POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
Ruy FAUSTO |
as eleições de outubro |
(crônica e reflexões) |
As eleições presidenciais brasileiras terminaram com a vitória, no segundo turno, da candidata do PT, Dilma Rousseff, por uma margem de votos confortável, mas não esmagadora. Diante da alternativa eleitoral do segundo turno, esse resultado, é, a meu ver, o que mais convém aos interesses da esquerda democrática e do país. Menos otimista deve ser o balanço do processo eleitoral. Se a propaganda retrógrada em torno do problema do aborto acabou fracassando, ela arrancou concessões dos dois candidatos e mergulhou o país numa atmosfera de religiosidade preconceituosa que, se persistir, constituirá uma ameaça à laicidade do Estado brasileiro. O conjunto do processo eleitoral – debates, mesasredondas, entrevistas, e uma enxurrada de artigos nos jornais e revistas –, incluindo o seu resultado, fornece uma porção de elementos interessantes para entender o que são os partidos políticos brasileiros e a sociedade brasileira. Para além do levantamento de materiais empíricos, a experiência das eleições nos obriga a repensar as bases teóricas sobre as quais se assentam análises e julgamentos sobre sociedade, poder e partidos no Brasil. Mas, para além disso, aponta para uma exigência de elucidação de problemas de fundamento, inclusive a definição do que é – ou deve ser –, hoje, a esquerda, e do que é a direita. O primeiro turno e o PT No primeiro turno, enfrentavamse quatro candidatos principais: Dilma Rousseff, do PT; José Serra, do PSDB; Marina Silva, pelo PV; e Plínio Arruda Sampaio, pelo PSOL. Dilma era a candidata de Lula e se beneficiava do sucesso inegável de uma parte, pelo menos, do programa econômico do governo dele. Como já se disse muitas vezes, e se reconheceu quase universalmente, os programas e medidas de redistribuição de renda e de estímulo ao pequeno produtor, como o Bolsa Família, o microcrédito, o aumento substancial do salário mínimo, além de outros, tiveram um duplo efeito: melhoraram consideravelmente a condição das faixas mais pobres da população, diminuindo substancialmente o índice de pobreza, e, articuladas com uma conjuntura que lhes era favorável, estimularam o mercado interno, do que resultou uma aceleração importante do ritmo do crescimento econômico. O que se teve foi, aparentemente, uma política quase socialdemocrata, mas suigeneris: um estímulo da economia através do aumento da procura, só que: 1) esta última provinha em parte de um auxilio direto à população (Bolsa Família), e 2) se articulava, no outro extremo, com uma política econômica, que não só não era desfavorável ao capital industrial, mas também não o era ao capital financeiro (por exemplo, as taxas de juro se mantiveram num nível muito alto). Mas, de qualquer modo, a ascenção do nível de vida da maioria da população garantiu a Lula uma opinião esmagadoramente favorável nas pesquisas (80% de “bom” ou “muito bom”, ao seu governo). Isto se refletiu nos resultados que foi obtendo a candidata indicada por Lula, à medida que se desenvolvia o processo eleitoral, principalmente a partir do momento em que, iniciada a propaganda gratuita pela TV, o presidente pôde intervir de maneira incisiva em favor dela. Antes de passar à analise das demais candidaturas, já se poderia perguntar: qual deveria ser a atitude de uma esquerda independente e democrática diante da candidatura de Dilma Rousseff? Uma atitude possível seria apoiar essa candidatura desde o primeiro turno, já que ela representava a melhor garantia de que o programa econômico do governo anterior, na sua vertente progressista, continuaria a ser implementado. Mas havia um certo número de problemas com o PT e, em consequência, ou inevitavelmente, com a sua candidata, que poderiam levar a uma atitude diferente. O que era, e o que fizera, o PT? O PT surgira como um partido de esquerda suigeneris, independente da tradição comunista, mas também não de caráter socialdemocrata, que se desenvolvera na crista do movimento sindical, e de movimentos sociais, e que propunha um programa radicalreformista (mesmo se com simpatias revolucionárias – ou tidas como tais – no plano internacional), partido que era ao mesmo tempo uma promessa de mudança dos costumes políticos e da ética no cenário da política nacional. O partido vai progressivamente ganhando prefeituras e representação legislativa, e afinal, depois de três tentativas mal sucedidas, elege Lula presidente. Mas o partido muda. Não só ele altera o seu projeto econômico, às vésperas da vitória de Lula, de maneira a se tornar mais legítimo, aos olhos das forças que dominam o sistema econômico vigente no Brasil (voltarei mais adiante a esse aspecto), mas, já antes da eleição de Lula e, principalmente, depois, vai mudando o estilo da sua prática política. No seguinte sentido: um partido que se caracterizava por pôr em prática uma política intransigente em matéria de princípios ideológicos e de honestidade administrativa, começa a aceitar alianças puramente pragmáticas para não dizer oportunistas, e a revelar, pelo menos, um estranho laxismo no capítulo da ética política. Nada disto era muito evidente até o estouro do escândalo chamado de “mensalão”, em maio de 2005. Revelavase que dirigentes da cúpula do partido estavam envolvidos num grave esquema de corrupção de deputados do próprio partido e de agremiações aliadas. Antes do chamado “mensalão”, o PT já havia sido abalado por outros casos suspeitos, o mais sério dos quais foi o assassinato de um dirigente do partido, que era prefeito de uma cidade na periferia de São Paulo. Apesar do que pretende a versão oficial, tudo leva a crer que se tratava de um caso de corrupção política – envolvendo dirigentes do partido – que acabou derrapando (parte do dinheiro desviado em proveito do partido foi, por sua vez, desviado para o bolso de alguns, terceiros talvez, e os crimes de corrupção acabaram redundado em crimes de morte). Ao mesmo tempo, aparece uma nova face do PT no que se refere à sua política de alianças. Não são mais os princípios – refirome à fidelidade a princípios não a principismo –, mas é o pragmatismo oportunista que comanda. Ocorre então uma grave crise. A atitude tomada pelos militantes e simpatizantes do partido foi plural, mas houve três atitudes principais: alguns saíram, e fundaram um outro partido, o PSOL, que se situa mais à esquerda; outros, deixaram de ser militantes ou simpatizantes do PT, adotando uma postura crítica de esquerda independente; outros ainda, minoritários, creio, foram engrossar as fileiras dos partidos de centro e centrodireita (houve também quem “silenciasse”, mas sem abandonar o PT ). Quanto à atitude oficial do PT, ela é conhecida. Aceitouse a punição de alguns poucos culpados, que, de resto, continuaram operando e com autoridade, dentro e fora do partido, reconheceramse, discretamente, alguns erros, mas o partido não passou por nenhuma renovação ou autocrítica radical. Voltemos agora à eleição presidencial. Dilma Rousseff, exministra de Lula, era a candidata deste PT “nova maneira”. E era em relação a essa candidatura e a esse partido nova maneira que a esquerda democrática e independente deveria se manifestar. Dilma levava consigo um projeto econômico em parte progressista, e que dera muito bons resultados, mas trazia consigo também uma carga negativa. Era pensável apoiála no segundo turno, se ela enfrentasse, como era previsível, o candidato que se situava mais à direita. Mas deverseia apoiála desde o primeiro turno? Ou seria melhor optar por um voto em branco no primeiro turno, ou ainda, se possível, considerar a eventualidade de um apoio a uma outra candidatura? E aqui se reabriu uma discussão no âmbito do que poderíamos chamar de esquerda independente – a qual não é tão reduzida quanto se pensa – em torno da significação do PT, e em particular, em torno do que seriam os seus eventuais aspectos negativos. Convém voltar a essa discussão. Levantar o problema da ética na política é se perder numa questão menor? Em que medida, ao fazermos isto, caímos numa atitude “moralista”? E em que medida, então, como se afirma às vezes, fazemos, com isso, “o jogo da direita”? Tal discussão leva muito longe, e, como já disse, desemboca num problema de fundamento, o de definir o que seja direita e o que seja esquerda, já que esses termos, de tão claros, hoje são mais ou menos obscuros, pelo menos para a grande maioria da população. Nos limites desse texto, avançarei até um certo ponto na discussão, mas deixarei o núcleo propriamente dito das “questões fundamentais” para um outro artigo. Em primeiro lugar, seria importante salientar que há uma relação entre o problema do oportunismo (do “pragmatismo oportunista”) e o problema da ética (ou, negativamente, da corrupção), embora seja verdade que nem sempre as duas coisas estejam ligadas. Por outro lado, seria importante destacar, lembrando os casos mais tenebrosos, o quanto estes últimos aparecem como “derrapagens” no interior de práticas corruptas. Por outras palavras, há uma certa solidariedade, embora isto não se dê em todos os casos, entre oportunismo, corrupção, e – como chamar? – práticas mafiosas em sentido estrito. Cada um desses graus é atingido por uma derrapagem do grau imediatamente superior (para o primeiro, o nível anterior é de um clientelismo ainda “benigno”, mas já reconhecível). A essas considerações deverseia acrescentar a observação seguinte, que se situa num outro plano, pois remete à posição – e depois supressão – de um evento possível, senão provável. De fato, quem acha que essas questões remetem a um “moralismo” de uma outra época, ou de um outro campo, deveria refletir sobre a seguinte questão: não fosse o escândalo chamado de “mensalão”, que estourou graças ao trabalho da Polícia Federal e ao barulho da imprensa – a qual se manifestou, por razões que eram, sem dúvida, em parte boas, em parte más –, não fossem esses dois elementos, e provavelmente teríamos como candidado do PT, e talvez como presidente da República, no ano da graça de 2011, o sr. José Dirceu. Não vou discutir aqui a personalidade desse dirigente do PT. Diria apenas que, a meu ver, e na opinião de muita gente, a trajetória pessoal e política desse dirigente é misteriosa demais para que se possa confiar a ele, sem temor, a presidência da República. Pois o PT ia na direção dessa candidatura, e se ia nessa direção, era porque uma parte do partido – militantes e simpatizantes – tinha uma postura totalmente ingênua em relação ao que se passava dentro do partido: não se sabia – não sabíamos – o que havia lá dentro, ou não podíamos acreditar que houvesse o que havia. (Claro que já havia quem fosse mais bem informado; mas se começava a fazer vistas grossas para certos “deslizes”, em nome da recusa do “moralismo”). Nesse contexto, gostaria de ressaltar um ponto. Acho que foi eminentemente negativa a atitude daqueles, militantes ou simpatizantes do PT, que sustentaram sem mais, ou com bem poucos “mais”, as posições do partido. Creio que prestaram um muito mau serviço ao PT, à esquerda, e ao país. Não posso deixar de lembrar da atitude de uma colega e amiga, que respeito muito pela sua obra teórica, sua contribuição excepcional como professora, e também pela sua disposição política. Porém, sua tentativa de dar justificativas, às vezes, alimentadas por referências filosóficas, ao que era injustificável, em vez de assumir uma atitude claramente crítica, como fizeram outros universitários, foi extremamente infeliz. Até hoje, pagamos por isso. Digamos, para completar a discussão desse tema, que o problema ético só não tem importância quando se defende a posição tradicional comunistarevolucionária. Desse ponto de vista, a corrupção é epifenômeno, “produto do capitalismo”, como se continua dizendo (como se um partido que pretende criticar o capitalismo não se obrigasse a ser anticapitalista também nisto. Para quem o objetivo é um socialismo democrático radical, a lisura ética é substantiva. Talvez se possa acrescentar que a leniência nesse terreno também atingiu parte da socialdemocracia, o que talvez explique a relativa indiferença diante dessas questões de que deu prova – com pelo menos uma grande exceção – gente do PT, de estilo “socialdemocrata“, e que não é nem desonesta, nem oportunista, e nem prótotalitária. De um ponto de vista socialista democrático independente havia, ainda, pelo menos mais uma razão de descontentamento com o PT e, consequentemente, um motivo de hesitação diante da ideia de embarcar desde o primeiro turno na candidatura Dilma. Deixando de lado, por ora, a questão da faceta conservadora da política econômica, quero me referir à política externa do governo Lula. Não que essa política fosse condenável em bloco. Que o Brasil se situe numa posição de independência em relação aos EUA é, evidentemente, positivo. Também são positivas as intervenções do Brasil nos encontros sobre o clima e o destino do planeta. Mas uma política independente não pode significar uma volta a um terceiromundismo obtuso, que fecha aos olhos para os horrores de governos despóticos contanto que esses governos dêem provas de antiamericanismo. Infelizmente, foi essa a atitude de Lula, nas suas declarações, e, em geral a da diplomacia brasileira. O convite a Ahmadinejad a visitar o Brasil, a legitimação da farsa sangrenta em que redundaram as eleições iranianas, além das referências mais do que infelizes de Lula aos dissidentes cubanos, são atitudes que desservem a política externa do Brasil, e que só diminuem a nossa posição no mundo. Se uma outra atitude pode parecer a alguns como pouco coerente com uma posição de independência, é porque eles ainda rezam pela cartilha de uma velha esquerda que confunde socialismo (ou antiimperialismo), com totalitarismo e fanatismo nacionalista. Com o fenômeno do totalitarismo, mas, a rigor, já antes disto, um julgamento de esquerda, para ser lúcido, tem de ser complexo. O alinhamento sobre as teses tradicionais é que, longe de ser coerente, implica em defender o contrário do que um socialista deve sustentar. Havendo essas reservas, que não eram pequenas, nem se referiam apenas ao passado (os problemas poderiam reaparecer, e provavelmente reaparecerão, sobretudo se o aliado é o PMDB, e se este partido indica o candidato a vicepresidente), recusar o voto a Dilma no primeiro turno como expressão de crítica ou pelo menos de reserva diante do PT, era pensável, e, a meu ver, razoável. Mas o que fazer? Votar em branco, ou votar em um outro candidato? O voto em branco, se sabe, tem uma força simbólica muito relativa. Mas votar em outro candidato não era coisa simples. A candidatura Serra ficava, evidentemente, fora de cogitação. Volto a ela mais adiante, mas ela representava, notoriamente, a direita, e, em sã consciência (de esquerda democrática) não se poderia apoiála. Restariam Plínio de Arruda Sampaio, do PSOL, e Marina Silva, que se apresentava pelo PV (Partido Verde). O PSOL (Plínio), e Marina Silva Apesar do seu radicalismo extremo, o PSOL merece análise e consideração. Seu candidato se apresentou, nos debates préeleitorais, como o arauto do anticapitalismo puro e duro, propondose mostrar que não havia diferenças essenciais entre os candidatos, todos, a seu ver, a serviço do sistema. Plínio se enganava, evidentemente, quando punha todos no mesmo saco. Mas o problema maior da candidatura Plínio e do PSOL – de Plínio e do seu partido, mas acho que Plínio é um radical mesmo dentro do seu partido –, é a insuficiência de sua leitura dos governos e das políticas anticapitalistas de tipo burocrático e totalitário (mais do que a questão reforma/revolução, sobre a qual se costuma insistir ao discutir com ele). Isso poderia parecer secundário ou adjetivo no interior do cenário político brasileiro, mas, na realidade, não é. O problema, aparentemente distante no tempo e no espaço, pertence ao presente, porque ele aparece cada vez que se pretende formular uma política para a esquerda. Ao ouvir as intervenções de Plínio, ficava evidente uma coisa. Ele é completamente inconsciente da grande inversão de valores, e da grande regressão política, que se deu em parte considerável da esquerda, durante o século XX. Pois houve uma verdadeira interversão de valores políticos e também éticos, no interior da esquerda, quando surgiu um totalitarismo de esquerda, que, em matéria de horror, não ficou atrás do de direita, responsável que foi pela morte de algumas dezenas de milhões de pessoas. Ou, em termos mais simples: surgiram, no século XX, regimes pseudo–socialistas, na realidade regimes que remetem a uma nova forma de exploração, a forma burocrática, ou totalitáriaburocrática. Plínio e boa parte do PSOL – e, mais do que isso, boa parte da esquerda brasileira, inclusive muita gente do PT, é bom lembrar – não têm idéia de nada disso. E o resultado é catastrófico. Plínio é arguto como ninguém e de uma ironia mordente, quando se trata de criticar o capitalismo, mas diante dos regimes burocráticos, é de uma ingenuidade infantil (estou supondo uma boa vontade por parte de Plínio, e me pergunto: ele leu os livros essenciais sobre o tema – digamos, no plano históricoliterário, Soljenitsine e Chalamov; no plano teórico, Claude Lefort ou Castoriadis, ou mesmo Trotski, que representa a ortodoxia no interior da heterodoxia, mas é um bom ponto de partida para ser criticado; ou leu apenas Marx, alguns marxistas pseudo, ou realmente, “ortodoxos”? Estas são as leituras que eu recomendaria aos militantes do PSOL, em particular aos seus jovens militantes).1 Digo isso tudo, porque, insisto, há um lado positivo na atitude do PSOL: gente dessa galáxia teve um papel de destaque na denúncia do que ocorria de escandaloso dentro do PT. Observem bem isso, aliás, os que supõem que a denúncia dos escândalos é “coisa da direita”. A candidatura de Marina Silva levantava outro tipo de problemas, na realidade mais complexo. Marina Silva, que fora ministra do governo Lula e abandonara o posto por divergências no plano da política ambiental do governo, se dispôs a abandonar o PT, e se apresentou como candidata à presidência pelo Partido Verde. A candidatura de Marina tinha múltiplos sentidos, para dizer o mínimo. Ela mesma é de origem muito humilde e tem uma biografia extraordinária, a de quem se alfabetizou muito tarde e sofreu todo tipo de dificuldades, enquanto moça pobre, que vinha da Amazônia profunda. Marina é certamente uma figura política de esquerda. Já a sua candidatura era algo mais complicado. Havia um lado positivo nessa candidatura, o de se ter uma candidata de esquerda, que ao mesmo tempo tinha uma postura pessoal muito clara em termos de luta contra a corrupção, e que, além disso, tomava claramente posição em favor dos direitos do homem e da democracia, também no plano internacional. Mas ao mesmo tempo, havia lados negativos. Marina é evangélica, contrária à descriminalização do aborto (ela propunha um plebiscito a respeito, o que, digase de passagem, mesmo se não podemos ter ilusões sobre o resultado deste, permitiria pelo menos uma discussão do problema). Mais ainda. O partido sobre cuja sigla ela se apresentou, se tornara uma legendaleilão, que, nos segundos turnos, costumava apoiar quem desse mais. Para completar, o programa econômico de Maria Silva tinha marcas liberais, que se explicavam talvez pela influência do seu principal assessor econômico (o programa, entretanto, tinha também outros aspectos, não estranhos à esquerda – recusa de anistias para abusos fiscais, juros baixos). Voltarei ao tema, na continuação do texto, não só a propósito da candidatura de Marina Silva, mas também das eventuais candidaturas ecológicas, que poderão surgir no futuro. Mas, desde já, diria o seguinte. Uma parte do eleitorado de esquerda mais crítico do PT, e estranho à extrema esquerda, preferiu o voto em Marina ao voto em branco. Apesar dos lados negativos da candidatura Marina, foi um voto simbólico de protesto, que, fundado no lado positivo do programa e da figura da candidata – de esquerda, anticorrupta, e antitotaitária – e resistindo a esse nãovoto que é o voto em branco, tinha, a meu ver, alguma justificação. Incidentes de percurso, e temas da direita na campanha do primeiro turno A campanha do primeiro turno foi marcada por dois temas. O primeiro tema foi o da corrupção, e ele aflorou carregado por dois eventos. O primeiro, de importância relativa – por causa das funções menores dos personagens –, era o de um caso de obtenção, por meios fraudulentos, de documentos fiscais de membros da família do candidato José Serra. O segundo, muito mais grave, envolvia familiares da Ministra da Casa Civil, Erenice Guerra, e a própria ministra, e remetia à prática de atos ilícitos no plano das concessões e contratos de empresas que giram na órbita do Estado. Depois de alguns dias de hesitação, Lula acabou demitindo a ministra, mas o episódio teve efeitos sobre a campanha de Dilma. O segundo tema, que só chegaria ao paroxismo no intervalo entre os dois turnos, foi o debate sobre a descriminalização do aborto. Valendose de uma declaração de Dilma Rousseff, feita há alguns anos, de que era favorável àquela medida, José Serra e os seus partidários começaram a bater nessa tecla, tentando incompatibilizar uma opinião pública, que, como se sabe, é, infelizmente, contrária à descriminalização. Volto à questão, ao falar da campanha do segundo turno. O voto do primeiro turno deu, como resultado, a vitória de Dilma Rousseff, seguida de José Serra, sem que a candidata vitoriosa obtivesse, entretanto, a maioria absoluta. Poderseia explicar o relativo fracasso de Dilma, pelo sucesso, também relativo, da candidata do Partido Verde, que obteve quase 20% dos votos. Toda a questão é, porém, a de analisar qual foi o significado desses votos. De uma forma mais geral, importava saber qual o peso do dois temas, em que se haviam centrado, de uma forma ou de outra, as discussões anteriores ao primeiro turno. Podemos dizer que o fato de a eleição não se ter encerrado no primeiro turno foi positivo. A vitória no primeiro turno daria um peso enorme, talvez excessivo, ao PT. E os riscos de que Dilma perdesse no segundo turno eram, tudo somado, limitados. Tratavase, de qualquer forma, de riscos que – creio eu – era razoável correr, para evitar a prática desagradável e perigosa de dar carta branca ao PT.2 O enfrentamento entre os dois turnos A campanha do segundo turno foi desde logo marcada por um recrudescimento da discussão em torno do tema da descriminalização do aborto. Dilma se defendeu como pôde da acusação de que seria partidária da revisão da lei, fez quantas concessões achou necessárias (o que também fez o seu adversário), visitou igrejas, deu declarações pró“vida“, e finalmente, sob pressão religiosa, assinou um documento, comprometendose a não mudar a legislação, caso fosse eleita. Apesar disso, a campanha contra ela não arrefeceu. Serra dizia que, simplesmente, pedia “coerência” à sua adversária, e que não se referia ao conteúdo da declaração, embora ele próprio fosse absolutamente contra a descriminalização etc etc. A ofensiva só foi realmente neutralizada, quando uma exaluna da mulher de Serra deu um depoimento, certamente verdadeiro (caso contrário, teria havido uma gritaria geral da oposição), revelando que esta – que, aliás, se envolvera diretamente na campanha, inclusive no terreno desse tema específico – contrariara, na prática, a doutrina da criminalização. O episódio – digo, o conjunto dele –, lamentável sob todos os aspectos, pode deixar marcas na política e na sociedade brasileira. Volto ao tema, logo mais. Fora a discriminalização do aborto e a corrupção, a discussão entre os candidatos teve como assunto principal a estatização e as privatizações, o candidato de oposição oscilando entre a justificação de pelo menos uma privatização (telefones), e a contraacusação de que também o governo Lula privatizou ou terceirizou (bancos, concessões da Petrobrás etc). Depois de um momento em que Serra parecia ter conseguido reduzir bastante a diferença, a candidatura Dilma retomou em boa parte o fôlego inicial. Dilma venceria a segundo turno, com uma diferença de mais ou menos 12% no total dos votos válidos. Lições e balanços Que lições uma esquerda democrática e independente pode tirar do pleito? Dilma, dizia, venceu por um resultado confortável, mas não esmagador. O PT, com os partidos coligados – mesmo levando em conta o fato de que parte dos deputados dos partidos coligados tem rabo preso com a oposição –, obteve maioria absoluta, e mesmo mais do que isto, na Câmara e no Senado. O PT tem maioria simples na Câmara. Já, no Senado, a maioria simples é do PMDB. A situação tem a maioria dos governadores, embora perca em estados muito importantes. Fazendo um balanço dos grandes acontecimentos dos últimos vinte anos, poderseia dizer, de um modo geral, e com algum otimismo, que o Brasil teve sorte. E isso por quatro razões, pelo menos. Primeiro, qualquer que sejam as críticas que se poderiam fazer à política econômica dos governos Itamar e Cardoso, estes deixaram um legado importante no plano econômico: o fim da grande inflação, com o Plano Real. A esquerda, inclusive os sindicatos, não nos esqueçamos – nós de esquerda –, não só não acreditava no plano, mas se opunha a ele. Os especialistas podem dizer, melhor do que eu, o que seria da economia brasileira, se a grande inflação não tivesse sido estancada. A segunda razão foi a vitória de Lula em 2002 e, mais adiante, a sua reeleição em 2006. Se o governo continuasse nas mãos da direita, ainda que ela pusesse em prática alguns programas, dificilmente um grande programa de redistribuição de renda teria sido implementado. A terceira razão foi o escândalo do mensalão, que se deveu, como já disse, ao trabalho da Polícia Federal e à imprensa (esta por boas e por más razões). Sem o escândalo, a ala mais “duvidosa” e perigosa do PT teria provavelmente dominado. Em todo caso, teria havido grande probabilidade de que José Dirceu viesse a ser o candidato do PT e, mesmo, se tornasse o sucessor de Lula. O escândalo fechou as portas a Dirceu, e também enfraqueceu Palocci, outro eventual sucessor de Lula, que hoje volta ao cenário, mas não como presidente. Foi assim que se criaram as condições para a candidatura de Dilma para as eleições de outubro de 2010. A vitória de Dilma é a quarta razão: quaisquer que sejam as críticas que se possa e deva fazer ao PT, essa vitória é a melhor garantia de que os programas de redistribuição de renda continuarão a ser implementados em escala suficientemente ampla. Assim, evitouse a carga negativa que representava a grande inflação, foi derrotada a direita que bloquearia grandes programas de redistribuição de renda, impediuse a eventual subida ao poder do grupo “pesado” do PT, que nos conduziria não se sabe aonde (pensese, também, em qual poderia ter sido, nesse caso, a reação da direita). Finalmente, barrouse uma volta da direita ao poder, volta que, por várias razões, seria negativa, tanto do ponto de vista de uma esquerda crítica, como dos interesses gerais do país. A vitória de Dilma no segundo turno vem assim, coroar, uma série de acontecimentos positivos, num contexto econômico global que se revelou favorável. Porém... Digase desde logo: ao contrário do que pretendeu a direita, a eleição de Dilma Rousseff não põe em perigo a democracia, e, pelo menos a curto prazo, não há, mesmo, risco de uma deriva populista. Aliás, quaisquer que sejam os limites deste tipo de pronunciamento, as primeiras declarações de Dilma, que reafirmam a democracia, as liberdades publicas, e a intransigência diante dos “malfeitos“, são promissoras. Quais seriam os eventuais perigos e impasses da situação? Não vou me referir aos problemas objetivos do país, no plano da saúde (situação do SUS), dos transportes (congestionamentos dos portos etc), ou da economia. Ou a outros problemas, como o da violência. Discuto apenas as questões propriamente, ou principalmente, políticas. O governo de Dilma Rousseff deve continuar o que foi feito nos oito anos do governo Lula. Mas, o que significa isto, e em que condições ela poderá realizar o seu projeto? Ou, se preferirmos, já que o partido de Dilma e de Lula é o PT, em que medida o PT pode continuar, bem ou mal, o trabalho que vinha realizando? Digo, para começar, pedindo licença para retomar o que escrevi em notas para uma entrevista, (notas que são do final de agosto, mas que só vieram a público um mês depois, às vésperas do primeiro turno) que o PT é um partido bastante heteróclito. Ele contém pelo menos três tipos de militantes: de um lado um grupo medianamente bom, e, em alguns casos, bastante bom, composto de gente com convicções suficientemente democráticas e com projetos sérios de reforma. Em segundo lugar, ele tem gente com perspectiva bastante radical, que não deve estar muito longe do que pensa o militante médio do PSOL, incluindo ilusões com regimes populistas ou neototalitários. Em terceiro lugar, há ali uma massa de pessoas que “fazem carreira”, e que vão desde o pequeno oportunista local, até o grande corrupto. (Devese acreditar em Dilma quando promete combater os “malfeitos”, mas é difícil imaginar que o PT, que não procedeu à “limpeza” necessária, poderá abandonar da noite para o dia as suas práticas clientelistas – ponto de partida para derrapagens mais graves –, e se libertar de vez desse peso negativo; levese em conta também, not least, que o PT ganha em aliança com o PMDB, e que este partido elegeu o vicepresidente).3 A política do PT é uma espécie de resultante de todos esses fatores. Vimos o que resultou disso até aqui, para o melhor como para o pior. Mas como será ele no futuro? Antes de continuar, consideremos mais de perto o significado do percurso eleitoral da oposição, principalmente nos seus últimos movimentos. A campanha de Serra, principalmente na sua fase final, teve um caráter nitidamente de direita, e mesmo de extremadireita. Não me refiro às suas propostas econômicas. Quando falava em aumentar o salário mínimo, ampliar o Bolsa Família ou não tocar nos setores estatizados, Serra não se apresentava como direita (nos EUA, no clima atual pelo menos, ele apareceria, até, como um perigoso socialista). Porém a campanha de Serra não ficou nisso. Houve um outro lado, já mencionado, e cuja importância não se deve subestimar. Refirome à discussão em torno da descriminalização do aborto. Serra jogou pesado, e não apenas jogou pesado – o que poderia ser uma questão de método –, Serra jogou com as armas da direita, ou melhor ainda, da extremadireita. Dizer, como ele e os seus partidários afirmavam, que simplesmente cobrava a “falta de coerência” de Dilma, é pura hipocrisia. Serra, como Dilma, devem ser ambos a favor da descriminalização do aborto. Só que, sendo mais prudente, ou, mais precisamente, não sendo mulher, não precisou se manifestar sobre o problema. Ora, à Dilma, e não por acaso – ela é mulher –, isto foi perguntado. E ela respondeu – isso foi em 2004 – com franqueza e acerto. Diante do atraso da opinião pública, resolveu, depois, dar marcha a ré (não vou discutir se teria sido possível sustentar, sem mais, as posições anteriores, mas talvez coubesse alguma resposta menos capitulacionista). Serra, que no seu foro íntimo, muito provavelmente assinaria as declarações de Dilma em 2004, de um modo hipócrita e fazendo o jogo da direita mais retrógrada – pois só ela faz questão de pôr no tapete o problema, porque sabe do atraso da opinião pública –, desafiou Dilma a ser sincera. Houve, no entanto, algo ainda pior do que isto: a declaração do Papa. Ou, mais precisamente: o pior foi o que deve ter sido feito, pela direita, em matéria de mobilização e “costura”, para obter a declaração do Papa, e bem às vésperas do segundo turno. Tudo deve ter sido programado para o que teria sido o grande golpe de última hora da oposição. Assim, quando um de seus representantes dizia que “não tinha carta na manga”, blefava. Mas a manobra não deu certo, e isto principalmente porque fora neutralizada, por um contraargumento (e contraevento) do campo petista. Porém, que Serra e o PSDB tenham se disposto a fazer essa jogada, e que, em geral, tenham tido essa atitude não só hipócrita, mas realpolitiker e arquireacionária, na introdução e discussão do tema, é alguma coisa de extrema gravidade. Que me seja permitido citar uma passagem do mesmo texto – do final de agosto –, a que me referi anteriormente. Eu escrevia: “... há [algo] que me preocupa mais nesses partidos [da direita], PSDB inclusive (....) existe hoje uma mobilização da extremadireita, que se faz na periferia, senão no interior desses partidos. Dirseá que esse gente tem pouco peso, e no momento atual, não é uma real ameaça. Mas, cuidado. Por trás de certo jornalismo de sarjeta, que se manifesta com a sua “finura” bem conhecida na campanha eleitoral, há dinheiro, instrumentos midiáticos, há o peso de seitas religiosas do tipo ‘Opus Dei’ etc. (....) embora isto não seja ainda muito visível, existe, evidentemente, em escala mundial, uma reorganização da extremadireita, cujo cerne é o movimento neoconservador (seus membros são frequentemente exgauchistas que inverteram os sinais). Ele atua nos EUA (...) mas também na Europa. Penetra na administração, nos partidos, e também nas universidades. Sua ideologia é uma mistura de ‘fanatismo do progresso’ [colonialismo pseudomodernizador] e fideismo medieval (...). Que aqueles que encarnam no Brasil essa tendência se movam em torno (ou mesmo dentro), de partidos que incluem um expartido de centroesquerda como o PSDB, é um pouco assustador, embora o perigo não seja imediato. Mas importa registrálo, porque a médio prazo ele será efetivo”. O perigo está se revelando mais imediato do que eu havia pensado. A direita e, o que é pior, o excentro esquerda, se associa cada vez mais a uma extremadireita arquireacionária. Qual o alcance dessa parceria, e como ela irá evoluir? É difícil dizer. Há atualmente tendências dentro do PSDB em favor de uma fusão com o DEM. Este, ou alguns dentro desse partido, resistem, ao que parece, à fusão. Mas não sabemos até quando. De novo o problema do PT Voltando ao PT. Que caminhos tomará a política de redistribuição de renda? Por diferentes razões, parece difícil que o governo possa ampliar muito o Bolsa Família. De qualquer modo, em um momento ou em outro, será preciso também pensar em outras soluções, mais estruturais. Porém, isto provavelmente implicaria em tocar no delicado problema da quase aliança que o governo Lula fez com, pelo menos, setores das classes dominantes, incluindo não só a indústria, mas também os grandes interesses financeiros. Será possível “mexer” nessa aliança? E quais seriam os seus riscos? Aqui, confluem vários problemas, e se coloca a questão da base de poder do petismo, tanto a base social como a base política. O PT tem amplo apoio popular dos estratos mais pobres, e é sustentado por uma parte dos setores médios. Como vimos, parte das classes dominantes, se não apoia o PT, pelo menos não tem propriamente horror dele, ou pelo menos, não conspira contra ele. Politicamente, o PT se assenta numa coligação de partidos, mas o principal aliado é o PMDB. Ora, pode o PT pensar em avançar no plano da política econômica, corrigindo ou atenuando a vertente conservadora, e pode o partido – o que parece que vai junto – pensar em alterações no seu jogo de alianças? As objeções a um avanço na política econômica do governo (mais o seu “pendant” político) são, principalmente, as de que isso implicaria risco para as instituições. Porque, de fato, não nos enganemos, se as classes dominantes têm uma atitude globalmente moderada em relação ao PT – uma atitude, pelo menos, de quem, por ora, não se dispõe a pôr em risco as instituições – é, em parte pelo menos, porque o partido tem um lado que satisfaz aos seus interesses. O PT tem um pé no alto, e um pé em baixo, como se costuma dizer. Se ele romper esse esquema, quais seriam os riscos? E em que condições, valeria a pena corrêlos? No plano partidário, já foi dito, essa ruptura passaria provavelmente por um rompimento, ou distanciamento, em relação ao PMDB, partido clientelista por excelência, e nada de esquerda, para dizer o menos. Sob que condições, uma dupla ruptura desse tipo, no plano social e no plano propriamente politico, seria pensável e desejável? Perspectivas de novas alianças políticas e de novas bases sociais para a esquerda De um ponto de vista socialista democrático e independente, há no momento duas coisas a fazer, ou duas perspectivas, que não se excluem. Em primeiro lugar, importa lutar pelo fortalecimento das melhores tendências dentro do PT. Nesse sentido, não há nada pior do que “aceitar o pacote inteiro”. Sempre que nos dispusermos a apoiar o PT, ou a votar nos seus candidatos, o que, a meu ver, se impunha absolutamente no segundo turno das eleições presidenciais, é preciso fazêlo de maneira crítica, sem se assustar com a reação dos zelotas do partido, que não hesitam em denunciar, como “direitista”, toda e qualquer crítica que se faça ao partido. Isto foi sempre assim, historicamente. Direções ou militâncias pseudoortodoxas, mais ou menos gangrenadas, sempre denunciaram os críticos como quem estaria a serviço da direita ou mesmo da extremadireita (ver a experiência dos críticos do stalinismo). Na realidade, uma luta interna já existe. E frequentemente ela tem a ver, de algum modo, com os problemas levantados pela aliança com o PMDB. Observese, nesse sentido, que os melhores governadores eleitos do PT são gente que resistiu, de alguma forma, à política de aliança com o PMDB. Mas se houver ruptura com o PMDB, o PT necessitará de outro aliado, e este de onde poderia vir? A meu ver, pensando, entre outras coisas, nas experiências europeias, que não podem ser transpostas sem mais, mas que, de qualquer modo são úteis, se surgir outro aliado para substituir o PMDB, o mais provável e viável, no plano político, é que ele venha do campo ecológico. É aí que poderia surgir uma aliança, sem os inconvenientes da do PMDB, e com outras vantagens.4 Mas o que viso com isto? Por acaso me refiro à candidatura Marina e ao PV? Quanto ao PV, certamente não. Quanto à Marina, a resposta é incerta. Na realidade, o voto próMarina no primeiro turno teve apoio de setores importantes da esquerda, digamos, crítica, o que indica o interesse que têm esses setores pelos programas dos movimento ecologistas (a idéia de uma aliança verderosa deve lhes ter passado pela cabeça). A meu ver, a médio prazo, esse seria o caminho. Se passará por Marina Silva, é duvidoso. E certamente não passará pelo Partido Verde, pelo menos tal como ele é hoje. Mas isso não é obstáculo intransponível. Em diversos países, existe mais de um partido ecologista. Na França, em certa época, havia pelo menos três. Quanto a Marina, já falei das suas qualidades e defeitos, e o problema permanece aberto. Porém o que me parece essencial é pensar a importância do movimento ecologista. É um movimento que mobiliza, e que propõe um ethos antiprodutivista, estranho tanto à tradição comunista, como, em boa parte, à tradição socialdemocráta. E que a esquerda não pode mais desconhecer. Ao contrário do que disseram alguns, o movimento ecologista se desenvolve muito, em vários países, e, em muitos casos, evolui bem. Não há dúvida de que existe uma ecologia de esquerda e uma ecologia de direita. Mas a tendência mais forte, é, a meu ver, a de esquerda, e, de qualquer modo, os movimentos ecológicos acabam se decidindo num sentido ou em outro. Apesar das aparências em contrário, é a ecologia de centro que se revela impraticável. Os ecologistas são obrigados a elaborar um programa econômico. Embora acentuando os projetos em matéria de meioambiente, lhes é impossível não se definir em termos dos outros problemas de sociedade. Ora, sem que eles percam a cor própria (por exemplo, certa resistência à onipotência e ao inchaço do Estado; mas, bem compreendido, seria isso um mal, algo incompatível com uma política de esquerda?), os ecologistas são obrigados a se definir na direção da esquerda ou na direção da direita, e, a meu ver, em geral, a sua “vocação” é para a esquerda.5 É interessante analisar mais de perto o que foi a candidatura de Marina Silva, no contexto da discussão sobre qual poderia ser não só a base política, mas também a base social de uma nova aliança. Provavelmente, os votos de Marina pertencem a quatro categorias. Houve um voto evangélico, que, no segundo turno, deve se ter transformado em voto próSerra. Um voto de eleitores de esquerda, que quiseram rejeitar o PT no primeiro turno, mas que, no segundo turno, votaram em Dilma. Um voto, talvez também de esquerda, em todo caso crítico, que foi para Marina, no primeiro turno, e, no segundo, virou voto em branco. E finalmente, um voto não religioso próMarina com segundo turno próSerra. (Esse último contingente teria de ser estudado melhor. Seriam tucanos “históricos” descontentes com os rumos do partido, que dão um sinal contrário no primeiro turno, e depois apoiam?) Em todo caso, é preciso destacar o peso do voto de esquerda, no eleitorado de Marina. Quando se analisou esse eleitorado, falouse principalmente dos evangélicos, e o resto, com poucas exceções, ficou mais ou menos na sombra. Ora, é preciso ressaltar o significado desse tipo de voto, que deve representar pelo menos cinco milhões de eleitores, provavelmente mais (entre cinco e dez milhões). Tradicionalmente, se subestima esse tipo de eleitorado, que é, grosso modo, de classe média. Na “teoria” clássica, seria voto da “pequenaburguesia”, o que significaria, voto de uma classe intermediária, e moralizante, sem pé na terra (e sem a famosa “consciência do proletariado”). É verdade que um parcela da classe média (melhor do que “pequena burguesia”) “fecha”, invariavelmente, com a direita, e às vezes com a extremadireita. Mas isso não vale para toda a classe média. Aquele voto em Marina, que se costuma chamar de “pequeno burguês”, remete, em parte a um eleitorado constituído por intelectuais, em grande parte, talvez, a gente influenciada pela intelectualidade. Ora, é absurdo ter um gesto de desprezo para com esse eleitorado. Eu diria que ele é o mais consciente do país: de esquerda, contra a corrupção, pelos direitos humanos e a democracia também no plano da política internacional, e, em parte – creio eu –, paradoxo aparente, disposto a aceitar reformas mais radicais do que as que fez o PT, desde que elas se façam no interior de quadros estritamente democráticos. Quanto ao fato de esse eleitorado ser, como se diz, “pequenoburguês”, seria bom lembrar o que escreve Cornelius Castoriadis contra o preconceito tradicional de que são os mais pobres que pensam e escolhem melhor. Ou, pelo menos, de que é o proletariado, ou o que hoje ele representa, que escolhe e vota melhor. Isso é um preconceito. As camadas mais pobres ou mais exploradas têm certamente um peso enorme, e da posição que assumem, dado o seu peso numérico e o seu papel na economia do país, depende muito do que virá a acontecer no Brasil. Mas, contra o discurso clássico, é preciso dizer que essas camadas não são sempre, e todo tempo, as mais lúcidas. E em segundo lugar, que a “pequenaburguesia” quaseintelectual e crítica representa um elemento – sem dúvida, coadjuvante, em termos de volume de votos –, mas essencial para o futuro das esquerdas brasileiras. O que estou propondo é que se “cultive” uma aliança entre a grande massa de pobres da população, e a intelectualidade radical. Dirseá que ela já existe, mas só existe de fato, não de direito. Que, quando esta camada se manifesta contra a corrupção, se cesse de ver aí o famoso “moralismo” (cf, por exemplo, artigos recentes de universitários marxisantes ligados ao PT), e se entenda que a reivindicação de uma política diferente, com exigências de princípios (mas nem sectária nem “principista”), no estilo, aliás, dos antigos projetos e práticas do PT, não é só perfeitamente legítima, mas indispensável.6 Em termos políticos – tratase, evidentemente, de um novo quadro de forças que, por ora, só existe no horizonte – isto significaria abandonar a aliança com o PMDB, aliança desastrosa com uma sigla que representa uma constelação de clientelas, em proveito de outras, com futuros partidos ou movimentos efetivamente favoráveis ao progresso social. Como tentei mostrar, estes poderiam vir, mais facilmente, da “região” da ecologia (não se trata, como já disse, do atual partido verde, mas de movimentos ecológicos de outro tipo). Reforçando qualitativamente a sua base social, a constituição dessas novas alianças – e aqui, de novo, me afasto dos caminhos repisados do discurso de esquerda tradicional, o que soa como um paradoxo – permitiria também reduzir o risco de uma eventual correção da politica econômica do PT, a saber, permitiria a emancipação do petismo em relação aos grandes interesses industriais (sem cair em nenhum sectarismo antiindustrial) e à alta finança. Resumo o argumento “paradoxal”. Estou afirmando que uma atenção maior à classe média intelectual radical (um “acordo“ com ela) – coisa que, na tradição, apareceria como guinada à direita – além de significar uma mutação essencial em matéria de ética politica, permitiria, provavelmente, pelas razões indicadas, dar melhores condições para uma virada à esquerda na política econômica (uma política de juros mais corajosa, maior possibilidade de intervenção do Estado no Banco Central etc). Uma virada que não seria sem riscos – é preciso assumir certos riscos –, mas com riscos muito menores do que os que se assumiria, fosse ela feita nos quadros políticos atuais. O argumento parece estranho, insisto – ele o é, a partir do raciocínio clássico das esquerda –, mas, a meu ver, se impõe. A chamada pequenaburguesia intelectual, tão mal afamada, representa, provavelmente, não só um eleitorado mais exigente em termos de luta contra a corrupção, e de respeito pelos direitos humanos no plano da política internacional, mas um contingente que aceitaria de bom grado uma radicalização no plano da política econômica, se ela se operar em forma democrática. Sabese que se trata de uma camada radical, mas não se leva a sério esse fato. Para supor que alianças dessa ordem seriam possíveis, é preciso sair um pouco das grades tradicionais de pensamento (ou de nãopensamento), que limitam a perspectiva de políticos e analistas da esquerda brasileira.7 Desenvolvimentos: política externa e direitos do homem Falta completar o que foi dito anteriormente sobre dois pontos importantes, situados, de resto, em planos diferentes. O primeiro é o da política externa. Recentemente, um dissidente chinês Liu Xiaobo recebeu o prêmio Nobel da Paz. Perguntado sobre essa atribuição, Marco Aurélio Garcia, assessor de Lula para a política externa, disse que não conhece o chinês premiado, e que o seu candidato era outro (creio que era Lula). Eis aí um bom exemplo da brilhante política externa do governo petista. E há aí uma agravante. Se, em muitos casos de mal julgamento, podese recorrer, como explicação, à ignorância crassa de boa parte da esquerda brasileira no que concerne à experiência do totalitarismo, aqui se deve constatar: Marco Aurélio Garcia sabe muito bem o que fala e o que faz. Até pouco tempo, era um socialista de estilo “autonomista”, leitor de Lefort e de Castoriadis. Mas “evoluiu”. Abraçou a realpolitik, e agora, conforme me foi dito (não pude confirmar), declara, por exemplo, que essa história de democracia é coisa do século XIX. Acho que não é preciso discutir uma afirmação dessa ordem8. Perguntamos: Dilma modificará, em alguma medida, essa atitude e essa política? Um fato auspicioso foi a declaração da presidente recémeleita contra o apedrejamento de mulheres no Irã, e em favor da iraniana ameaçada de execução por crime de adultério etc. A imprensa repercutiu favoravelmente as declarações de Dilma. Um dissidente cubano Dagoberto Valdés, do grupo “Convivência” pediu que a nova presidente dissesse, simplesmente, uma palavra de simpatia pelas vítimas da autocracia castrista9. Não creio que Dilma irá se manifestar imediatamente. Mas não perco a esperança de que poderia haver uma inflexão nesse sentido. Insisto: apoiar a luta dos dissidentes cubanos não enfraquece, mas reforça, e reforça muito, uma política externa independente. Independente no melhor sentido da palavra (não nos esqueçamos de que política externa “independente” e antiamericana, também fazem, no presente, os Ahmadinejad e cia., e fizeram no passado, os populismos, e também os nazifascistas: estes foram tão “independentes”, que até fizeram uma guerra contra a Inglaterra e os EUA). Desenvolvimentos: a questão do aborto (propaganda religiosa e Estado laico) O lamentável “barulho” (não houve, é claro, discussão) em torno do aborto, deixa um gosto amargo na boca. Uma vez passado o processo eleitoral, será necessário começar uma séria campanha de esclarecimento e de luta, em torno do problema do aborto. Este trabalho pode ser feito melhor pelas mulheres. Mas evidentemente, todos devem intervir. Seria preciso explicar que “a defesa da vida” é uma mentira, primeiro porque o que se tem de defender em termos absolutos não é a “vida”, em geral, mas o indivíduo humano vivo. O outro aspecto, ainda dentro do mesmo argumento, é o de que centenas de milhares de mulheres perdem a vida, praticando abortos clandestinos. Em terceiro lugar, insistir sobre o fato de que já a legislação atual reconhece que o aborto não significa morte de uma pessoa humana, porque se fosse assim, não se reconheceria o direito de aborto, em caso de estupro. Nenhum assassinato, mesmo para preservar a dignidade de tal ou qual pessoa, teria sido reconhecido pela lei. Em seguida, seria preciso insistir em que, já, pela lei atual, o aborto foi descriminalizado em dois casos. O problema é saber se devemos incluir outros casos, como fizeram a maioria dos países da Europa. Finalmente, importa explicar sob que condições (o prazo, principalmente) se daria a interrupção que se pretende legalizar. É de se pensar que boa parte da opinião pública brasileira desconhece essas precisões, de todos os pontos de vista, essenciais. Em geral, será preciso enfrentar o discurso das igrejas. Se é preciso evitar todo tipo de sectarismo, importa defender uma posição pelo menos agnóstica, porque, se continuarmos nessa rota, um dia será tarde demais mais para deter a corrente de superstição que domina o país. A propósito, quando Dilma falou em defender a liberdade religiosa, nas suas diferentes expressões, deveria lembrar também que, há, no país – e não poucos –, ateus e agnósticos. E que esses também querem que se respeite suas posições. Enfim, a propósito do problema religioso, em geral, seria interessante salientar que parte (sem dúvida só uma parte) da religiosidade popular se alimenta de uma preocupação ética. Dar ênfase aos problemas de ética na política – ou da política, a distinção é, no caso, irrelevante –, poderia ser útil. Um discurso político e principalmente uma prática política em que essa dimensão não está ausente, é pelo menos um elemento importante de neutralização do fanatismo religioso. Considerações finais A eleição de Dilma Rousseff no segundo turno – dizia no início – foi um muito bom resultado. Aqueles que decidiram não apoiar a candidata do PT no primeiro turno, votando em branco ou mesmo optando por Marina Silva, mas votando em Dilma no segundo, não têm motivos par se arrepender. A meu ver, era esse o melhor caminho. Ele implicava riscos, mas não muito grandes, e, afinal, deu certo. Na realidade, era preciso, e continua sendo preciso, tomar certa distância em relação ao PT, sem deixar de apoiar tudo aquilo que é positivo na sua política. Dar carta branca ao petismo é a pior coisa. É preciso insistir nisto, porque no clima de acirramento eleitoral, ou de obaoba após a vitória de Dilma, há uma tendência, muito patrocinada pelos petistas, a “vender o pacote inteiro”. Esquecer o passado, e simplesmente tocar para a frente. Engano. A pior atitude é a dos que acham que “a política é assim mesmo”, e que se deve dizer amém ao PT. Mesmo porque, como já disse, os melhores elementos dentro do partido estão longe de jogar suas fichas no status quo. Nem devemos nos assustar com as reações da pior parte do PT. Só a efetivação do programa de uma esquerda crítica poderá garantir a continuidade de uma política de redistribuição de renda, e abrir caminho para um projeto de esquerda que vá mais longe do que ela. Ele não só daria ao governo uma base maior de sustentação, mas privaria a direita e a extremadireita dos seus principais argumentos. Claro que a direita, e principalmente a extremadireita, continuarão criando obstáculos ao progresso social e, no caso desta última pelo menos, no limite, irão conspirar. Mas uma coisa é uma propaganda de direita que tem que mostrar a sua cara – ou tem de fantasiar eventos –, outra é a que se apoia sobre os erros e barbaridades que a esquerda efetivamente cometeu. Há, atualmente, um clima de “Brasil grande potência”, que em parte se justifica – houve progresso real –, mas, em parte, é enganoso e perigoso. Claro que o desenvolvimento econômico, ressalvadas certas condições, é positivo, pois permite elevar as condições de vida do povo. Mas não queremos Brasil grande potência, pelo prazer de ser grande potência. No plano da política internacional, só nos interessa esse Brasil grande, se, mantendo e afirmando a sua independência, ele lutar pelo respeito dos direitos do homem e pela democracia, no mundo inteiro, na Ásia como na América Latina. Isto é tanto mais importante, se se pensar no que significa de ominoso a ascensão da China, país de regime totalitário e capitalismo selvagem. Não nos interessa criar um novo monstro frio, mesmo que esse monstro seja verde e amarelo. Ao observar o entusiasmo fácil de alguns, ficamos pensando se esse patriotismo acrítico não tem alguma coisa a ver, mutatis mutandis ainda, com o desastroso patriotismo “de esquerda” que assolou a socialdemocracia europeia, na segunda década do século passado. Nesse plano também, o discurso dos melhores do campo ecológico (junto com a parte melhor do legado socialdemocrata) tem muita coisa a ensinar: nem crescimento econômico pelo crescimento econômico, nem grande potência pelo prazer de ser grande potência. Nos dois casos, é o lado enganoso da ideologia do progresso que tem de ser desmistificado. Empreguei nesse texto, os conceitos de “esquerda” e “direita”, conceitos de que de tão “reconhecidos” são mal conhecidos. (O termo “reformismo”, cujo oposto é “revolucionarismo”, também se tornou opaco). Como disse no início, impõese uma discussão do significado preciso deles, e um trabalho de investigação no plano dos fundamentos do que deve ser uma política para a esquerda. É o que tentarei fazer em um outro texto. primeira semana de novembro de 2010 |
fevereiro #
2
ilustração: Rafael MORALEZ
1 Excurso sobre a questão agrária (o leitor poderá, se preferir, ler esse excurso no final, ou, simplesmente, omitílo). Exemplo de como a lucidez diante da questão das derivas burocráticototalitárias é essencial para pensar também a política brasileira: a questão agrária. Aproveito a ocasião para, neste excurso, dar algum desenvolvimento à discussão desse tema. Em entrevista àa televisão, Plínio acusou o governo petista de transformar os movimentos sociais em ONGs, e propôs simplesmente que se insistisse nas “ocupações”. Qual deve ser a atitude correta, de um ponto de vista de socialista radical e democrático, em relação a essa importante questão? Eu diria: é preciso apoiar a luta dos trabalhadores rurais, e se opor à atitude conservadora da direita e do centrodireita. Mas essa posição tem de ser enunciada com duas precisões. Uma é a de que apoiar a luta não significa apoiar a violência, mesmo se às vezes, é verdade, os limites entre uma coisa e a outra podem não ser muito nítidos. Na realidade, para as grandes linhas de uma política, eles o são. Diria que é preciso radicalizar as lutas até o “limite” da violência, mas sem ultrapassar esse limite, porque a violência não serve aos camponeses. A segunda precisão é que se deve ser exigente diante da questão de saber quem dirige o movimento camponês, e é aqui que aparece o problema de que partimos. Na tradição da esquerda radical, aceitase, com excessiva facilidade, a ideia de que tal ou tal líder “represente” o campesinato. A possibilidade de que ele seja um falso representante, que, lutando contra a grande propriedade embora, vai levar água não para os camponeses mas para uma nova burocracia, é logo recusada, por ter um ar de argumento da direita. Esta, de fato, costuma apelar para a ideia de “manipulação”. Porém importa menos saber o que diz a direita, do que saber o que se passa efetivamente. Aqui, como mais ou menos por todo lado, há três e não duas posições: direita – incluindo puro “reformismo” –, esquerda tradicional mais ou menos burocratizada ou totalitária, e esquerda crítica. Na realidade, parte das pretensas direções camponesas, em particular as extremamente radicais, não representam uma verdadeira “direção camponesa“; apesar das aparências, não estão a serviço dos camponeses. Se é verdade que elas estão contra a grande propriedade – o princípio do terceiro excluído aqui, e alhures, não vale para a política dos séculos XX e XXI – disso não se conclui que elas estão a serviço dos camponeses. De fato, seus planos são, mais ou menos explicitamente, os de trilhar os caminhos das chamadas revoluções russa, chinesa ou mesmo cubana. Ora, nos dois primeiros casos, a expropriação dos grandes proprietários, que, de fato, ocorreu, não se fez, porém, em benefício dos camponeses mas de uma nova burocracia, e, mais do que isso: os camponeses foram as grandes vítimas do processo, que culminou com o massacre de milhões deles. No caso cubano, não houve massacre, mas os progressos, muito relativos, no campo, se fizeram no quadro de um poder totalitário, que liquidou as liberdades e asfixiou a economia. Para não prolongar muito esse excurso, preciso, terminando, que, ao lado dos hiperradicais, existem direções camponeses radicais, mas que são sérias e responsáveis, e isto, até onde sei, em parte dentro mesmo do MST, e em parte fora. Para fazer essas distinções, que não constituem sutilezas, mas remetem a elementos de uma situação complexa a deslindar, é necessário saber, em primeiro lugar – eis aí o problema de que partimos –, que a derrubada do capitalismo não leva necessariamente a uma sociedade mais justa. Ela pode levar a isso, mas pode levar também a uma nova forma de exploração, pelo menos tão terrível quanto a antiga, na realidade pior do que ela. Cabe à esquerda lúcida combater o capitalismo neutralizando ao mesmo tempo esse perigo.
2 Dirseá que era a direita que queria um segundo turno. Sem dúvida, ela queria, mas por razões próprias: através dele, ela contava com a possibilidade de uma derrota de Dilma. Que a direita queira um préresultado com objetivos diferentes dos nossos, não é sempre uma razão suficiente para não visar, por outros motivos, e com outros objetivos, esse préresultado, prolongandoo em sentido oposto ao da direita. Por exemplo, há alguns anos, na França, no referendo sobre a Constituição Européia, constituição muito marcada por uma filosofia econômica neoliberal, a extremadireita era contra, por razões de nacionalismo; mas isso não foi motivo para que parte da esquerda francesa votasse contra o projeto constitucional de fatura bem nitidamente neoliberal, e que veio a ser derrotado.
3 Aqueles que, no início do processo eleitoral, se referiram aos problemas de corrupção no PT (creio que posso me incluir entre eles), não podiam imaginar que, alguns dias mais tarde, estouraria um caso de corrupção, e não em alguma obscura agência do governo, mas no seu núcleo central, já que, envolvendo, ninguém menos do que a Ministra da Casa Civil.
4 Sem dúvida essa nova aliança também poderia incorporar a extremaesquerda, isto é, a parte da extremaesquerda que não apoia o PT. Mas além desse contingente não ser muito numeroso, de imediato pelo menos, é difícil que ocorram modificações importantes nesse campo. Porém, principalmente se os melhores do PT forem se impondo, é claro que gente do PSOL pode avançar na direção de uma política menos rígida e também com menos ilusões com os chamados socialismos reais. De um modo geral, convém insistir na necessidade de que se discuta, e se discuta muito, no interior da esquerda, numa atmosfera de franqueza e seriedade teórica. Que se troquem argumentos, que se remeta a experiências históricas, num clima diferente daquele, excessivamente tenso e dogmático, que é, em geral, o dominante, evidentemente agravado pelo embate eleitoral.
5 Nesse sentido, situome numa posição eminentemente critica em relação a um artigo, intitulado “Marina em Wall Street”, publicado na Folha, em setembro, pelo meu colega e amigo Vladimir Safatle, artigo que traça um quadro ultrapessimista da ecologia no mundo, fornecendo, a meu ver, uma descrição essencialmente errada, inclusive no plano dos fatos. É verdade que o movimento verde alemão (na realidade uma parte dele) aceitou alianças regionais (nunca nacionais) com a direita (os verdes alemães fizeram alianças regionais e nacionais com a esquerda, e importantes dirigentes do partido declaram que eles estão mais próximos da esquerda do que da direita; a acrescentar que a apreciação, que faz Safatle, do ministro ecologista das relações exteriores, do governo da coalisão anterior – verde/socialista – Joschka Fischer, é equivocada: Fischer foi um muito bom ministro, não incorrendo nas derrapagens dos nossos amorins em matéria de direitos do homem). Mas o autor erra principalmente ao falar do movimento ecologista na França. Literalmente, é deste movimento que depende a derrota provável de Sarkozy nas próximas eleições. Na realidade, sob a égide de CohnBendit – que Safatle parece não apreciar –, formouse um novo movimento, Europe Ecologie, de que o antigo partido verde é apenas uma parte. O movimento inclui uma jurista libertária com uma bela folha de serviços, a franconorueguesa Eva Joly, e até um verde de extremaesquerda, bastante radical, José Bové. (Tentei publicar uma pequena nota crítica ao artigo de Safatle, mas não consegui que a inserissem nem mesmo na versão eletrônica das cartas de leitores.)
6 Mesmo se a situação interna do PT evoluir favoravelmente ao que hà de melhor dentro dele, não nos iludamos, enquanto o PT depender do PMDB e de outros partidos do mesmo tipo, os problemas não desaparecerão, se é que não irão se agravar. Por melhores que sejam as suas intenções, dificilmente um governo consegue controlar, em termos de honestidade administrativa pelo menos, o que ocorre num ministério que está nas mãos de certos partidos aliados. Por outro lado, acordos do tipo dos que fez o PT, com Sarney ou com Collor, têm, em geral, não só um preço político, mas também um preço econômico, o que significa, na realidade, um preço “éticoeconômico“.
7 Minha impressão – impressão de não “politólogo“ – é a de que as análises correntes da política nacional oscilam entre modelos que ficam muito no plano especificamente político ou memo eleitoral, não dando suficiente peso aos substratos sociais, e modelos que dão mais espaço ao social; mas, então, eles trazem consigo uma carga marxista ortodoxa, de tal modo que só revelam o que a grade marxista permite ver. Assim, ou não se fala em classes, ou se fala delas, mas, então, o “proletariado”, por exemplo, aparece, com a sua inevitável consciência e vocação revolucionária, que, se não existir, há de ser “adjudicada” ou atribuída à força, em nome da teoria... Quanto à “pequenaburguesia”, como se sabe, ela hesitaria sempre, e “moralizaria” demais...
8 Depois de redigido este texto, tivemos mais uma pérola da diplomacia brasileira. Através da sua representante, o Brasil se recusou a votar favoravelmente a uma proposta do Canadá condenando as violações dos direitos humanos no Irã. A justificativa que foi fornecida é a de que seria preciso analisar o conjunto das situações, e julgar tudo de um ponto de vista imparcial e não político... Enfim, conhecemos a melodia, a do cinismo relativista. Não se condena um governo hiperrepressivo, porque todos os governos o são... um pouco... Assim, democracias (capitalistas embora) são postas no mesmo plano das ditaduras mais sangrentas do planeta. Se é essa a diplomacia “de independência nacional”, estamos bem. Nem o argumento de que se votássemos a moção estaríamos fazendo o jogo de tal ou tal país, nem o argumento, sobreposto, de que, justamente, foi a “grande imprensa” que criticou a posição do Brasil, procedem. É possível ser independente sem se comprometer com as autocracias mais sinistras da Terra, ou antes, só podemos ser verdadeiramente independentes se formos capazes de recusar o inadmissível, o que exige distância em relação à realpolitik. Quanto ao que diz a imprensa, grande ou pequena, se fosse esse o critério, teria sido impossível criticar os massacres de Stalin ou de Mao, já que a imprensa de direita falou mais deles do que a de esquerda. Problema complexo demais para os espíritos simples.
9 Dagoberto Valdés declarou: “Não querermos nada de extraordinário. Apenas que a nova presidente do Brasil defenda para o povo cubano a mesma liberdade que ela defenderia para a sua própria população“.