dos problemas que o artigo (primeira e segunda parte) tentaria desenvolver. A insurreição de outubro de 1917 foi uma verdadeira revolução? Por que razões o poder estabelecido em outubro (novembro) de 1917 era constituído apenas por membros do partido bolchevique? Ou seja, por que (...) a insurreição de outubro leva ao poder um governo de um só partido? Por que razão (...) o poder bolchevista evolui, ou involui, em alguns meses, de um regime de estilo autocrático, mas no interior do qual subsistiam certos espaços de liberdade, para um regime autocrático fechado? Essa mudança decorre da irrupção da guerra civil, como se pretende frequentemente? Qual o curso que tomam as relações entre as massas populares e o bolchevismo, no período que vai de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 18? A base popular do bolchevismo aumenta, como se pretende frequentemente, ela se mantém no nível alcançado em outubro, ou ela se deteriora substancialmente? – A primeira parte, já publicada, ocupou-se da primeira e da segunda questões, e iniciou a discussão da terceira. O restante vem no que segue. O texto se interrompeu após a narrativa da liquidação violenta da Assembleia Constituinte pelo poder bolchevique, no início de janeiro de 1918, Assembleia livremente eleita, e na qual os socialistas-revolucionários eram majoritários.



O poder do Conselho de Comissários vai se tornando cada vez maior, em relação ao Comitê Executivo Central dos Sovietes. A tarefa é facilitada pelo fato de que os mencheviques e os socialistas-revolucionários (SR) haviam-se retirado do Comitê (os mencheviques voltarão em março, os SR voltam antes). Mesmo assim, há debates e eventuais desafios – mas em geral sem efeito ou de efeito muito limitado – ao poder bolchevista (os protestos vêm dos SR de esquerda, que entretanto, entrarão no governo em dezembro; de alguns socialistas, mencheviques inclusive, que representam outras organizações – sindicatos por exemplo – ou de bolcheviques com posições divergentes). Os Congressos dos Sovietes são controlados cada vez mais pelos bolcheviques, que excluem as oposições das comissões de credenciais.


Se a repressão se faz gradativamente, deixando durante alguns meses, certos espaços de liberdade, isso se deve por um lado à prudência dos bolcheviques, que nos primeiros dias têm de enfrentar oposições sindicais (de esquerda) e militares-armadas (de direita), e mais adiante têm de justificar, em parte também dentro do seu partido, seja o fechamento da Assembleia Constituinte, seja, depois, o Tratado de Brest-Litovsky. Nesse contexto, insere-se o problema das relações com os SR de esquerda. Os bolcheviques tinham interesse em dar uma fachada democrática ao seu governo, e, assim sendo, permitem a entrada dos SR de esquerda em dezembro de 1917, e atenuam em alguma medida a repressão tendo em vista garantir essa aliança de fachada (ao que parece, mesmo se os SR de esquerda foram afinal favoráveis ao fechamento da Assembleia Constituinte, foi a necessidade de poupar os seus aliados que levou os bolcheviques a aceitar a realização de uma primeira e última sessão da Assembleia). Por outro lado, os sentimentos democráticos eram relativamente fortes dentro de certos setores do partido bolchevique. Desde antes de outubro, toda uma série de dirigentes bolcheviques é muito reticente (para não dizer mais) em relação aos métodos do “socialismo de soldados” que os bolcheviques empregam. Em ocasiões e formas diferentes, Miliutin, Rykov, Noguin, Riazanov, Lunacharsky e até Zinoviev manifestam-se em favor de um caminho mais democrático. Mas a figura que melhor encarna essa atitude é, certamente, Kamenev. O historiador francês Marc Ferro tem razão em insistir sobre o papel de Kamenev. Os radicais são Lênin, o “velho” líder, autor do “Que Fazer?”, e o recém-convertido Trotsky, neófito ultra, entusiasmado com o modelo jacobino, que ele combatera brilhantemente na juventude.


Esse caminho repressivo é função da guerra civil? Nada leva a responder pela afirmativa. Porém essa resposta falsa se transformou num formidável mito a serviço do bolchevismo. Um problema prévio, para discutir essa questão, é saber quando começa a guerra civil. Como observa Evans Mawdsley, grande especialista da guerra civil, de certo modo ela começa imediatamente. Mas até o verão, essa guerra não ameaça o poder bolchevique e é, em grande parte, periférica. Que representa a guerra civil até junho de 1918? Depois dos combates do após outubro imediato (pequena batalha contra os cossacos perto de Petrogrado, luta em Moscou, resistência dos cadetes [militares] em Petrogrado), a guerra civil se trava principalmente contra os cossacos (primeiro nos Urais, depois no sul – no Don e no Kuban), mas eles são derrotados e, se não definitivamente, não representam perigo imediato. Também o exército de voluntários começa a se organizar no sul, com os generais Alexeev e Kornilov, mas tem de bater em retirada (a célebre “marcha do gelo”) e perde em combate o seu comandante militar (Kornilov). Há um pequeno desembarque inglês em Murmansk, logo depois do tratado da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, porém ele se faz inicialmente com a anuência dos bolcheviques, temerosos do avanço alemão e de ameaças a partir da Finlândia.[i] Finalmente, há a intervenção na Ucrânia, onde a Rada (Conselho) proclama a independência. A intervenção seria apenas um episódio da história complicada de intervenções e guerra civil na Ucrânia, mas, por ora, (e apesar das dificuldades iniciais), ela termina pela vitória vermelha no final de janeiro.[ii] Pouco depois da morte de Kornilov, Lênin declara no Soviete de Moscou: “Pode-se dizer com certeza que, no essencial, a guerra civil está terminada”.[iii] Enfim, houve vários episódios militares, mas nada disso representou um perigo real para o poder bolchevique, e, principalmente, não há nada que indique que essa guerra civil incipiente explique a repressão. Muito mais sério, era o avanço alemão, que vai levar ao Tratado de Brest-Litovsky em março. Volto a ele mais adiante, mas também a guerra com a Alemanha não explica o autoritarismo crescente, em grandes linhas, do poder instaurado em outubro (há uma relação entre Brest-Litovsky e a questão da democracia e do pluripartidarismo, mas, como veremos, ela não é simples).


De onde vem o fechamento progressivo do regime? Por um lado, como já indiquei, ele está na base da política não de todo o partido bolchevique, mas certamente de Lênin e de Trotski. Lênin é dominado pela ideia de que as verdadeiras revoluções devem ser violentas e intolerantes (ver por exemplo as referências de Trotski a respeito), e ele aceita, senão deseja, a guerra civil (a citação acima poderia sugerir o contrário, mas o significado do texto é, mais ou menos, o de que, supondo um momento a contra-revolução militarmente derrotada, os bolcheviques “aceitam” a paz civil). É verdade porém que os bolcheviques, pelo menos em determinadas ocasiões, precisavam de uma fachada democrática. Mas a razão principal, podemos dizer, a verdadeira razão, está na progressiva deterioração do prestígio bolchevique perante as grandes massas. Isto é, o grande motivo está no fato de que os bolcheviques vão perdendo apoio. E mais: no fato de que esse enfraquecimento da base popular do bolchevismo corresponde a um fortalecimento das oposições mencheviques e SR, e também SR de esquerda, partido este que participa do governo até março. Esse processo, que contradiz o mito da repressão-por-causa-da-guerra civil, foi cuidadosamente ocultado pela historiografia e pela literatura oficial (stalinista mas também leninista-trotskista).


Por ocasião do levante de outubro, os bolcheviques não gozam de apoio majoritário no país (as eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas menos de um mês depois, não lhes dão mais do que um quarto dos votos), mas têm o apoio dos operários, principalmente o das grandes cidades, entre os quais devem ter obtido maioria absoluta (eles têm maioria – e maioria esmagadora – entre os soldados e marinheiros estacionados na proximidade dos grandes centros, de Petrogrado principalmente, mas perdem para os SR, nas guarnições instaladas longe dos grandes centros).[iv]Esse apoio iria crescendo, numa marcha triunfal em direção a uma plena legitimação do regime? É o que a literatura tradicional pró-bolchevique (stalinista e trotskista) sugere, mas a tese é falsa. Ela põe no mesmo saco reforço do poder e legitimidade, duas coisas diferentes. Na realidade, a partir de dezembro, começam a aparecer sinais de descontentamento. As razões desse descontentamento são várias. O bolchevismo havia jogado a carta da mobilização e da intervenção das “massas” até o limite do caos, e agora, transmutado em poder de Estado, esse espontaneísmo criava problemas. Os operários pediam aumentos e indenizações de toda sorte, que o governo não estava em condições de conceder. Por outro lado, há uma progressiva liquidação das dumas, que asseguravam o funcionamento da administração. Não há poder administrativo suficientemente competente para preencher esse vazio. Tudo isso agravado pela violência dos comissários, e as intervenções rudes das tchekas e dos guardas vermelhos. Finalmente, cresce a tensão com os camponeses. Estes não querem vender seus excedentes agrícolas pelo preço fixado pelo governo, considerado excessivamente baixo. E a troca por produtos industriais também se faz dificilmente. Para resolver o problema do abastecimento, os bolcheviques irão progressivamente intervir no campo, de forma violenta, o que provocará uma reação camponesa igualmente violenta.


No plano do cerceamento das liberdades, o fechamento da Assembleia Constituinte representou um passo essencial. Para, de certo modo, ratificar essa medida, um terceiro Congresso Pan-Russo dos Sovietes é marcado para dois dias depois da dispersão da Assembléeia. 94 % dos lugares é dado aos bolcheviques e aos SR de esquerda. A oposição é excluída da Comissão de Credenciais. A questão da Assembleia Constituinte nem sequer é discutida.[v]


Os bolcheviques haviam vencido em grande parte graças ao prestígio que ganharam junto aos soldados, com a bandeira da paz imediata. O decreto sobre a paz do Segundo Congresso propunha uma trégua de três meses aos beligerantes. Enviado aos aliados, ele é imediatamente rejeitado.[vi]O poder bolchevique se dirige então às potências centrais. As conversações começam em 20 de novembro (6 de dezembro, pelo calendário gregoriano).[vii] O assunto só nos interessa aqui na medida em que se relaciona com o processo que leva à constituição de um governo autoritário de partido único. Como se sabe, depois de vários meses de conversações marcadas por rupturas, os bolcheviques acabam assinando um tratado, no dia 3 de março. Muito se falou e escreveu a respeito do tratado de Brest-Litovski e das discussões que o precederam. Na realidade, o julgamento sobre uma coisa e outra é complexo. Lênin quer a paz, quase a qualquer preço, e fica em minoria, apoiado por Kamenev, Zinoviev e Stálin[viii] (alinhamento original). Bukharin quer a guerra revolucionária. Trotski tem uma posição intermediária, a famosa “nem paz nem guerra” (os russos não assinam nada, mas declaram se retirar da guerra). Afinal, depois de uma série de peripécias, que não posso analisar aqui, e graças à adesão de Trotski, Lênin acaba obtendo maioria de um voto em favor da aceitação do ultimatum alemão.[ix] As condições são muito duras (grandes concessões territoriais, pagamento das dívidas com juros, vantagens imensas para atividades comerciais e industriais de cidadãos dos Impérios Centrais atuando no interior da Rússia etc). A oposição ao tratado é geral “por parte de todo o espectro político, da extrema esquerda à extrema direita”.[x] Lênin ganha “reputação de infalibilidade”[xi], quando, com a derrota dos Impérios Centrais, o tratado vem a ser denunciado (18 de novembro de 1918). Mas, observa Pipes, vários fatos (pagamentos aos alemães efetuados ainda no final de setembro etc) mostram que Lênin não previa uma derrota alemã a curto prazo. Mas por que Lênin optara de maneira tão nítida por esta posição? Essa seria a única alternativa para salvar a revolução, ou para salvar o bolchevismo (as duas coisas não vão juntas, simplesmente)? Leonard Shapiro[xii] sugere que Lênin queria evitar a todo custo uma guerra revolucionária, porque esta implicaria, provavelmente, uma abertura política (frente única de vários partidos revolucionários e mobilização popular, diante da ameaça de esmagamento da revolução).[xiii] Por outro lado, quando a situação se agrava, entre a data da aceitação do ultimatum pelos russos (17 de fevereiro) e a ratificação do tratado (14 de março) quando as tropas alemãs iam ocupando sem resistência o território russo (sabe-se que um dos projetos do governo alemão era, simplesmente, a derrubada do governo bolchevique, governo de “judeus” e “maçons”[xiv], Lênin faz aprovar um projeto (“a pátria socialista em perigo”) que contém, entre outras coisas, dois dispositivos: um que obriga os burgueses a trabalhos forçados como cavar trincheiras, sob ameaça de morte, e outro que legaliza a execução imediata de uma porção de categorias de pessoas, entre as quais os “agitadores contra-revolucionários”.[xv] Sob esse aspecto, a guerra acentuaria o caráter autocrático do poder bolchevique, e não o contrário. Por outro lado, que possibilidades tinha a política dos “comunistas de esquerda” (os adeptos da guerra revolucionária)? Pipes insiste que essa posição era menos utópica do que poderia parecer, porque os alemães tinham muito medo de um sobressalto popular contra uma guerra anti-revolucionária, e que, por outro lado, a situação da Alemanha, e mais ainda da Áustria, já era difícil, em termos econômicos e militares.[xvi] Um resultado político maior da assinatura do tratado foi a saída do governo dos socialistas-revolucionários de esquerda. Eles votam contra o acordo no Comitê Executivo Central e se retiram do governo (no próprio governo, segundo Steinberg, citado por Pipes[xvii], os SR de esquerda defendiam uma posição próxima à de Trotski). O que se pode dizer de todo esse desenvolvimento, nas suas implicações para com o nosso tema? Por que, afinal, Lênin tem uma posição tão intransigente em relação ao acordo com as potências centrais? Aparentemente, há aí três elementos. Por um lado, suas dúvidas quanto à disposição ao combate por parte dos soldados, e mais grave do que isto, seu medo de perder o apoio dos soldados, caso se decidisse a continuar a guerra. O bolchevismo tivera o apoio da maioria dos operários pelo menos nas grandes cidades, mas tivera também um enorme apoio dos soldados, e isto na base de um motivo: sua tomada de posição em favor de uma solução para o problema da guerra. Lênin estava bem consciente de quanto dependia dos soldados. Como disse Martov, de certo modo o bolchevismo era um refém nas mãos deles. Em segundo lugar – isto explicitamente – Lênin sabia que uma guerra com a Alemanha e com a Áustria implicaria alguma aliança militar com a entente[xviii] (na realidade, ela implicou, em pequena medida, durante o período de incerteza: o desembarque inglês em Murmansk foi apoiado pelos bolcheviques); e isto ele não queria. Em terceiro lugar, ele devia temer sim algum tipo de incitação a uma frente única, e portanto, a uma abertura política por causa da guerra. Talvez por isso mesmo, quando a perspectiva da guerra parece se efetivar, foge para a frente, propondo imediatamente medidas de tipo terrorista. Quais as razões da oposição? Haveria talvez um certo purismo revolucionário (recusa em entregar territórios ao imperialismo alemão), mas, pelo que vimos, dada a situação alemã, o projeto de guerra revolucionária era menos utópico do que se poderia pensar. Por outro lado, e simetricamente em relação aos motivos de Lênin, havia, pelo menos por parte dos mencheviques (internacionalistas, e a fortiori os outros) o pressentimento de que essa paz representaria um novo fechamento do regime, e de que uma “guerra defensiva”, como eles diziam, teria efeitos contrários a essa tendência negativa.[xix] Entre outros, vinha o argumento: esse governo é capaz de tanta repressão (capaz de “guerra” interna), mas quando se trata dos alemães, eles são pacifistas... E os mencheviques insistiam muito no fato de que os bolcheviques haviam desmoralizado o exército, e agora (todos) pagavam por isso. Havia também os escrúpulos em aceitar uma paz “com indenizações e anexações” (embora sob forma passiva). Isso pesou muito sobre a oposição. O respeito aos “princípios revolucionários” era então alguma coisa de muito sólido. E os próprios bolcheviques hesitavam em passar por cima deles.[xx] É difícil dizer que possibilidades teria a perspectiva de “guerra revolucionária”. Mas a paz leninista tinha certamente um duplo caráter. Por um lado, ela dava um respiro à Rússia e, com ela, de algum modo, à “revolução“, mas ao mesmo tempo, era um elemento, novo naquele momento, de Realpolitik. Ela marcava, de alguma forma, o início de uma Realpolitik, que o stalinismo iria utilizar sem escrúpulo. E em geral, se inscrevia numa política orientada “de cima”, a partir da direção (a pretensa “vanguarda”). A oposição, mesmo se com alguma dose de utopismo, representava a abertura para um movimento impulsionado “de baixo”, a partir das bases. Assim, de uma forma ou de outra, o tratado de Brest-Litovsk acabou representando mais uma pedra na construção do regime autoritário de partido único.


Mas houve um elemento decisivo, ocultado pela historiografia oficial, e até aqui relativamente pouco estudado: a progressiva desintegração da base popular do bolchevismo.[xxi] Sobre esse assunto, pouco se falou, e, como já observei, tendeu-se a transformar em legitimidade (isto é, em real apoio popular), uma dominação de fato, fundada essencialmente na força e na violência. A historiografia oficial, e mesmo em parte para além dela, deu legitimidade ao que foi um processo progressivo de asfixiamento, duplicando no plano do discurso histórico a mitificação operada no plano da realidade efetiva.


A situação começa a se alterar já em dezembro:[xxii] Há um certo número de fatos que testemunham da desconfiança dos operários em relação ao governo bolchevique. Os soldados, na sua grande maioria, desejam a paz, e não querem lutar por nenhum governo. O problema do abastecimento vai se agravando. Em abril de 18, as grandes cidades russas estão à beira da fome.[xxiii]Brovkin indica três causas, a seu ver, determinantes: 1) o fato de que os bolcheviques haviam fechado as agências de abastecimento das assembleias de voto universal (dumas e zemstvos); 2) o Tratado de Brest-Litovsky, que havia alienado da Rússia territórios extremamente ricos em termos agrícolas; 3) o apoio dos bolcheviques à ocupação de terras tinha gerado uma situação de caos no campo, que não era favorável ao desenvolvimento da produção agrícola.[xxiv]O apoio operário ao bolchevismo era muito frágil. Mesmo os autores que tentaram apresentar o movimento de outubro como alguma coisa próxima de uma revolução operária, deixam claro o quanto o “bolchevismo” dos operários era algo bem diferente do apoio a um governo de partido único.[xxv] A ruptura vai aparecer claramente nas eleições para os sovietes das cidades, que ocorrem na primavera de 1918. Brovkin fez um estudo detalhado dos resultados.[xxvi] Há uma série de eleições para diferentes sovietes de cidades em várias regiões da Rússia. O balanço é impressionante. “Em todas as capitais provinciais da Rússia europeia, onde houve eleições e em que os dados não desapareceram, os mencheviques e os SRs obtiveram maioria, na primavera de 1918”.[xxvii] Trata-se de capitais provinciais ou grandes cidades industriais. Os mencheviques, junto com os SR, ganham nos 19 casos (em 30), em que os resultados são conhecidos.[xxviii] A solução adotada pelos bolcheviques para enfrentar esse problema foi a violência. Cidade após cidade, eles intervêm nos sovietes, dissolvendo-os com a ajuda de força armada (guarda vermelha e Tcheka); ou então se recusam a abandonar as posições de direção.[xxix] Um outro fenômeno muito importante vai revelar o descrédito progressivo (pelo menos relativo ) dos bolcheviques junto aos operários. A formação das assembleias de representantes (upolnomochennye), no dizer de Figes “de longe, a ameaça mais poderosa que os bolcheviques encontraram por parte da classe operária”.[xxx] Há controvérsia sobre o momento exato em que nasce o movimento, mas nele tiveram um papel importante os mencheviques de direita, que já não tendo ilusões nos sovietes, mais ou menos controlados pelo poder, se dispuseram a criar uma organização paralela. Porém, o movimento não foi apenas menchevique, dele participam SRs (houve também SRs de esquerda), e muitos sem partido. Há uma discussão para saber qual o peso respectivo dos motivos econômicos e dos motivos políticos no movimento. Parece que os motivos econômicos eram poderosos, já que a situação era muito difícil; mas não há dúvida de que o movimento toma um caráter acentuadamente político, não só como mobilização de protesto contra as violências bolcheviques, como também como um movimento que levanta palavras de ordem políticas mais gerais como a da reconvocação da Assembleia Constituinte (Havia divisões entre os participantes: pró Assembleia Constituinte, pró liberdade dos sovietes sem Assembleia etc).[xxxi] O movimento vai crescendo durante a primavera de 1918. Projeta-se um congresso geral das assembleias de representantes (conhece-se o manifesto de convocação[xxxii], redigido em termos dramáticos) e se marca uma greve geral de protesto contra a repressão no dia 2 de julho. Costuma-se dizer que a greve fracassa. As informações são contraditórias, mas ela fracassa efetivamente no sentido de que não obtém a satisfação das suas reivindicações. Entretanto, dadas as condições, o simples fato de convocar uma greve geral é por si mesmo um resultado, e, de resto, não se sabe ao certo quantos trabalhadores aderiram a ela.[xxxiii] Mas nesse intervalo, há dois fatos essenciais, que vão marcar o fim do período de relativa democracia. A eles se acrescenta, o início do que será propriamente a guerra civil. O primeiro deles é a expulsão de mencheviques e socialistas-revolucionários (não os SR de esquerda) do Comitê Executivo dos Sovietes, que ocorre no dia 14 de junho. Os socialistas-revolucionários de esquerda votam contra, mas a maioria bolchevique assegura a aprovação do ato. Junto com a expulsão, vem uma “recomendação” aos sovietes, para que façam o mesmo. O segundo são as eleições para o soviete de Petrogrado. Os bolcheviques tinham bloqueado, durante meses, as novas eleições que, estatutariamente, deveriam ocorrer. Finalmente, eles se decidem a realizá-las. As eleições ocorrem entre 18 e 24 de junho. Há um área de obscuridade em torno do resultado das eleições, mas uma coisa é certa (qualquer que tenha sido a magnitude exata do fenômeno): as eleições para o soviete de Petrogrado foram manipuladas pelos bolcheviques, de forma a garantir-lhes uma maioria esmagadora. A dúvida não concerne à manipulação, plenamente atestada, mas ao problema de saber precisamente quantos votos bolcheviques e oposição teriam numa eleição livre e honesta. Para discutir os resultados, utilizo o livro de Brovkin, e o livro de D. Mandel (também já citado), autor bastante favorável aos bolcheviques, além de um artigo de L. Haimson, publicado em três números da The Russian Review.[xxxiv] Uma fonte importante é um artigo do jornal que os mencheviques editavam em Estocolmo Echos de Russie (havia também uma edição em alemão) “Le bluff bolcheviste des élections de Petrograd” (nº 18-19).[xxxv] O essencial é o seguinte:[xxxvi] Ao contrário do que ocorrera nas eleições de setembro e outubro de 17 em que se elegera grande parte do soviete anterior, deu-se (isto é, os bolcheviques deram) um grande peso ao voto por organização (tratava-se evidentemente de organizações que eles controlavam). Nas eleições de setembro/outubro de 17, foram eleitos 440 representantes de militares – creio que principalmente soldados – (num total de 791 delegados, portanto, mais da metade). A segunda maior representação era a dos operários, 259. Completavam o soviete, delegados eleitos de forma indireta, a saber, 60 representantes dos sindicatos, 17 das ferrovias, 12 dos partidos políticos e 3 dos sovietes distritais. Assim, a representação direta era esmagadora, embora houvesse também representação indireta. Ocorreu o contrário nas eleições de junho: o voto por organização dominava amplamente. Num total de aproximadamente 677 delegados (o total diminuíra um pouco, mas há alguma dúvida sobre o número exato), havia 144 delegados dos sindicatos (em lugar de 60), 72 representantes das ferrovias (em lugar de 17), 46 representantes dos sovietes distritais (em lugar de 3). Mais 88 delegados de conferências operárias que os bolcheviques haviam organizado para limitar a ação dos conselhos de representantes (claro que estes conselhos não tiveram representação); 58 representantes do exército vermelho, substituindo a seção dos militares que não existia mais: segundo Brovkin, esses representantes do exército vermelho “eram antes indicados pelos bolcheviques, do que eleitos de forma popular”[xxxvii]; e 10 representantes da marinha. Incluindo os militares, os delegados que representavam organizações somavam 418, para um total de 677 (em setembro/outubro, a relação era de 92 para um total de 791). Assim, passa-se de mais ou menos 11% para mais ou menos 61%. Ora, esses delegados ou tinham sido diretamente indicados pelo poder bolchevique, ou vinham de organizações que eles dominavam (seja porque não houvera novas eleições, que renovassem os delegados eleitos em setembro/outubro de 17, seja porque o poder bolchevique já tinha assegurado maiorias por meio de métodos, na generalidade dos casos, muito duvidosos). É graças a esse tipo de manipulação, que eles vão assegurar 327 do total de votos por organização, que foi de 418 (ou 417, segundo uma outra fonte). (A maioria absoluta dos votos não bolcheviques de organizações veio dos socialistas-revolucionários de esquerda [58 em 90] que haviam participado do governo até março). Resta o problema do voto direto. E aqui, surge alguma dificuldade (mas que, como vimos, não põe em dúvida a realidade da manipulação geral). Brovkin cita fontes mencheviques (incluindo Echos de Russie), fontes oficiais e dados de autores russos dos anos 60. David Mandel fornece também alguns dados. Segundo um historiador russo dos anos 60 (M. N. Pothekin), os bolcheviques obtiveram 150 lugares contra 51 mencheviques e socialistas-revolucionários e 27 sem filiação. Os socialistas-revolucionários de esquerda teriam tido 32. Assim, o resultado teria sido: 78 opositores (incluindo os sem partido, em grande maioria senão na totalidade, da oposição), contra 150 bolcheviques, e 32 socialistas-revolucionários de esquerda (que talvez fosse melhor não contar nem num grupo nem em outro). Mas, segundo as fontes mencheviques, os dados são outros: os mencheviques e socialistas-revolucionários teriam tido maioria. Apenas na indústria metalúrgica, já teriam obtido 48 representantes (junto com os sem partido, 53). Entre os têxteis, eles teriam sido derrotados mas por 27 contra 15, e um socialista-revolucionário. O resultado global teria sido de 123 mencheviques e SRs (mais 10 sem filiação), contra 82 bolcheviques e 15 SRs de esquerda. (O total seria aqui de 230 e não de 260). O poder bolchevique teria manipulado, também aí, os resultados. Como julgar? O historiador David Mandel, simpático ao bolchevismo, afirma que os bolcheviques junto com os socialistas-revolucionários de esquerda não poderiam ter tido menos do que 50% dos votos nas fábrica “ainda em funcionamento”.[xxxviii] Ora, o problema é que nas circunstâncias, não se poderia somar simplesmente os votos bolcheviques com os dos socialistas-revolucionários, porque estes estavam em processo de ruptura. Nesse sentido, mesmo admitindo a justeza dos dados de Mandel, o balanço não seria muito favorável ao bolchevismo. Creio que, de fato, eles resistem melhor em Petrogado do que nas províncias. Aparentemente tiveram entre 30% (hipótese menos favorável) e 40% (hipótese mais favorável) dos votos operários. Isso indica um quadro diferente das províncias, mas que não tem mais nada a ver com a situação de setembro/outubro, quando obtiveram uma maioria tranquila. Não tendo aqui os dados diretos sobre a relação numérica exata existente no soviete, em setembro, poderíamos utilizar os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte em novembro. L. Haimson, no seu artigo já citado da The Russian Review, fornece os resultados obtidos pelos diferentes partidos em bairros populares de Petrogrado.[xxxix] Vê-se por essas dados que, em distritos populares periféricos, a porcentagem dos votos bolcheviques em relação aos SR (que se apresentaram com uma única chapa, englobando esquerda e direita), e excluindo os votos liberais (kadetes), varia mais ou menos entre 60% e 80% dos votos. Se o voto dos distritos operários permite medir o voto para o soviete (e em grandes linhas, isso deve ser verdade), os votos operários pró-bolcheviques passaram assim de mais ou menos 70% a mais ou menos 35%, e isto em Petrogrado (fora de Petrogrado, a situação do bolchevismo é muito pior). As diferentes formas de manipulação asseguraram aos bolcheviques um pseudo-resultado igual ao dos votos que eles tiveram em novembro: a decomposição da maioria bolchevique é escamoteada, e eles aparecem “consolidando a sua vitória”, com até mais de 70%! Enfim, mesmo se permanece alguma dúvida sobre a sua amplitude, houve certamente uma enorme manipulação, que garantiu a vitória dos bolcheviques e criou a impressão de que eles haviam consolidado legitimamente o seu poder. Foi o contrário o que de fato aconteceu. Como foi assinalado ( por Orlando Figes[xl]), a manipulação de eleições não é apanágio do stalinismo: ela começa na época do bolchevismo e, no quadro do “comunismo”, foi inventada pelos bolchevistas.


Depois desta eleição, os acontecimentos se precipitam. Valendo-se da sua “vitória”, o novo soviete põe na ilegalidade a assembleia de representantes (27 de junho).[xli] Uma conferência de 40 representantes operários, de diferentes cidades (Petrogrado, Moscou, Tula Sormovo etc), reunida em Moscou em 23 de julho, é dispersado pela polícia, e os seus participantes são presos.[xlii]


A sequência da história, que não vamos analisar nesse texto, é conhecida. Os socialistas-revolucionários de esquerda perdem as ilusões de que poderiam vencer no quinto congresso dos sovietes, marcado para o início de julho, dada a manipulação de credenciais ou resultados. Durante o congresso, eles cedem à velha tentação terrorista. O embaixador alemão von Mirbach é assassinado, e os SR de esquerda tentam uma espécie de insurreição.[xliii] A guerra russo-alemã, que eles pretendiam provocar através do atentado, não vem. O governo bolchevique controla a situação internacional, e depois de um momento de susto, também a situação militar nacional. Como resultado do episódio, há prisões e execuções de socialistas-revolucionários de esquerda. Os SRs de esquerda têm o mesmo destino dos mencheviques e SRs: eles são expulsos do Comitê Executivo dos Sovietes, em julho. No final de agosto, uma militante SR pratica um atentado contra Lênin (as circunstâncias desse atentado são, até hoje, obscuras). O terror vermelho é oficializado em 5 de setembro. A história da resistência de esquerda recomeçará depois da guerra civil com as mobilizações operárias anti-bolcheviques de 1920, e com a insurreição de Kronstadt, de 1921.


Conclusão: No início desse trabalho, eu havia levantado uma séria de perguntas sobre a Revolução Russa, de fevereiro de 17 até junho/julho de 1918. Em forma bem resumida, as perguntas eram: 1) (para o período anterior a outubro ou imediatamente posterior a ele) o movimento de outubro foi realmente uma revolução? Por que, ou em que condições os bolcheviques instituíram um poder de partido único?; 2) (para o período posterior a outubro): por que razões o poder bolchevique, que admitiu certos espaços de liberdade, evolui para um poder autocrático? Essa evolução foi provocada pelo desencadeamento da guerra civil? A base popular do bolchevismo aumenta ou diminui no curso dos primeiro semestre de 1918? Creio que a maioria dessas questões já foi respondida, mas tentemos resumir os resultados e tirar algumas conclusões finais. A primeira pergunta não pôde ser respondida nem na forma habitual, segundo a qual, outubro foi realmente uma revolução, nem na forma liberal extrema, segunda a qual, outubro foi simplesmente um golpe de Estado. Outubro foi um movimento “partidário” (e, nesse sentido, “de cúpula”) apoiado só por uma minoria dos membros das classes exploradas do país, mas que contou com certo tipo de apoio (na realidade um apoio em boa medida ilusório) da maioria do proletariado. A que remete a expressão “certo tipo de apoio”? Por um lado, ao fato de que a participação efetiva das “massas” (inclusive o proletariado, que votava majoritariamente nos bolcheviques) no movimento, foi muito pequena. Por outro lado, ao fato de que o que a grande maioria dos operários e grande parte dos camponeses desejava era o fim do governo provisório e, principalmente no que se refere aos operários, um governo dos sovietes”. Essas circunstâncias, se não eliminam a realidade do “golpe de Estado”, atenuam em alguma medida a brutalidade da operação. Houve golpe sobre o fundo de um apoio ambíguo e não participante. Aqui já podemos encadear a segunda pergunta. Por que os bolcheviques instituíram um governo de partido único? As “massas” – já indicamos – não se manifestaram a favor de um governo de partido único, e muito provavelmente não queriam tal governo, desejavam sim um poder múltiplo “dos sovietes”. O governo que nasce de outubro será, entretanto, composto apenas por representantes do partido bolchevique (a situação se altera de dezembro a março, quando os socialistas-revolucionários de esquerda participam do poder, mas o peso que eles tiveram foi, sem dúvida, pequeno). Por um lado, é evidente que Lênin e Trotski – insistamos, Lênin e Trotski, de forma alguma todo o partido bolchevique – jogavam a carta da “vanguarda”. Eles não excluíam coalizões, mas coalizões do tipo daquela que fariam em dezembro com os socialistas-revolucionários de esquerda; coalizões que não alteravam essencialmente o rolo compressor do partido bolchevique. Nesse sentido, se surgiu um governo de partido único, foi porque este era o projeto de Lênin e Trotski, e eles o realizaram com a ajuda de uma fatia do partido, e com a habilidade que lhes é conhecida. Mas evidentemente, a oposição facilitou o seu trabalho. É impossível criticar a política do bolchevismo, sem criticar conjuntamente a política da direita menchevique e da direita socialista-revolucionária. E isto antes e depois de outubro. A exigência supersticiosa de uma aliança com os liberais, no momento em que os liberais se recusavam a dar os passos que a situação exigia e – mais do que isto – no momento em que estes tendiam a buscar um acordo com as forças mais retrógadas (o radicalismo da extrema-esquerda não justifica essas tendências), foi um erro imenso, que abriu caminho para o poder bolchevista. Durante o movimento de outubro e depois dele, menchevistas de direita e socialistas-revolucionários de direita jogaram frequentemente a carta perigosa do boicote (especialmente o do Comitê Executivo Central dos Sovietes), com os consequências que se conhecem. A meu ver, isso tudo não elimina, entretanto, a responsabilidade do bolchevismo. Mas por que o governo bolchevique, depois de admitir um mínimo de jogo democrático, mergulha num autocratismo terrorista? É a guerra civil que explica essa “involução”, conforme reza a tese tradicional? Se é difícil dizer em que momento exato começou a guerra civil,[xliv] nem a primeira fase desta, que vai até o início de junho de 18, nem a segunda fase, que começa em julho de 18, explicam o fechamento do regime, embora certamente o sobredeterminem. A primeira fase não explica, porque não havia ameaça maior ao poder bolchevista. E se o fechamento de certo modo se completa com o levante dos tchecos,[xlv] que assinala o início da segunda fase, a da “plena” guerra civil, o processo de fechamento tinha começado bem antes e, apesar de alguns momentos de trégua, foi progredindo de forma inexorável. Isso mostraria que a primeira fase já exigia um processo de fechamento gradual? Não, primeiro porque não há evidência de que as medidas autoritárias foram respostas graduais a um começo de guerra civil (elas não crescem no ritmo dessa guerra, salvo a partir do início de julho, além do fato de que, como já vimos, a ideia de um poder autocrático estava dada de início como peça essencial do projeto leninista); e, mais do que isto, porque há outro fator que, esse sim, explica o fechamento progressivo. Esse fator é, como vimos, a deterioração progressiva da legitimidade do bolchevismo perante a única força estável que os apoiava, o proletariado (os camponeses-soldados querem a paz, e logo são dispersados enquanto força política própria). Tentei fornecer os elementos empíricos essenciais que mostram como o bolchevismo se desgasta perante as massas operárias (também, mas um pouco depois, perante as massas camponesas), desgaste cujos efeitos já são decisivos uns quatro meses depois de outubro... E isto, em boa parte, como resultado do autoritarismo do poder bolchevique Este fato bem atestado, foi sistematicamente mascarado na prática e na historiografia oficial. De tal forma que se poderia dizer: é menos verdade afirmar que a guerra civil provocou a autocracia de partido único, do que dizer que o autocratismo de partido único provocou a guerra civil.[xlvi]


Dessas notas históricas e críticas, pode-se tirar algumas conclusões. Primeiro, como já foi dito, o de que a história da revolução russa não foi vítima apenas das falsificações stalinistas. Houve e há uma mitologia leninista-trotskista que oculta e deforma elementos fundamentais, no plano dos fatos como da sua significação. O que não significa que as teses liberais possam ser aceitas tais e quais, como “moeda corrente”.


A segunda conclusão, esta não no plano da historiografia mas no da filosofia da história, é a de que é difícil não valorizar as tendências, que não eram numericamente desprezíveis, daqueles que se recusavam a subir tanto na canoa do bolchevismo, como na canoa do menchevismo de direita e dos socialistas-revolucionários de direita. Esse centro, no interior da esquerda, foi certamente o que viu mais longe. Se ele acertou taticamente, isto é outro problema. Ele erra bastante, mas as condições lhe eram particularmente desfavoráveis. Quem constitui esse centro? Em boa medida os socialistas-revolucionários de esquerda, embora eles tenham errado ao aceitar o fechamento da Assembleia Constituinte (e tenham errado de novo, depois, ao apelar para os assassinatos). Mas eles insistiram na exigência de um governo plural dos sovietes, e foi esta a razão pela qual se recusaram a participar do primeiro governo pós-outubro. Além deles, houve duas forças de oposição de esquerda: o menchevismo internacionalista comandado por Martov, e o bolchevismo moderado cujo principal figura foi certamente Kamenev,[xlvii] (houve ainda outras, a “mezhraionka” – os “interdepartamentais” – o grupo social-democrata independente, ao qual se liga Trotsky antes de aderir ao bolchevismo, além dos anarquistas [mas esses, no início – parte deles pelo menos – apoia o bolchevismo mais radical]). Martov combate sem concessões o menchevismo oficial, e acaba obtendo, tarde demais, entretanto, a hegemonia dentro do partido. Aqui não é o lugar para comentar o difícil problema de saber até onde haveria um caminho tático mais feliz para os menchevistas internacionalistas (em 18, Martov dirige com muita coragem e perspicácia o partido menchevique, o que ele faz até a sua morte na imigração em 23, embora entre 18 e 19 tenha tido, certamente, um período de relativa desorientação, marcado por uma atitude excessivamente pró-bolchevique). Kamenev passou para a história oficial como aquele que não entendeu a necessidade da revolução, mas provavelmente ele representou o contrário. Ele e alguns outros (Riazanov, Rykov, Miliut também Zinoviev, mas este é uma figura muito discutível) viram muito bem o curso funesto que tomaria a revolução sob a batuta do leninismo-trotskismo. Sua capitulação posteriores não elimina o mérito deles. (Trotski foi muito mais forte na resistência ao stalinismo, mas é difícil esquecer o que parece evidente: a sua adesão tardia ao bolchevismo – como a de seu grupo, os inter-departamentais, que se pretendiam independentes das duas facções – foi um fato maior na catástrofe em que desembocou o processo revolucionário). Pensar o que significou esse “centro” revolucionário, é, a meu ver, um ponto privilegiado para toda reflexão crítica sobre a revolução russa. Reflexão que, ao contrário das aparências, não é só uma exigência teórica ou histórica, mas uma exigência prática imediata, inclusive para o Brasil.


Paris, Boulogne-Billancourt (França) e São Paulo; junho/agosto de 2009 e outubro/novembro de 2010.































fevereiro #

3



[i]Ver a respeito Evan Mawdsley, The Russian Civil War, Edimburgh, Birlinn, 2005 (1987), p. 17 e s., e p. 50.

[ii]Idem, ibidem, p. 25 e 26.

[iii]Idem, ibidem, p. 22.

[iv]Ver Oliver Radkey, Russia goes to Polls, Ithaca e Londres, 1989 (1950), p. 37 e s. Como observa Pipes, se se trata de medir o apoio de que dispunham os bolcheviques em outubro, é preciso considerar o fato de que a eleição se deu depois da promulgação do decreto sobre a paz, o que deve ter modificado o resultado em favor deles. Mas essa melhora não dura muito.

[ii]Sobre o Terceiro Congresso, ver Brovkin, op. cit., p. 62 e Pipes, op. cit., p. 555.

[vi]Ver Pipes, op. cit., p. 571, 572.

[vii]Idem, ibidem, p. 576.

[viii]Idem, ibidem, p. 582.

[ix]Idem, ibidem, p. 587.

[x]Idem, ibidem, p. 597.

[xi]Idem, ibidem, p. 603.

[xii]Ver Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union, Londres, Eyre & Spottiswoode, 1960, p. 184, e o comentário de Brovkin, op. cit., p. 66.

[xiii]Pipes, op. cit., p. 590. Shapiro observa que “as únicas unidades no exército, cujo moral era bom, eram anti-bolcheviques”.

[xiv]Idem, ibidem, p. 586.

[xv]Idem, ibidem, p. 587, 588.

[xvi]Idem, ibidem, p. 572.

[xvii]Idem, ibidem, p. 583, n*.

[xviii]Ver as “Teses...” de Lênin, de 7 de janeiro (20), citadas por Pipes, op. cit., p. 582: “[o governo russo] se tornaria um agente da França e da Inglaterra”.

[xix]Ver a respeito Brovkin, op. cit., p.67: “Os líderes mencheviques acreditavam que a guerra defensiva oferecia uma oportunidade notável no sentido de sustar a escalada na direção do conflito civil na Rússia, e no sentido de mobilizar apoio para a unidade nacional e a Assembleia Constiuinte”.

[xx]Ver E. Acton, Vl. Cherniaev e W. G. Rosemberg, A Critical Companion to The Russian Revolution 1914-1921, Bloomington e Indianoppolis, Indiana University Press,1997, p. 296, artigo de Michael Melancon, “The left Socialist Revolutionaires“. Mas para uma análise detalhada da posição dos SR de esquerda – inclusive nas suas peripécias – em relação ao tratado, ver Lutz Höfner, Die Partei der Linken Sozial-Revolutionâre in der Russischen Revolution von 1917/18, Colônia, Weimar, Viena, Bôhlau Verlag, 1994, particularmente p. 331-394. Para o contexto internacional do Tratado, incluindo a análise da posição dos governos dos Impérios Centrais, ver Pipes, op. cit., 567-605.

[xxi]Sobre essa questão fundamental – ela será o centro da parte final desse texto, e, até certo ponto, do conjunto dele – há um livro pioneiro que é Leonard Shapiro, The Origin of the Communist Autocracy, political opposition in the soviet state, first phase, 1917-1922, Londres, The London School of Economics and Political Science, G. Bell and Sons, LTD, 1955. Dos livros recentes, destaco Brovkin, op. cit. e também (livro esgotado, que só obtive quando esse texto já estava escrito) Behind the Front Lines of the Civil War: Political Parties and Social Movements in Russia, 1918-1922, Princeton, 1994 .Ver também Vladimir Brovkin (ed), The Bolcheviks in Russian Society, the revolucion and the civil wars, New Haven e Londres, Yale University Press, 1997. Para o nosso tema, interessam especialmente os artigos de O. V. Volobuev sobre o menchevismo, o de Michael Melancon sobre os SR de esquerda, o de Scott Smith sobre os SR, e o de Sergei Pavliuchenkov sobre os operários sob o “comunismo de guerra”. O texto de Brovkin sobre as mulheres é impressionante. (Já dispomos de um exemplar deste livro.)

[xxii]Ver Brovkin, op. cit., p. 54 e s..

[xxiii]Idem, ibidem, p. 95.

[xxiv]Idem, ibidem, p. 95-97.

[xxv]Ver por exemplo Diane Koenker, Moscow Workers and the 1917 Revolution, Princeton (N.J), Princeton University Press, p. 336-346. Koenker mostra que a maioria dos operários moscovitas era pela derrubada do governo provisório mas sem se dispor a uma participação ativa (ver, p. e., p. 342), e fica evidente pela sua descrição que os operários eram, na realidade, favoráveis ao “poder dos sovietes” (ver, p.e., 340). Ver também David Mandel, The Petrograd Workers and the Soviet Seizure of Power, Londres, Macmillan, 1984, p. e., p. 300 onde o autor se refere à “batalha pelo poder do soviete” (Brovkin, op. cit., p. 55, alude aos dois livros).

[xxvi]Pipes, corrobora esses dados através de um manuscrito inédito, em russo de G. Aronson (“Na perelome”, “na ruptura”), que faz parte dos arquivos Nievskii, manuscrito que ele considera o melhor balanço da ruptura (ver Pipes, op. cit., p. 558, 560 e 895, n. 40).

[xxvii]Ver Brovkin, op. cit., p. 159.

[xxviii]Brovkin faz uma análise por região e por cidade: região industrial central – Kaluga, Riasan, Tver, Vladimir, Kostroma, Tula, Yaroslav; região das terras negras – Orel, Voronezh, Kursk, Tambov; regiões do alto Volga e dos Urais – Vologda, Arkhangelsk, Saratov, Nijnii Novgorod, Samara, Viatka, Kasan; e região baixo Volga, Kuban e Don – Rostov, Tsaritsyn...).

[xxix]Para a análise detalhada dessas intervenções, ver Brovkin, op. cit., p. 126-160. Exemplos: intervenção no soviet de Kaluga (em 8 de junho) (ver p. 131), recusa em abandonar os postos no Comitê Executivo de Kostroma (ver p. 132), dispersão do soviet de Tula (ver p. 137), dispersão do soviet de Yaroslav (ver p. 141), dispersão do soviet de Orel (ver p. 142), dispersão do soviet de Zlatous (ver p. 154) etc.

[xxx]Ver Figes, op. cit., p. 624.

[xxxi]Sobre o movimento das assembleias de representantes ver Brovkin, op. cit., sobretudo p. 162-196, 221-222, 247-248 e 251-254. Também Grégorii Aronson, “Ouvriers russes contre le bolchevisme” in Le Contrat Social, Paris, vol. X, nº4, julho-agosto de 1966, p. 201 e s. Uma posição contrária à de Brovkin, tentando reduzir a importância das assembleias de representantes (seus motivos seriam essencialmente econômicos etc), pode ser encontrada no artigo de W.S. Rosenberg, “Russian Labor and Bolshevik Power after October”, Slavic Review, v. 44, n. 2, verão de 1985. O artigo vem seguido por duas intervenções, de Moshe Levin e de Vladimir Brovkin, e de uma tréplica final de Rosenberg. O texto traz dados importantes, mas os pressupostos de Rosenberg parecem frágeis e muito marcados pelas posições “oficiais” do bolchevismo. É um pouco surpreendente que Figes (op. cit., p. 852, n. 62) prefira a interpretação de Rosenberg à de Brovkin. Parece difícil negar que tenha havido também uma motivação política importante.

[xxxii] “A vida se tornou dura e difícil. Mais e mais fábricas estão sendo fechadas. O exército de desempregados é cada dia maior. A fome e o domínio arbitrário se tornam cada vez mais fortes e não há saída... Nessas horas terríveis e agitadas não podemos esperar ajuda de parte alguma. Temos de ajudar a nós mesmos... Trabalhadores de toda a Rússia, nós os representantes (upolmomochennye) das fábricas e usinas (plants) de Petrogrado os convocam para o Congresso Pan-Russo. Representantes livremente eleitos da classe operária virão de todas as cidades, e juntos procurarão e hão de encontrar o caminho da salvação para eles mesmos e para todo o país: suprimento alimentar, desemprego, ruína geral, ausência de direitos para os povo, renascimento das nossas organizações – tudo será discutido e decidido” (Brovkin, op. cit., p. 245).

[xxxiii]Ver Brovkin, op. cit., p. 248.

[xxxiv]Ver L. Haimson, “The Mensheviks after the October Revolution”, part I, The Russian Review, 1979, v. 38, nº 4, p. 470, 471. As outras duas partes do artigo de Haimson, a ultima das quais tem importantes materiais sobre as discussões na única sessão da Assembleia Constituinte, foram publicadas na mesma revista, respectivamente no vol. 39, nº 2, abril de 1980, e no vol. 39, nº 4, outubro de 1980.

[xxxv]Consegui um número do jornal na Bibliothèque Nationale de France, de Paris, mas infelizmente não era o que contém o artigo (aparentemente a British Library também não possui o nº 18-19; ele existe nas coleções americanas).

[xxxvi]O que segue resume o texto de Brovkin, op. cit., p. 239 e s.

[xxxvii]Brovkin, op. cit., p. 239.

[xxxviii]Ver D. Mandel, op. cit., p. 406, ele fornece alguns dados a respeito, mas admite que, na realidade, ter-se-ia, talvez, um quadro menos favorável aos bolcheviques.

[xxxix]Ver L. Haimson, art. cit., Part I, The Russian Review, 1979, v. 38, nº 4, p. 470, 471.

[xl]Ver Prlando Figes, A People's Tragedy, the russian revolution 1891-1924, Londres, Pimlico, 1997 (1996), p. 685. Devo a localização da referência a Cícero Araújo.

[xli]Ver Brovkin, op. cit., p. 243.

[xlii]Ibidem, ibidem, p. 254.

[xliii]Há dúvidas sobre quais eram efetivamente os seus objetivos, mas eles não parecem ter tentado, de fato, tomar o poder.

[xliv]Ver a respeito o importante livro de Evan Mawdsley, op. cit., por exemplo, p. 54 e 75.

[xlv]A guerra civil “plena” ou propriamente dita, começa com um fato curioso e, em certo sentido, acidental. Soldados tchecos, na maioria soldados do exército austro-húngaro aprisionados pelos russos, abandonavam o país, com o consentimento do governo soviético. Viajando pela trans-siberiana, eles deveriam, em princípio, deixar a Rússia por Vladivostock, com o projeto de se juntar, na Europa, às tropas que lutavam contra os Impérios Centrais. Um incidente de percurso, e uma declaração brutal de Trotski, leva os tchecos a se revoltarem. Eles darão apoio à oposição SR que se organizava no Volga, sob a bandeira da Assembleia Constituinte. Isso marca, propriamente, o início da guerra civil.

[xlvi]Ver Mawdsley, op. cit., p. 75.

[xlvii]Ver as judiciosas considerações sobre a importância política de Kamenev em Marc Ferro, A Revolução Russa de 1917, tradução de Maria P.V. Resende, São Paulo, Perspectiva, 2004 (1967), p. 144, 145 (trata-se do livro “pequeno” de Marc Ferro, sobre a revolução).