revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ruy FAUSTO (com agradecimento a Cícero ARAUJO) [i]

em torno da insurreição de 1917 e dos seis primeiros meses do poder bolchevista

 

(1ª parte)

 

Introdução – A história da insurreição de outubro de 1917, e dos primeiros tempos do poder bolchevista, foi, desde sempre, mais ou menos mitificada. A versão leninista, ela mesma já bastante enganosa, deu lugar, à medida que Stálin começava a sua carreira vitoriosa, a uma versão falsificada, e depois fantasiosa, no estilo das produções ideológicas do stalinismo. Com a contestação krushevista e depois gorbatcheviana de Stálin, apesar dos limites e dos interregnos de recuo, liberouse de certo modo a antiga versão leninista, menos fantasiosamente falsificadora, mas de qualquer modo pouco objetiva. A atividade crítica da historiografia antileninista (liberal e socialista nãoleninista), que data pelo menos dos anos 30, e já tem portanto, uns oitenta anos de existência, foi muito salutar. Não, entretanto, sem ter dado respostas às vezes unilaterais, às vezes simplificadoras, no seu afã de desconstruir a versão oficial. Não entrarei aqui no detalhe da historiografia sobre a insurreição de outubro (digase de passagem, na discussão dessas leituras, a versão tomada como tradicional é a que questiona as teses bolchevistas, e a que as tenta, mais ou menos reabilitálas, é chamada de “revisionista”; mas esse ponto – não, claro, a própria discussão – remete a um problema de terminologia).


O presente texto é uma versão muito reduzida de um trabalho de mais fôlego. O balanço crítico que comecei a elaborar tomou dimensões incompatíveis com uma publicação em revista. Na impossibilidade de publicar aqui o texto completo, apresento uma discussão das questões essenciais, deixando de lado uma parte da sua fundamentação “empírica” (as aspas remetem ao fato de que utilizei principalmente, mas não só, é verdade – já que há fontes primárias traduzidas[ii] – fontes secundárias). De qualquer modo, espero ter fornecido o essencial das referências que fundamentam as teses aqui apresentadas. Mais do que isto, além do que já fornece o corpo do artigo, decidi interpolar no texto, na forma de quatro excursos, cujos temas são indicados, um material (em geral) narrativo relativamente amplo.[iii] É que a história dos anos 19178 na Rússia é, apesar das aparências, muito mal conhecida e, como já disse, obscurecida por mitos persistentes. A acrescentar que os detalhes e a microhistória têm, aqui pelo menos, uma importância muito maior do que a que se supõe. Pode dizer, que, sem ela, é difícil entender o que foi a política do bolchevismo (a de Lênin e Trotski, em particular), nos anos 191718.


1. Seria possível esquematizar os problemas principais que se colocam, quando se pretende refletir sobre a insurreição de outubro de 1917 e sobre o que ocorre no primeiro semestre de 1918. As questões são essencialmente as seguintes. A insurreição de outubro de 1917 foi uma verdadeira revolução? Ou foi, como pretenderam alguns historiadores e homens políticos – de direita, e de esquerda nãoleninista – mais um golpe de Estado do que uma revolução? Pergunta já antiga, e que merece discussão. A segunda questão é: porque razões o poder estabelecido em outubro (novembro) de 1917 era constituído apenas por membros do partido bolchevique? Ou seja, por que, ou em que condições, a insurreição de outubro leva ao poder um governo de um só partido? Tais perguntas remetem aos acontecimentos que antecedem o movimento de outubro, e ao processo do próprio movimento. As questões seguintes, de igual, ou talvez de maior importância, remetem ao que ocorreu no período de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 1918. Elas são essencialmente duas. Por que razão ou razões, o poder bolchevista evolui, ou involui, em alguns meses, de um regime de estilo autocrático, mas no interior do qual subsistiam certos espaços de liberdade, para um regime autocrático fechado? Essa mudança decorre da irrupção da guerra civil, como se pretende frequentemente? E, segunda pergunta: qual o curso que tomam as relações entre as massas populares e o bolchevismo, no período que vai de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 18? A base popular do bolchevismo aumenta, como se pretende frequentemente, ela se mantém no nível alcançado em outubro, ou ela se deteriora substancialmente? Eis aí o quadro das questões. Dados os limites desse texto, não poderia desenvolver muito a discussão, e, como já observei, as referências às fontes têm de ser mais ou menos limitadas.


2. Para a interpretação bolchevista tradicional, nada poderia parecer mais abstruso do que pôr em dúvida o caráter de “revolução” do movimento de outubro. Entretanto, o problema é menos simples do que parece. “Revolução” se opõe, em geral, a “golpe de Estado”. Marc Ferro, autor de uma história da revolução de 17, afirma em algum lugar que, em outubro de 1917, houve as duas coisas. Revolução e golpe. Mas essa resposta é ela mesma ambígua. Que houve “golpe de Estado”, no sentido de que houve uma preparação militar vinda de cima para se apossar do poder, não é negada nem por Trotsky, na sua História da Revolução Russa. A questão é saber se esse “golpe de Estado” responde ou corresponde ao lado “revolução” do processo (se supusermos que houve também esse lado), ou se pelo contrário, ele, de algum modo, se lhe opõe.


Há razões para pôr em dúvida (ou “atenuar”, de alguma forma) o caráter de “revolução“ do processo de outubro . A participação popular foi muito pequena. Trotsky fala numa participação total ativa máxima de 25 mil a 30 mil,[iv] o que, observa o historiador Orlando Figes, representaria “mais ou menos 5% de todos os operários e soldados da cidade”. Claro que se poderia discutir a importância do número de participantes. Mas observese, na revolução de Fevereiro, havia algumas centenas de milhares de pessoas na rua.[v] Dirseá que isso é normal, na medida em que Fevereiro foi uma revolução de muitas classes, enquanto que outubro teria sido uma revolução operária. O problema é que, em Fevereiro, já no dia 23, havia uns 100 mil operários na rua,[vi] “um terço da força de trabalho industrial da cidade”. No dia 25, havia uns 200 mil.[vii] A diferença em relação a outubro é muito grande. E observese que os 25 ou 30 mil participantes em outubro, de que fala Trotsky, representam o conjunto dos participantes ativos. Na famosa tomada do Palácio de Inverno, teria havido menos do que 15 mil, talvez bem menos.[viii] Como se sabe, a vida da cidade funcionou mais ou menos normalmente durante o episódio insurreicional. Enfim, se “revolução” indica uma grande mobilização de massas, outubro não foi uma revolução. Entretanto, é verdade que os bolcheviques tinham apoio popular, de soldados, marinheiros e operários. Eles haviam conseguido maioria no soviete de Petrogrado, em setembro e também no de Moscou, e as eleições para as dumas mostram o seu progresso. Por outro lado, eles seriam majoritários no Segundo Congresso PanRusso dos Soviets, que se abre no momento mesmo do movimento de outubro (inicialmente – antes da retirada de mencheviques e SocialistasRevolucionários (SR) – os bolcheviques tiveram maioria relativa; absoluta, só com seus aliados SR de esquerda). Mas, além do fato de que a maioria popular de que eles dispunham se manifestou muito pouco em outubro, aqui abremse alguns problemas (em parte já invadindo a segunda questão). O primeiro é o de saber o que queriam os eleitores do partido bolchevique, assim como os delegados aos sovietes e ao Congresso dos Sovietes. Certamente, eles queriam o fim do Governo Provisório. Porém, a esquerda menchevique dirigida por Martov também o queria, e também a esquerda SocialistaRevolucionária (além de outros grupos da esquerda da esquerda). Mesmo o Préparlamento[ix] havia votado uma moção de desconfiança em relação ao Governo Provisório. Mas essas maiorias dentro e fora dos sovietes, queriam um governo bolchevique, e, mais especificamente, só bolchevique? Tudo o que se sabe leva à idéia de que o que eles queriam era “um governo dos sovietes”, sem dúvida um governo não coinciliacionista dos sovietes, mas um governo que não fosse só do partido bolchevique. Inversamente, majoritário ou não, Lênin não pensa em manifestações de massa, e quanto aos sovietes e, particularmente, ao Congresso, fora um curto episódio sobre o qual voltarei logo mais adiante, ele não pretende, de modo algum, ser alçado ao poder através desses órgãos. Excetuando o referido interregno, ele conspira ativamente, e trata de convencer o seu partido de que é preciso não só tomar o poder, mas de que é necessário tomálo antes do Congresso dos Sovietes (como se sabe, Trotsky diverge, ele quer que as duas coisas coincidam, o que, por razões que veremos, acaba acontecendo). Poderseia perguntar: se Lênin convocasse as “massas” para grandes manifestações, elas teriam saído à rua? Se ele as tivesse convocado, certamente teria havido mais gente na rua, mas é duvidoso que houvesse muita. Há certa convergência, na idéia de que havia um refluxo do movimento de massas. Porém, o essencial é que ele não convocou. Ainda mais importante, por que Lênin quer tomar o poder antes do Segundo Congresso? A resposta que dá Figes parece convincente. Quaisquer que fossem os riscos, Lênin queria ter as mãos livres para governar, e não depender dos sovietes. Um governo indicado pelos sovietes teria de ser, de algum modo, um governo de coalisão. Ora, se os bolcheviques tomassem o poder antes do Congresso, haveria possibilidades bem maiores de que esse governo fosse um governo só do partido bolchevique. Lênin nunca deixou dúvidas sobre o problema de saber como ele gostaria que os bolcheviques governassem. A posição de Trotsky indicava uma diferença importante? Trotsky estava um pouco mais interessado em legitimar o poder bolchevique pelos sovietes, mas aparentemente não tinha uma perspectiva muito diferente da de Lênin.


Aqui, já entramos na segunda questão. Por que o governo que é entronizado em outubro é apenas bolchevique? A perspectiva de Lênin até as jornadas de julho é a de tomada do poder pelos sovietes (ou pelo menos a palavra de ordem é “todo poder aos sovietes”). Ele a retira, em seguida, porque considera que os sovietes se passaram para os moderados, para recolocála em setembro, quando os bolcheviques se tornam majoritários. Em setembro, há um momento em que ele considera possível uma tomada do poder através dos sovietes, com a participação de outras tendências (SR de esquerda e mencheviques internacionalistas, essencialmente). Kamenev, o melhor representante dos bolcheviques moderados tenta um acordo, e Lênin o apoia, isso no começo de setembro. Em quê tal tentativa poderia redundar não sabemos. Supondo que o acordo se fizesse – e em que bases ele se faria? – é de se perguntar como se comportariam os bolcheviques nessa coalisão. Mas fracassada essa tentativa, seu projeto passa a ser o de um governo apenas bolchevique, ou, em todo caso, um governo em que os bolcheviques teriam as mãos livres. Sabese o que aconteceu depois.



Excurso I Lênin e a tomada do poder por um só partido


Chegando à Rússia em abril, Lênin dá como perspectiva a luta contra o Governo Provisório e contra a direção moderada dos Sovietes, e propõe uma nova revolução e um governo dos sovietes (e não uma república parlamentar).[x] Perspectiva que não foi apoiada imediatamente por quase ninguém no partido. No final do mês, o projeto é um pouco atenuado, porque se reconhece a necessidade de um “longo período de agitação” para que as massas sigam o partido no seu caminho em direção à nova revolução.[xi] Depois das jornadas de julho e da repressão contra a extremaesquerda, Lênin retira a palavra de ordem de “todo o poder aos sovietes” para recolocála em setembro,[xii] quando os bolcheviques passam a ter maioria. Esse é o momento em que se abre a possibilidade de um acordo no interior da esquerda, e de uma tomada do poder pacífica pelos sovietes. Kamenev, o líder bolchevique que encarna melhor uma perspectiva democrática, se esforça por concluir uma aliança tripartidária, e é mesmo apoiado por Lênin, na primeira quinzena de setembro. Mas a aliança fracassa, os resultados da Conferência Democrática [uma conferência organizada por iniciativa dos SRs e mencheviques, para discutir precisamente a questão da aliança com os liberais] são contraditórios, e Lênin volta à perspectiva da revolução armada. Esse episódio foi muito utilizado para mostrar as intenções “democráticas” de Lênin, mas por várias razões, ela não prova muito. Lênin nunca pensou num verdadeiro governo de coalisão. Que o seu projeto sempre foi o de governar em regime de partido único poderia ser confirmado ainda por uma carta que ele envia a Lunatcharsky em 25 de março de 1917: “A independência e a separação do nosso partido, nenhuma aproximação qualquer que seja com outros partidos – são para mim um ultimatum. Sem isto, seria impossível ajudar o proletariado a avançar, através da revolução democrática, até a comuna, e eu não obedecerei a outros objetivos”.[xiii] Figes critica a ilusão de Deutscher, segundo o qual Lênin queria fazer do soviete uma espécie de parlamento à inglesa:[xiv] “[O abandono, entre julho e setembro da palavra de ordem “todo poder aos sovietes”] era revelador da atitude de Lênin em relação aos sovietes, em cujo nome o seu regime viria a ser fundado, [o fato de] que, sempre que os sovietes deixavam de servir os interesses do seu partido, ele estava pronto a abandonálos”.


Formado o Comitê Militar Revolucionário dominado pelos bolcheviques, o qual vai assegurando poder sobre a tropa, Kerensky reage tentando fechar dois jornais bolcheviques. Começa uma mobilização de soldados e guardas vermelhos (os guardas vermelhos eram destacamentos de operários, constituídos no início, independentemente, mas que logo cairão sob o controle dos bolcheviques). Quando começa o Congresso dos Sovietes, a cidade já  está praticamente nas mãos dos adversários do Governo Provisório, que subsistia ainda, entretanto, apoiado por pequenas tropas, no Palácio de Inverno. Na sessão do Congresso, Martov propõe um governo com representantes de diferentes tendências revolucionárias. A proposta é recebida com apoio esmagador. Mas aí, protestando contra o movimento, socialistasrevolucionários de direita e mencheviques de direita se retiram. Martov fica e propõe, de novo, uma coalisão. Trotsky faz então o seu famoso discurso jogando todos os adversários do bolchevismo “na lata de lixo da história”. Martov e os mencheviques internacionacionalistas se retiram então. Os SR de esquerda ficam, mas não aceitam participar do governo, porque querem um governo de coalisão ampla (eles entrariam no governo em dezembro, e ficariam até março). Aqui evidentemente entra a discussão do papel da direita menchevique – que foi majoritária no partido até outubro –, e dos socialistasrevolucionários de direita. Se a formação de um governo exclusivamente bolchevique é lamentável, e se ela se deve certamente ao “vanguardismo“ de Lênin (e também de Trotsky, mas não de todo o partido bolchevique), ela se deve também, é claro, à política ilusória, para não dizer mais, de mencheviques e socialistas revolucionários, que insistiam na aliança com os liberais (o problema da aliança com os liberais é que ela impedia toda tentativa de responder de uma maneira mais satisfatória à ofensiva radical de operários e camponeses : o insucesso das tentativas de fazer uma política mais radical, por parte do líder SR Tchernov no ministério da Agricultura, e do menchevique Skobelev no ministério do Trabalho, o comprovam).



Excurso II Sobre o Governo Provisório


O Governo Provisório, do qual participarão os socialistas a partir de maio, é tradicionalmente considerado como um governo fraco, que foi incapaz de resolver os grandes problemas, guerra e terra principalmente, e que, por isso, caiu. Isto, em grandes linhas, é verdade. Porém, são necessárias algumas precisões. Rex Wade escreve em The Russian Revolution, 1917:[xv]


“Quando se faz a lista das falhas do Governo Provisório e dos Defensistas revolucionários [os mencheviques de direita e os socialistasrevolucionários de direita, que participam do governo a partir da primeira coalisão em Maio] introduziram amplas (sweeping) reformas, especialmente, mas não só, no [campo dos] direitos civis e das liberdades. Estas reformas foram realmente notáveis, se comparadas com o que existia na Rússia havia apenas algumas semanas, e mesmo se comparadas com o mundo, na época. Eles tentaram criar uma sociedade democrática e mais igualitária, baseada na autoridade da lei e não na arbitrariedade, e um sistema político baseado em eleições e na vontade popular, e não na autocracia e no autoritarismo. (...) Dificilmente [se pode considerálos] moderados [se julgados] por qualquer medida normal do socialismo europeu da época, e menos ainda em comparação com a sociedade russa de antes de 1917. Eles (...) [se situavam] na faixa (edge) radical do pensamento europeu e mundial da época”.


Isto se refere tanto ao Governo Provisório, como em particular aos socialistas que participaram dele. Deve ser essencialmente correto, no que se refere às medidas políticas. Mas, para as medidas sociais, a coisa é mais complicada. Não há dúvida de que havia projetos bastante avançados, mas, ao que parece, só uma parte, em geral pouca coisa, pôde ser posta em prática.


Há três elementos principais num balanço dos avanços (incluindo os virtuais...) atribuiveis ao Governo Provisório. Por um lado, o que se fez no início, antes mesmo da entrada dos socialistas. Havia uma atmosfera de pacificação, e por exemplo, numerosos patrões aceitaram a redução da jornada a 8 horas, como resultado de conversações com o Soviet.[xvi] No que vem depois, acho que se deve destacar os projetos de Skobelev, ministro do trabalho mechevique de maio a agosto de 1917, e os de Tchernov, grande figura do centro SR, ministro da Agricultura, também de maio a agosto.


“Quando (...) Skobelev se torna ministro do Trabalho (...) escreve o historiador Edward Acton ele anuncia confiante uma longa lista de reformas do trabalho” que pretendia introduzir: “pleno apoio legal para a jornada de oito horas, pleno direito de greve, estabelecimento de uma inspetoria do trabalho, um sistema amplo de proteção do trabalho, e uma vasta legislação social incluindo medidas imediatas de ajuda aos desempregados”.[xvii]


Tchhernov tenta introduzir uma moratória das vendas e arrendamento da terra, assim como um ampliação dos poderes dos comitês de camponeses.[xviii] Essas propostas recebam fogo cerrado da direita, e não são implementadas. Mas se Tchhernov e Skobelev são mal vistos pela esquerda, eles são (ou acabam sendo) também as “bêtes noires” da direita, inclusive do centrodireita.[xix] Podemos discutir, até onde eles queriam ir. Mas, de fato, é importante salientar que eles viviam numa situação de extremo radicalismo – no campo e, depois, também, na cidade – e que eles tinham de enfrentar o problema, muito difícil, da guerra. A radicalização no campo (ocupação de terras) exigia uma lei agrária avançada. Sem dúvida, mencheviques e socialistasrevolucionários moderados – supondo que tivessem vontade – não poderiam ir mais longe, sem abandonar a aliança com os liberais. Mas por que razões eles não se dispuseram, ou se dispuseram tarde demais – grande parte dos mencheviques, acaba aderindo, tardiamente, às posições críticas de Martov – a abandonar a idéia do caráter imprescindível da aliança com os liberais? No que se refere aos mencheviques, mas não, salvo evolução posterior, para os SR, pesava é claro, a tese de que, dado o atraso da Rússia, a revolução só poderia ser burguesa, o que implicava para eles – mas não para todas as correntes que admitiam, de um modo ou de outro, o caráter necessariamente “burguês” da revolução – que não se poderia abandonar prática da coalisão. Mas havia também, um elemento (ilusoriamente) pragmático. O historiador Edward Acton, acentua um aspecto interessante. Os socialistas moderados temiam acima de tudo a contrarevolução, cujo ameaça exageravam, e julgavam que a melhor maneira de se defender contra ela, era se aliar aos liberais. Eles temiam, entre outras coisas, que o patriotismo dos soldados se voltasse contra os operários.[xx]


Mas há dois elementos que são essenciais para pensar o fracasso do Governo Provisório. Um deles foi um erro fundamental, que se não desencadeou, acelerou muito a virada, que o privaria de base popular: a decisão de organizar uma ofensiva em junho de 1917. O outro é a questão da Assembléia Constituinte: o erro é aqui inverso ao da ofensiva; é de omissão ou, antes, de lentidão na tomada de uma iniciativa. Hoje, temse dificuldade em entender por que os socialistas moderados se dispuseram a tomar uma decisão tão negativa para o seu futuro político, como a da ofensiva de verão, e cujas consequências se poderia aparentemente prever. Do ponto de vista deles, o raciocínio não era, entretanto, tão irracional. Acton ressalta que, no raciocínio dos lideres moderados, uma paz em separado com a Alemanha poderia levar os Impérios Centrais à vitória na guerra, o que seria, uma catástrofe, pois, no seu entender, os Impérios Centrais vitoriosos acabariam ameaçando a revolução russa. Observese que, aos olhos dos socialistas, simpáticos à Entente, com a revolução de Fevereiro caíra o único argumento – de que fez uso abundante a SocialDemocracia oficial alemã – que poderia fundamentar um apoio aos Impérios Centrais: o de que a Alemanha e a AustriaHungria lutavam contra o que havia de mais reacionário na Europa, o Império Russo. A guerra teria se transformado numa luta das democracias (França, Inglaterra, Rússia, EUA) contra os governos capitalistasburocráticos da Europa Central. As tropas russas arvoravam estandartes vermelhos com slogans,[xxi] mas a ofensiva fracassou, passado o forcing inicial. A partir daí, a despeito da repressão que se desencadeia depois das jornadas de julho, a extremaesquerda cresce incessantemente.


A Assembléia Constituinte tem uma curiosa e trágica posição em toda essa história. Velha aspiração dos liberais e socialistas, ela é uma espécie de fantasma, cuja encarnação futura, ao mesmo tempo move e freia todo o processo. As questões mais importantes eram frequentemente abandonadas à futura Assembléia Constituinte. Era lá que o essencial seria decidido. Isso convidava ao adiamento das decisões. Sem dúvida, os problemas técnicos enfrentados pelas comissões encarregadas de organizar as primeiras eleições gerais livres na Rússia devem ter sido muito grandes. Mas, aparentemente, nem todos os partidos tinham pressa em organizar as eleições. Ao que parece, os Kadetes (democratasconstitucionalistas), que temiam o resultado, preferiam esperar que a situação se estabilizassse. A Assembléia Constituinte, foi convocada tarde demais. Como se sabe, quando ela é eleita, os bolcheviques já estão no poder.


A política do Governo Provisório foi, assim, mais complicada do que se diz em geral, mas teve um momento de desastre absoluto, que foi o da tentativa de iniciar uma ofensiva contra os alemães, em junho. Essa ofensiva, extremamente impopular entre soldados cansados da guerra, vai decretar o fim do Governo Provisório.


Retomando o tema principal, e resumindo. A dificuldade em considerar o movimento de outubro como “revolução”, vem, em primeiro lugar, da escassa participação das “massas” no movimento. Esta seria compensada pelo fato de que, efetivamente, os bolcheviques tinham apoio da maioria dos operários, apoio manifestado nas eleições para as dumas, para os sovietes e o Congresso. Mas esse elemento justificante é, por sua vez, atenuado pela circunstância de que as “massas” e também as delegações em sovietes e no Congresso, eram muito mais antiGoverno Provisório (e prósoviete), do que propriamente favoráveis ao bolchevismo (e a fortiori a um governo só bolchevique). Lembremonos de que a palavra de ordem do bolchevismo era de novo “todo poder aos sovietes”, não “poder ao partido bolchevique” (como seria o caso, mutatis mutandis, com o partido nazista). Há assim uma descontinuidade entre o movimento de massas e o movimento de outubro, que torna difícil empregar sem mais o termo “revolução”. Porém, a idéia de golpe de Estado – pelo menos sem maiores explicações – é insuficiente, porque havia um amplo movimento, ou pelo menos uma “ampla atitude” de oposição ao Governo Provisório. Mas como esse movimento era, assim, antes antiGoverno Provisório do que próbolchevique (ou próbolchevique, mas só na medida em que o bolchevismo era o movimento que queria “o poder dos sovietes”), podese falar no “qüiproquó” de outubro, como escreve o historiador francês Nicolas Werth. E o que vem depois vai reforçar a tese do quiproquo. O pósoutubro revela como era frouxo e superficial o apoio “positivo” ao bolchevismo, até onde ele existia. E como o bolchevismo poria a seu serviço, da forma mais brutal, o movimento de outubro. O que aconteceu depois ilumina, retrospectivamente, o que se passou antes e durante outubro.


Por outro lado, a maneira pela qual é preparado e realizado o golpeinsurreição de outubro só confirma o que já se sabia anteriormente, pela leitura dos textos e a análise da política: que Lênin, e com ele o Trotski que aderiu ao bolchevismo, tinham em mente o projeto de um governo de partido único (na forma e no conteúdo, ou pelo menos no conteúdo).


3. As questões a propósito do pósoutubro são, de certo modo, mais importantes. Como evoluem as relações entre o poder bolchevique e as massas populares, depois de outubro? E como se explica o progressivo fechamento do regime; ele deriva, como se pretende frequentemente, da deflagração da guerra civil?



Excurso III Tentativas de um governo plural


A resistência ao golpeinsurreição de outubro é em geral pequena, de imediato. Kerensky consegue reunir algumas tropas perto de Petrogrado, sob o comando do general Krasnov as quais enfrentam guardas vermelhos (ajudados por operários, homens e mulheres),[xxii] e são derrotadas; há um choque sangrento com cadetes em Petesburgo; e uma luta mais prolongada, que dura vários dias, em Moscou. A idéia de uma coalisão das esquerdas ainda não fora liquidada. O episódio mais importante nesse momento é a intervenção do Vikzhel, o Comitê Executivo PanRusso da União dos Ferroviários, dirigida pelos SR de esquerda.[xxiii] A União faz um apelo em favor de um governo que não fosse de um só partido e, pelo contrário, tivesse o apoio de “toda a democracia”, e ameaça entrar em greve, caso a proposta não fosse aceita. Em princípio, a proposta é aceita por todos os partidos, inclusive os bolcheviques: Krasnov ainda não fora derrotado, e a luta em Moscou duraria ainda algum tempo. O comitê central menchevique agora sustenta os internacionalistas de Martov, que são favoráveis ao acordo. As direitas menchevique e SR, pouco realistas, impõem como condição a não participação de Lênin e Trotsky no novo governo de coalisão. Mas as conversações continuam, tendo como pivô, do lado bolchevique, a figura que encarnava os moderados, no partido, Kamenev. Kamenev obtivera uma resolução favorável ao acordo numa reunião do Comitê Central Bolchevique (da qual estavam ausentes, entretanto, Lênin, Trotsky e Zinoviev). A resolução aprovava o princípio de um amplo governo de todos os partidos socialistas. No jornal bolchevique Izvestia de 1 de novembro de 1917, liase que os bolcheviques aceitavam a proposta dos ferroviários, e que “esperase que se forme um governo de coalisão socialista”.[xxiv] Numa reunião subsequente, em 1 de novembro, Lênin se opõe violentamente à idéia de coalisão, ataca os negociadores Kamenev e Riazanov, e pede a expulsão de Lunatcharsky. Noguin, Riazanov e Lunatcharsky falam dos perigos da recusa de um compromisso (falase em “terror“, em “ditadura“, em mentalidade “de soldados” etc). Votase uma resolução impondo um certo número de condições, como a presença de Lênin e Trotsky no governo, e a exclusão de qualquer tipo de representação “não soviética” (dumas etc) no Comitê Executivo (isso também estava em discussão). A votação dá, entretanto, maioria aos que querem continuar negociando. No Comitê Central menchevique, acontece a mesma coisa. O princípio da coalisão sai vitorioso, mas por apenas um voto... A oposição se organiza, obtém nova votação, mas é derrotada pela mesma margem... Numa nova reunião do CC bolchevique, Lênin apresenta um verdadeiro ultimatum à oposição interna. “Cada membro do Comitê Central é levado à presença de Lênin, no seu birô particular, e instado a assinar o ultimatum sob risco de expulsão”.[xxv] Kamenev, Zinoviev, Rykov, Miliutin e Nogin apresentam a sua renúncia ao Comitê Central. Kamenev, propositadamente, toma a iniciativa de promover a leitura, no Comitê Executivo dos Sovietes (é Zinoviev quem lê), da resolução bolchevique de 2 de novembro. Protestos. Os SR de esquerda denunciam “a ditadura de um só partido político”.[xxvi] Kamenev apresenta proposta expandindo o Comitê Executivo, de modo a incluir representantes do Congresso Camponês, das dumas, dos sindicatos, do exército e da marinha, mas, ao mesmo tempo, garante 50% de votos para os bolcheviques, além dos ministérios principais, no executivo, e a inclusão de Lênin e Trotsky no governo. Dada a situação, a proposta é aprovada por unanimidade. Mas Lênin, através do Comitê Militar Revolucionário, vai tomando todas as medidas necessárias para sabotar as negociações: fechamse jornais socialistas, e há novas prisões.[xxvii] No dia 5, quatro membros do governo (Nogin, Rykov, Miliutin e Teodorovich) renunciam aos seus postos.[xxviii] Eles dão a público uma carta, assinada também por Shliapnikov (que não renuncia),[xxix] e por seis outros bolcheviques entre os quais Riazanov.[xxx] Essa carta, como a declaração anterior dos cinco que renunciavam ao Comitê Central, é publicada pelo Izvestia.[xxxi] Ela diz, entre outras coisas: “Somos favoraveis à criação de um governo socialista de todos os partidos socialistas (...) Entendemos que só existe uma [outra] perspectiva alternativa que é a da manutenção de um governo puramente bolchevique por meio do terror político. Este foi o caminho escolhido pelo Conselho dos Comissários do Povo. Não podemos nem queremos seguir esse caminho (...) ele levará um regime irresponsável (...) à destruição da revolução e do país.[xxxii] Dos signatários dessa carta, pelo menos três foram executados nos grandes processos, e dois morreram na prisão. As conversações propostas pelo Vikhsel finalmente se interrompem (Lenin, Trotsky, Sverdlov e seus partidários queriam apenas ganhar tempo). Os membros do Comitê Central, e que haviam renunciado, voltam aos seus postos.[xxxiii]


A marcha do governo bolchevique na direção de uma ditadura de partido único pode ser acompanhada em vários planos. O da autonomização progressiva do Sovnarkom (O Conselho de Comissários do Povo) em relação aos sovietes e ao Comitê Executivo dos Sovietes; o do sufocamento progressivo da liberdade de imprensa; o da repressão contra a pessoa dos representantes da oposição; o da liquidação das instituições de representação popular; o do controle de instituições e progressiva neutralização e depois expulsão dos representantes da oposição nessas instituições; o da constituição de órgãos de repressão. Em todos esses planos, sendo impossível evitar aqui, um toque de ironia, dirseia que a obra dos bolcheviques foi notável. Tudo isso deve ser pensado sobre o fundo das mudanças que se operam na atitude popular diante do novo poder. O fato essencial é a progressiva perda de prestígio do poder bolchevique, e o fortalecimento dos seus adversários, mencheviques e SR. Os acontecimentos principais do período são as eleições para a Assembléia Constituinte, em novembro, a primeira e única reunião da Assembléia, e o seu fechamento, em janeiro. A instituição da Tcheca (a polícia política), em dezembro. Depois, a paz de BrestLitovsk. Finalmente o início da “plena” guerra civil, e a expulsão das oposições do Comitê Executivo dos Sovietes.


É preciso começar descrevendo em grandes linhas, e à vol d’oiseau, as práticas autoritárias do novo regime, que vão num crescendo, embora com períodos de recuo, por razões diversas. A imprensa vai sendo progressivamente asfixiada. Primeiro a imprensa liberal, depois, pouco a pouco, a imprensa socialista (SR e menchevique). Mas os jornais fechados, abrem com outro nome.[xxxiv] Há mesmo jornais de direita que, de uma forma ou de outra, conseguem ir sobrevivendo.[xxxv] Há assim uma espécie de guerra de gato com o rato, que dura até o verão de 18. Quanto às prisões (também intermitentes) começase com os liberais, mas em dezembro, muitos socialistas (líderes, inclusive) são presos. No início de janeiro, dois exministros liberais do Governo Provisório são assassinados por marinheiros bolcheviques, no hospital de uma prisão. A Assembléia Constituinte, cuja eleição já estava marcada (os bolcheviques decidem confirmar a data das eleições e realizálas) será fechada na sua primeira e única sessão, em 56 de janeiro. Os bolcheviques não haviam obtido mais do que um quarto dos votos nessas eleições, embora tivessem ganho nas grandes cidades. Os SR saem vitoriosos. Numa das proclamações após a vitória de outubro, os bolcheviques haviam se referido à convocação da Assembléia Constituinte, e eles haviam mesmo justificado a necessidade da derrubada do Governo Provisório, pela necessidade de garantir as eleições para a Assembléia Constituinte. A justificativa do fechamento é em parte geral (os sovietes são formas mais altas de representação – mas logo chegaria a vez dos sovietes...), em parte específica (as chapas dos candidatos SR só minoritariamente haviam separado os SR oficiais dos SR de esquerda). Este último argumento era muito frágil. Como explicaria Rosa Luxemburgo, crítica do fechamento da Assembléia Constiuinte (e também o menchevique Tseretelli, em discurso na sessão única da Assembléia), bastaria dissolver, em vez de dispersar, a Assembléia, e convocar novas eleições (pelo menos lá onde não havia duas listas SR). As manifestações em defesa da Constituinte foram menos poderosas do que se esperava, mas não desprezíveis. Houve uma em novembro, e outra no dia da sessão. A maioria dos participantes era de classe média, mas havia também – discutese quantos – operários. Fato mais importante: a manifestação de janeiro é dissolvida à bala (entre dez e vinte mortos, enterrados simbolicamente a 9 de janeiro, aniversário do Domingo Sangrento de 1905). Era a primeira vez em que o novo poder abria fogo contra manifestantes.



Excurso IV A Assembléia Constituinte e o seu destino


A convocação de uma Assembléia Constituinte era uma velho sonho de democratas e socialistas. Depois das jornadas de julho, o Governo Provisório anuncia que vai acelerar o processo de convocação da Assembléia Constiruinte e fixa datas para as eleições da Assembléia, e para a sua abertura, respectivamente 17 e 30 de setembro. Mas no início de agosto, mudamse os dias fixados: 12 e 28 de novembro. Antes disto, há o movimento de outubro. O novo poder, depois de alguma hesitação, confirma em 27 de outubro, essas duas últimas datas.[xxxvi] As eleições deveriam durar três dias, começando no dia 12. Isso ocorreu em Petrogrado, mas no resto do país, essencialmente por razões técnicas, sem dúvida, o calendário foi alterado.[xxxvii] Oliver Radkey, o autor do livro clássico sobre as eleições para a Assembléia Constituinte[xxxviii] faz o balanço das irregularidades e dos incidentes, que não foram poucos, mas que não beneficiaram só os bolcheviques, e conclui que “os aspectos normais da eleição contrabalançaram de longe as irregularidades”. “A ampla maioria do eleitorado exerceu livremente o direito de sufrágio” e seus boletins foram contados corretamente.[xxxix] Os resultados deram a vitória aos SR, embora os bolcheviques tenham tido boa votação. Pelos dados de Smirnov (que se apóia num texto recente de um autor russo, L.G. Potrasov), votaram 47 milhões de votantes, sobre um total de 80 milhões de inscritos. Figes, que se apóia em Radkey – as diferenças entre os autores são, de qualquer modo, pequenas –, dá 16 milhões de votos para os SR (o que representaria, na sua contagem, 38 por cento), 10 milhões para os bolcheviques (24 por cento, idem), 5 por cento para os Kadetes (DemocratasConstitucionais), 3 por cento para os mencheviques; os SR ukranianos, que tinham grandes divergências com os SR russos a respeito da questão nacional, obtêm 12 por cento.[xl] Os bolcheviques obtém maioria nas grandes cidades, quase a metade dos votos em Moscou,[xli] o que significa que eles devem ter tido maioria absoluta entre os operários de Moscou e de Petersburgo.[xlii] A Assembléia deveria, em princípio, abrir no dia 28 (embora, em alguns distritos, as eleições ainda não houvessem sido realizadas).[xliii] Desde o dia seguinte às eleições, os bolcheviques começam a tomar medidas contra a Assembléia: decretam o direito de “revocação” de delegados (inútil supor “democratismo” nessa medida, como veremos), a exigência da metade dos deputados para que ela fosse aberta, e, mais do que isto, que ela só seria aberta por uma pessoa que o Sovnarkom tivesse dado poderes para tal.[xliv] Mesmo assim, há uma tentativa de abertura da Assembléia que culmina com uma manifestação convocada pela União pela Defesa da Assembléia Constiutinte, constituída por “representantes do Soviete de Petrogrado, dos sindicatos, e de todos os partidos socialistas, menos os bolcheviques e os SR de esquerda” (os dados sobre o número de manifestantes são incertos, provavelmente dezenas de milhares).[xlv] É nesse contexto que são presos vários dirigentes do partido Kadete, inclusive vários delegados à Assembléia.[xlvi] Há intervenção na comissão organizadora da Assembléia Constituinte, novas credenciais são exigidas.[xlvii] No dia 20 de dezembro, a abertura é fixada para o dia 5 de janeiro de 1918, se houvesse quorum. Mas já no dia 12, Lênin publicara as suas “Teses sobre a Assembléia Constituinte”. Nelas, ele se vale do argumento de que os SR haviam em geral apresentado uma lista única quando na realidade o partido se havia cindido, além dos argumentos gerais. Só o Soviete pode assegurar a passagem “a menos dolorosa possível ao socialismo”. Exigese, assim, da Assembléia, um reconhecimento “sem reserva” do “poder dos Sovietes”, da “revolução soviética” e dos seus decretos. Qualquer tentativa de encarar o problema “de um ponto de vista jurídico, puramente formal (...) sem levar em conta a luta de classe e a guerra civil” é “trair a causa do proletariado e se ligar ao ponto de vista da burguesia”.[xlviii] A fração bolchevique na Assembléia é considerada “capitulacionista” e é substituída. Antecipase para o dia 8 de janeiro, três dias depois da futura abertura da Assembléia, o terceiro Congresso dos Sovietes. Lênin redige, uma chamada “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador”, verdadeira declaração suicida da Assembléia Constituinte, que deveria ser lida e aprovada pela Assembléia na sua seção de abertura (através dela, a Assembléia se submeteria tanto no plano geral, como em todos os detalhes, ao poder bolchevique).[xlix] A “União pela Defesa da Asssembléia Constituinte” organiza uma manifestação (SRs, do grupo terrorista, planejavam um levante, mas o projeto, vetado pelo Comitê Central SR, foi abandonado).[l] A cidade está sob lei marcial, entre 10 e 12 mil marinheiros armados devem ser reunidos na cidade.[li] Participava da manifestação, cujo cortejo começa a se mover por volta do meiodia, o mesmo tipo de público que descera à rua em 28 de novembro, mas havia menos gente do que se esperava (supõese que menos do que os 50 mil indicados por alguns).[lii] Eles se dirigiam ao Palácio de Táurida, onde se reuniria a Assembléia. Nas proximidades da perspectiva Liteinyi, as tropas próbolchevique abrem fogo sobre a multidão. Outras colunas menores (uma, segundo Pipes, composta principalmente de operários) também são contidas à bala, em outros pontos da cidade.[liii] Era a primeira vez que um governo pósfevereiro abria fogo contra manifestantes. Supõese que houve entre dez e vinte vítimas. Simbolicamente, elas são enterradas a 9 de janeiro, aniversário do Domingo Sangrento (1905), quando manifestantes foram massacrados por tropas do Tzar. A sessão da Assembléia se abre por volta das 16  horas. Não sem dificuldade, a presidência provisória cabe ao deputado SR mais velho. Tchernov, o mais importante dirigente SR (do centro), é eleito presidente (contra Spiridinova, SR de esquerda).[liv] Na tribuna, guardas vermelhos armados, alguns deles bêbados, gritam e vão provocar os oradores nãobolcheviques (alguns apontam sua arma; mais adiante, eles descerão até o plenário). Seguese um discurso de Tchernov, considerado em geral como fraco, mas ele visava principalmente (como diz Haimson) evitar um choque frontal com os bolcheviques e assegurar a continuidade da sessão. Tsereteli, o líder menchevique (um dos poucos mencheviques presentes), faz um discurso em parte autocrítico, que parece  muito forte, defendendo a Assembléia Constituinte, e propondo uma reconciliação no interior da “democracia revolucionária”.[lv] O seu contraditor é o bolchevique Skvorstov (SkvortovStepanov), que tinha alguma coisa de um “scholar” (Haimson). A discussão é interessante, porque é teorizante, e se faz, entre outras coisas, em torno da noção de “vontade geral do povo”, que o bolchevique denuncia como “ficção” a serviço das classes dominantes (mas a continuação da história mostraria que o lado dele dificilmente poderia ser considerado como o do “proletariado”).[lvi] Raskolnikov, marinheiro de Kronstadt lê a chamada “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador” que, posta em votação, é rejeitada (237 a 136, os SR de esquerda parecem ter se abstido). Os bolcheviques se retiram (Lênin não aparece em plenário, mas ocupa o camarote oficial, ele fica por lá, assistindo tudo, até as 10 da noite). Os SR de esquerda, só vão se retirar depois das duas horas da manhã.[lvii] A Assembléia aprova o armistício (o armistício, não o Tratado, que viria mais tarde) com a Alemanha, declara, confirmando a decisão do Governo Provisório, que a Rússia é uma República, e vota também uma lei agrária.[lviii] Às 4 da manhã, por ordem do comissário Dybenko, o chefe dos guardas vermelhos – detalhe interessante – um marinheiro anarquista, Tchhernov é “convidado” a encerrar a sessão porque “a guarda estava cansada“” Tchernov tenta ganhar algum tempo, mas finalmente encerra a sessão às 4:40, marcando nova sessão (que nunca se realizou) para o dia seguinte.[lix] Nesse mesmo dia 6, o Comitê Executivo aprova um projeto de dissolução da Assembléia, proposto pelo Conselho de Comissários.[lx] Assim, terminou a história da primeira Assembléia russa, eleita em condições amplamente democráticas.


(fim da primeira parte, continua em “Fevereiro“, número 3)































fevereiro #

2

ilustração: Rafael MORALEZ



[i]O presente texto foi planejado e escrito por mim. Mas nos seminários que fizemos em conjunto, nos departamentos de Filosofia e Ciência Política da USP, em agosto/outubro de 2008 (“a revolução russa”), e agosto/outubro de 2009 (“totalitarismos”), Cícero Araújo e eu expusemos e discutimos longamente a história da revolução de fevereiro e da insurreição de outubro. Mesmo se é difícil precisar o que devo às discussões do seminário (o tema deste texto é, aliás, um pouco defasado em relação ao que fizemos lá), a dívida é real: o texto não teria sido escrito, se não tivesse havido os  seminários. Cícero Araújo foi também um dos principais organizadores do  importante “Colóquio internacional – 90 anos de Revolução Russa” (não confundir com outros colóquios, bem menos críticos,  que acabaram também se rotulando “internacionais”), realizado em São Paulo (e em Guarulhos) sob o patrocínio do CEDEC, do departamento de Ciência Política da USP, e da UNIFESP em 2007, e  que, entre outros, contou com a participação dos grandes especialistas das revoluções russas  Edward Acton, Nicolas Werth e Ronald Suny.

[ii]O autor vem estudando a língua russa russo já há alguns anos, de forma intermitente. Mas, por ora, pelo menos, seus conhecimentos não lhe permitem trabalhar com as fontes russas originais.

[iii]Se preferir, o leitor poderá omitir os excursos. O texto principal tem continuidade

[iv]Referido por Orlando Figes, A People’s Tragedy, the russian revolution 18911924, Londres, Pimlico, 1996, p. 492493.

[v]Ver Figes, op. cit., p. 3089.

[vi]Rex  A. Wade, The Russian Revolution, 1917, New York, Cambridge University Press, 2008 (2005), p. 31.

[vii]Ver Figes, op. cit., p.309.

[viii]Figes, op. cit., p. 493 diz que “na imediações (region) do Palácio de Inverno”, haveria mais ou menos 10 ou 15 mil pessoas, mas que nem todos participaram da célebre “tomada”. Pipes protesta, quando o historiador revisionista Sunny (que, como diz Pipes, é na realidade um especialista na questão das nacionalidades) afirma que havia 20 mil, no “assalto” ao Palácio de Inverno (ver Pipes. “1917 and the Revisionists”, The National Interest, spring 1993, p. 72).

[ix]“Um organismo  (...) indicado pela Conferência Democrática [ver mais adiante]  na vã esperança de dar à República certa forma de legitimidade até a convocação da Assembléia Constituinte“ (Figes, op. cit., p. 467).

[x]Cf. Wade, op. cit, p. 74.

[xi]Ver Figes, op. cit., p 393.

[xii]Ver Figes, op. cit., p. 4656.

[xiii]Carta de Lênin a A.V. Lunatcharsky, 25/3/17, citada por Israel Getzler em Martov, a political biografy of a russian social democrat, Melbourne Cambridge at the University Press, Melbourne University Press, 1967, p. 158).

[xiv]Ver Figes, op. cit., p. 465, e nota.

[xv]Wade, op. cit., p. 299.

[xvi]Ver Figes, op. cit., p. 367.

[xvii]Edward Acton, Rethinking the Russian Revolution, Londres, Holder Arnold, 1990, p. 159.

[xviii]Ver Howard White, “The Provisional Governement“, in Edward Acton, Vladimir Yu. Cherniaev e William G. Rosemberg, Critical Companion to the Russian Revolution, 19141921, Londres, Arnold, 1997, p. 396, e Acton, op. cit., p. 15960

[xix]White, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosemberg, op. cit., p. 443.

[xx]Ver Acton, op. cit., p. 161.

[xxi]Ver a respeito Allan Wildman, The End of the Russian Imperial Army, vol II, the road to soviet power and peace, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1987, p. 89.

[xxii]Ver Wade, op. cit., p. 248.

[xxiii]Ver Wade, op. cit., p. 249; Figes, op. cit., p. 496; também Vladimir Brovkin, The Mensheviks after October, socialist opposition and the rise of Bolshevik Dicatorship, Ithaca e Londres, Cornell University Press, p. 21 e s., e 70 e s.; e Leonard Shapiro, The Origins of the Communist Autocracy, political opposition in the soviet State, first phase, 19171922, Londres, The London School of Economics and political Science, 1955, p. 70 e s.. Shapiro informa que havia também um forte setor próbolchevique no interior do Vikhsel.

[xxiv]Brovkin, op. cit., p. 22.

[xxv]Figes, op. cit., p. 499,

[xxvi]Brovkin, op. cit., p. 28, o autor cita a resolução SR de esquerda.

[xxvii]Ver Brovkin, p. cit., p. 32.

[xxviii]Ver Richard Pipes, The Russian Revolution 18991919, Londres, Colllins Harvill, 1990, op. cit., p. 519.

[xxix][xxix] Ib.

[xxx]Ver Brovkin, op. cit., p. 33.

[xxxi]Ver Figes, op. cit., p. 499.

[xxxii]Brovkin, op. cit., p. 3233.

[xxxiii]Ver Figes, op. cit., p. 511.

[xxxiv]Ver Brovkin, op. cit., p. 106. Cf., idem, p. 32.

[xxxv]Ver  Pipes, op. cit., p. 324 e 560.

[xxxvi]Ver Nikolai Smirnov, “The Constituent Assembly“, in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit.,p. 327.

[xxxvii]Ver ib; e Pipes, op. cit., p. 540.

[xxxviii]Oliver Radkey, Russia Goes to the Polls, the election to the allrussian Constituent Assembly, 1917, Ithaca e Londres, Cornell University Press, 1987 (1950).

[xxxix]Radkey, op. cit., p. 47 e 52.

[xl]Smirnov, art. cit. in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 327; e Figes, op. cit., p. 507 e 508.

[xli]Ver Radkey, op. cit., p. 40 e 150 (tabelas),; e Smirnov, op. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 327.

[xlii]Ver os dados fornecidos por Leopold Haimson, no que se refere aos bairros operários periféricos em Petesburgo, no seu artigo “The Mensheviks after the October Revolution“, Part I, The Russian Review, an american quarterly devoted to Russia past and present, Cambridge University Press, vol. 38, nº 4, outubro de 1979, p. 456 e s (especialmente p. 471).

[xliii]Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit, p. 327.

[xliv]Id, p. 328.

[xlv]O texto citado é de Pipes, op. cit., p. 544. Ver também Figes, op. cit., p. 509. Figes calcula em mais ou menos 50 mil o número de manifestantes, o que representaria mais ou menos o dobro dos participantes ativos no movimento de Outubro.

[xlvi]Ver Pipes, op. cit., p. 545.

[xlvii]Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 328, 329.

[xlviii]Lénin, Oeuvres, tomo 26, Paris, Éditions Sociales, Moscou, Éditions du Progrès, 1977, “Thèses sur l‘Assemblée Constituante”, p. 397 e s..

[xlix]Ver Lénin, op. cit., tomo 26, “Déclaration des Droits du Peuple Travailleur et Exploité”, p. 445; Figes, op. cit., p. 513; e Smirnov, art. cit., in Acton, Chernaiev e Rosenberg, op. cit., p. 329.

[l]Ver Pipes, op. cit., p. 548.

[li]Ver Pipes, op. cti., p. 543544; e Figes, op. cit., p. 513.

[lii]Ver Pipes, op. cit., p. 551; e Figes, op. cit., p. 514.

[liii]Ver ib e ib.

[liv]Ver Leopold Haimson, “The Mensheviks after the October Revolution“, Part III, art. cit., in rev. cit, vol. 39, nº4, outubro e 1980, p. 466.

[lv]Ver id., p. 469476.

[lvi]Id., p. 477479.

[lvii]Ver Pipes, op. cit., p. 453 e Figes, p. 516.

[lviii]Ver Wade, op. cit., p. 285, e Pipes, op. cit., p. 554.

[lix]Ver Figes, op. cit., p. 516517.

[lx]Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 332.