POLÍTICATEORIACULTURA ISSN 2236-2037
Daniel Golovaty CURSINO |
anatomia do conflito israelense-palestino |
Guerra - [raiz INDO-EUROPEIA wers - "confusão” > GERMÂNICO OCIDENTAL (da Francofônia) "werra” > PORTUGUÊS "guerra”]. (M. F. Whitaker Salles, "Dentro do Dentro - os nomes das coisas”). |
Com a única exceção da eleição de Barak Obama para a Casa Branca, a situação atual do conflito israelense-palestino encarna um verdadeiro pesadelo para todos aqueles que defendem o fim desta longa e dolorosa guerra através de uma paz negociada que seja justa e duradoura. Em fevereiro de 2009 o povo israelense elegeu o governo mais direitista da história de seu país, cuja coalizão é encabeçada por um partido tradicionalmente rejeicionista do direito palestino a possuir um Estado - o mesmo direito que foi justamente reconhecido aos judeus pela ONU em 1948 - e por outro partido que possui como uma de suas principais bandeiras o virtual cancelamento da cidadania da minoria árabe-israelense. Isto após duas guerras evitáveis e desnecessárias (Líbano, 2006 e Gaza, 2009) que resultaram na morte de um grande número de civis libaneses e palestinos e que não melhoraram em nada a segurança estratégica de Israel. Ao contrário, a última ofensiva sobre Gaza teve dentre seus principais efeitos políticos aumentar ainda mais o isolamento internacional do país - afastando, inclusive, as duas potências regionais moderadas (Egito e Turquia) que poderiam atuar politicamente em favor de acordos de paz – além de revigorar, com o sangue de inocentes, o discurso jihadista que prega uma guerra de extermínio contra os judeus, discurso este que nos últimos anos tem sido encabeçado e turbinado por uma potência regional em vias de nuclearização. A democracia israelense subsiste, mas estiola-se sob a percepção geral de um panorama de guerra permanente e de um contexto exasperante de retorno do espectro da destruição do país, agora não mais encarnado no pan-arabismo com seus exércitos convencionais, mas na sombria conjunção da bomba iraniana com a guerra irregular que grupos terroristas como o Hizbollah e o Hamas lhe dirigem a partir do norte e do sul. Contra tais ameaças, o poder de dissuasão sobre o qual desde sempre se erigiu a política israelense em relação aos países árabes, a da “Muralha de Ferro”[i] tem demonstrado ser de pouca eficácia. De fato, Israel não tem mais diante de si inimigos estabelecidos na forma do Estado-nação e impulsionados por ideologias nacionalistas, militaristas e modernizadoras, tal como ocorreu no passado, mas sim grupos fundamentalistas organizados em “sub-Estados” precários ou então regimes islâmicos fim de linha que não possuem qualquer perspectiva crível de inclusão sócio-econômica a oferecer aos seus povos, a qual é então substituída pela ideologia apocalíptica da jihad e do martírio. Se a isto acrescentarmos a circunstância, demagogicamente explorada pela direita, de que a importante minoria árabe-israelense tem, desde a eclosão da Segunda Intifada em setembro de 2000, adotado posições cada vez mais extremistas, alienando-se de Israel e se solidarizando com os grupos islâmicos supracitados que pregam abertamente a destruição do país no qual vive, então temos o quadro aterrador, vivenciado por muitos como verdadeiro, de uma pequena nação constituída por descendentes de sobreviventes e refugiados que se vê internamente acossada por uma potencial quinta coluna de 20% da sua própria população e, externamente, emparedada por todos os lados por um inimigo tão grande quanto irredutível, capaz de sacrificar parcelas inteiras da “nação islâmica” (Umma) para alcançar os seus objetivos maiores de destruição da “entidade sionista” e de resgate da “terra islâmica”[ii]. É neste pântano de paranóia e medo que vicejam os frutos podres da intolerância, do racismo e do fanatismo nacional-religioso, e que os valores democráticos passam a ser vistos por uma parcela crescente da população de Israel como um luxo a que o país, se quiser sobreviver, não pode se dar. Como fronteira avançada na guerra contra a “jihad mundial”, Israel deveria se resignar a viver pela espada e, portanto, em um quase permanente estado de exceção.[iii] É claro que este quadro desolador não é (ou ainda não é) verdadeiro, como o sabem todos aqueles que não têm as mentes embotadas pela ideologia da “guerra de civilizações”[iv], visto que decorre de uma manipulação seletiva de fatos, bem como da omissão da política ativa dos sucessivos governos israelenses desde Ariel Sharon de congelamento do processo de paz e de colonização e anexação de terras palestinas na Cisjordânia – uma política que, por sua vez, também possui um caráter marcadamente suicida e autodestrutivo, visto que já ameaça tornar inviável uma solução de dois Estados, a qual, fora de um hipotético longuíssimo prazo, constitui a única solução possível capaz de estabelecer uma paz duradoura na região. Mas se não é verdadeiro, o quadro é objetivo o suficiente para ser plausível e convincente para a maioria de israelenses que elegeu B. Netaniahu e A. Liberman, bem como para uma parcela significativa dos judeus da Diáspora. Sendo assim, a questão que se coloca é: como foi possível se passar de uma situação de amplo apoio ao processo de paz e à solução de dois Estados, nos inícios da década de 1990, para um panorama de ascensão aparentemente irrefreável do fundamentalismo e do rejeicionismo em ambos os lados do conflito, no qual a narrativa da “guerra de civilizações” pode ser enunciada com alto grau de verossimilhança?[v] Há várias respostas circunstanciais e conjunturais para esta questão que, como sublinha V. Safatle em um importante artigo sobre o assunto, “há muito deixou de ser um problema regional” para tornar-se uma “peça maior da pauta da política externa (e não só externa) mundial”[vi]. A existência em ambos os lados de grandes minorias rejeicionistas (passando dos 30% da população) que estão muito bem organizadas politicamente; a perda de confiança do público israelense sobre as reais intenções dos palestinos após o fracasso das negociações de Camp David e a irrupção da Segunda Intifada, com seus atentados terroristas e sua característica islamização; inversamente, a perda da confiança palestina nas reais intenções de Israel, que não só continuou expandindo mas acelerou o ritmo da implantação de assentamentos na Cisjordânia palestina e no Leste de Jerusalém em pleno processo de paz; a influência iraniana através do Hizbollah e do Hamas; o peso do lobby direitista “pró-Israel” nos EUA; todos estes (e há outros) são elementos imprescindíveis para entender o fracasso do processo de paz e que mereceriam uma análise atenta. Entretanto, neste artigo pretendo abordar apenas as questões que considero ser estruturais a este conflito, de cuja análise teórica e correto encaminhamento político depende a possibilidade, mesmo que agora distante, de uma futura paz na região. O conflito israelense-palestino constituiu-se historicamente como o confronto estruturalmente simétrico entre dois movimentos nacionais pelo mesmo território, o da região compreendida entre o mar Mediterrâneo e o rio Jordão, correspondente à antiga Palestina do mandato britânico. Tal simetria de estrutura envolvia, contudo, um conjunto de relações assimétricas entre os dois contendores. A favor dos judeus estava o fato de que após a Primeira Guerra Mundial a Inglaterra - guindada pela Liga das Nações ao posto de potência mandatária da região - passou a apoiar, embora de modo ambíguo, o empreendimento sionista, protegendo-o até o final da década de 1930, numa época em que suas forças ainda eram insuficientes para garantir sua autodefesa. No transcorrer daqueles anos, os líderes do movimento sionista lograram transformar a Agência Judaica (Sochnut Hayehudit) em um verdadeiro proto-Estado, com uma estrutura político-organizacional que capacitaria o ishuv[vii] a enfrentar com sucesso as imensas dificuldades relativas à criação do Estado de Israel. Além de uma organização superior, os judeus constituíam um povo que podia mobilizar uma consciência nacional extremamente arraigada, visto que remontava não a séculos, mas a milênios. Em contraste, a identidade nacional dos árabes-palestinos ainda estava em seus primórdios, mal se diferenciando do entorno dos demais países árabes da região. Com uma organização política centrada na liderança de clãs tradicionais, os “ palestinos”[viii] pouco puderam fazer para evitar que o empreendimento sionista prosperasse, sendo que uma revolta organizada contra a presença judaica só foi efetivada com a Rebelião Árabe de 1936-39, sob a liderança de Haj Amin al-Husseini, o mufti de Jerusalém, no contexto de sua aliança política e ideológica com a Alemanha nazista.[ix] Por outro lado, com relação ao fator demográfico havia um brutal desequilíbrio entre os lados. Na década de 1930, o ishuv contava com algumas poucas centenas de milhares de pessoas, face à imensidão do entorno árabe que, no caso de uma guerra, estava claro que cerraria fileiras ao lado de seus irmãos da Palestina contra o “invasor sionista”. Já as lideranças do movimento sionista pensavam que sua densidade demográfica seria aumentada pelo que esperavam ser um grande afluxo de judeus europeus que teriam na Palestina seu único refúgio contra o anti-semitismo europeu que recrudescia. Desgraçadamente, antes do início da Segunda Guerra Mundial poucos podiam imaginar a aterradora dimensão da exterminação nazista. Assim, com a sua base demográfica drasticamente reduzida, o projeto sionista adquiriria um aspecto tão implausível quanto inexorável. Implausível, pois mesmo em caso de vitória na guerra que se avizinhava, os judeus estavam de antemão condenados tanto pela geografia quanto pela demografia a constituir um pequeno enclave permanentemente sitiado por um universo hostil. Inexorável, pois o ishuv e os sobreviventes europeus da Shoah já não tinham outra opção além da de prosseguir em direção à criação do sonhado Estado Judeu[x]. Além disso, após o conhecimento público das dimensões da Shoah, estavam mais do que nunca convictos da justeza de sua causa, afinal não era verdade que a premonição de Herzl de que “a luta de classes será travada às nossas custas” (O Estado Judeu) realizara-se numa escala inimaginável para o próprio idealizador do sionismo político? Após a vitória na Guerra de 1948, o Estado de Israel estabeleceu-se em 78% do território da Palestina britânica, sendo as atuais regiões da Cisjordânia e Gaza ocupadas pela Jordânia e pelo Egito, respectivamente. Dentro da área conquistada por Israel, constituiu-se uma sólida maioria judaica, mas ao preço da expulsão de mais de 700 mil árabes para os países adjacentes, onde passaram a viver como refugiados[xi]. Travara-se uma guerra extremamente violenta, a qual, para os árabes palestinos, cujas lideranças haviam apostado todas as suas fichas em “jogar os judeus no mar”[xii], resultou em uma catástrofe nacional, a Nakba. Também para os judeus, o que estava em jogo era muito mais do que traçados de linhas de fronteiras, pois havia a consciência geral de que uma eventual derrota frente aos exércitos árabes significaria a destruição completa do ishuv, isto é, um possível segundo genocídio de judeus apenas três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas mesmo com a vitória, as fronteiras do novo Estado permaneciam extremamente precárias do ponto de vista defensivo, devido ao fato de que Ben Gurion recusara-se, contra a opinião de seus generais, a ordenar um avanço do exército israelense sobre a Cisjordânia e Gaza em novembro de 1949, quando isto havia se tornado militarmente possível[xiii]. Se tivermos em mente o fato de que as elites políticas e militares israelenses acreditavam que uma paz com os árabes só seria possível quando estes estivessem convencidos da impossibilidade de destruir Israel, então poderemos compreender o significado da frase que Ygal Allon, um dos legendários generais israelenses do período, proferiu após o fim dos confrontos militares: “Israel ganhou a guerra, mas perdeu a paz”. Neste ponto, já emerge um dos elementos essenciais do conflito palestino-israelense e, mais amplamente, do conflito árabe-israelense, a saber, o fato de que não estamos tratando aqui de um conflito territorial de configuração clássica, isto é, de um conflito em que duas ou mais nações disputam entre si territórios e fronteiras[xiv]. E isto por algumas razões básicas. Uma delas assenta-se na constatação de que, em ambos os lados do conflito, constituíram-se narrativas que o alçam a uma dimensão propriamenteexistencial. Para os árabes-palesinos, é a sua identidade nacional mesma que foi construída sobre a idéia de uma pátria ancestral invadida e profanada por uma espécie particularmente abominável de imperialistas ocidentais, “os sionistas”, os quais não possuiriam nenhum vínculo histórico com a região para a qual teriam se dirigido apenas com objetivos de domínio e exploração.[xv] De forma análoga, embora não simétrica, também para os judeus a guerra com os países árabes sempre abarcou uma dimensão existencial, isto é, sempre colocou em perigo o mais elementar direito à vida e à existência coletiva da nação israelense. Com efeito, uma das coisas que explica a vitória de Israel nas três grandes guerras contra os países árabes (1948, 1967 e 1973) é a presença de uma convicção generalizada entre seu povo de que, se quisesse viver, simplesmente não poderia sair de qualquer uma dessas guerras como derrotado. Se a doutrina da Muralha de Ferro sempre foi falsa, dado que homogeneíza no espaço e no tempo o grande e diversificado mundo árabe[xvi], ela saiu-se até hoje politicamente vitoriosa pelo fato de repousar sobre uma verdade inegável: a radicalidade da recusa árabe em reconhecer o direito à existência de Israel.[xvii] Uma ironia desta história é que a circunstância de excepcionalidade de uma nação lutando pelo seu direito de existir pode ser vista contra o pano de fundo de que o sionismo político assumiu historicamente a forma um tanto paradoxal de uma “revolução normalizadora”. Dado o fato de que a dispersão e o esgarçamento dos vínculos nacionais do povo judeu tendiam a se acentuar pela ação das tendências niveladoras e homogeneizadoras de uma modernidade que se queria emancipada, não havia nada como uma corrente histórica considerada “inexorável” ou “progressiva” que assegurasse a continuidade da existência dos judeus enquanto nação. Uma vez constatada a realidade de que a existência do povo judeu - um povo perseguido e disperso por quase dois mil anos - não ocorrera apenas através da história, mas também apesar dela, tratava-se, segundo David Ben-Gurion, de encetar a “revolução judaica” (o sionismo) como uma revolução contra a História[xviii], isto é, como a afirmação de uma vontade nacional rebelde tanto frente ao anti-semitismo quanto ao que era visto como resignação assimilacionista daqueles que não mais queriam sustentar a dívida da lembrança de que eram filhos de Israel.[xix] Uma revolução, portanto, duplamente sui generis, pois além de estar em oposição à uma suposta corrente histórica, tinha como objetivo principal assegurar aos judeus o direito universalmente reconhecido a todos os povos de se organizar nacionalmente dentro das fronteiras territoriais de um Estado que lhes garantisse segurança e autodeterminação. Portanto, uma revolução que transformasse os judeus em um povo “normal”, uma nação vivendo e atuando em meio às outras nações... Entretanto, em seu projeto de construção de Israel, desde o início ficou claro para os sionistas que a reunião de um povo disperso em uma nova nação não resultaria naturalmente de processos espontâneos de imigração induzidos por sociedades liberais orientadas para o mercado, mas teria necessariamente de ser o produto de um plano, isto é, de uma elite política que, qual uma vanguarda de tipo bolchevique, criasse a infra-estrutura econômica, política e institucional do que deveria ser a nova nação israelense.[xx] A força desta constatação era tão incontornável que desempenhou, por exemplo, a proeza de transformar um liberal como Theodor Herzl em um estranho tipo de socialista utópico em pleno século XX.[xxi] Tanto assim que na base do projeto sionista estiveram instituições como a Histadrut (central sindical) com seu complexo de empresas, sistema de educação e saúde próprios; os kibutzim e moshavim; os movimentos juvenis de pioneiros, além, é claro, do próprio Exército, como instrumentos para constituição de laços de solidariedade e de organização de projetos políticos capazes de conferir a um conjunto bastante heterogêneo de emigrados e refugiados judeus conteúdos políticos positivos e um sentido de destino comum autonomamente pautados, isto é, que fossem para além do medo frente ao anti-semitismo global e às nações árabes inimigas. Após a Guerra dos Seis Dias, o conflito adquiriu uma nova e decisiva dimensão. É que a ocupação por Israel de Gaza e Cisjordânia, territórios densamente povoados por árabes, produziu o efeito extremamente desestruturador de reabrir o debate interno israelense sobre as fronteiras do país, um debate fundamental que já havia sido dado por encerrado com a derrota política de Israel após a vitória militar sobre o Egito na campanha do Suez, em 1956.[xxii] Ora, uma fronteira não constitui apenas uma linha imaginária que estabelece a quantidade de território que pertence a um Estado, mas um limite que, retroativamente, determina os contornos essenciais de certa nação, contornos estes não apenas físicos, mas também políticos e institucionais. Trata-se aqui de nada menos do que do modo como um povo constitui sua identidade política enquanto nação frente ao Outro, bem como do tipo de vínculo social que estabelece entre seus cidadãos. Uma fronteira indefinida, sobre a qual não há consenso nem interno nem externo, age inevitavelmente como uma ferida aberta no corpo da nação, tendendo perigosamente - e em detrimento da noção democrática de contrato social - a “criar vínculos orgânicos entre nação, Estado e povo”.[xxiii] Shlomo Ben-Ami[xxiv], rebatendo o recorrente expediente da direita israelense de tachar a esquerda de “antipatriótica, “derrotista” ou até “traidora”, afirmou que “a direita não tem o monopólio do patriotismo”, lembrando que “neste país (Israel) o patriotismo foi inventado pela esquerda e não pela direita”[xxv]. De fato, pode não ter o monopólio, mas é impossível deixar de constatar que, desde o fracasso das negociações de Camp David e da eclosão da Segunda Intifada ela vem obtendo uma hegemonia esmagadora. Com efeito, o resultado mais impressionante das últimas eleições israelenses não foi a vitória do Likud, mas a humilhante votação do partido trabalhista, o partido que praticamente fundou Israel, o qual deixou de figurar sequer entre o três partidos mais votados. Tal fato só pode ser adequadamente compreendido à luz dos efeitos corrosivos produzidos pela combinação mortífera de uma espécie de “estado de exceção” (a Ocupação) que vai se perpetuando com o desmonte das estruturas políticas e institucionais através das quais o sionismo ganhou consistência histórica, a saber: dos dispositivos de socialização e seguridade social que foram liquidados pelas políticas neoliberais das últimas décadas, as quais transformaram Israel, de modelo de sucesso social-democrata em um país periférico, na segunda sociedade mais desigual do mundo entre os países desenvolvidos, sendo apenas superado pelos EUA. Com efeito, foi logo após junho de 1967 que o Movimento Nacional Religioso, na época um grupo politicamente inexpressivo e que costumava apoiar os trabalhistas, passou a desenvolver uma teologia-política agressiva centrada numa mística de Eretz Israel que pouco tem a ver com a tradicional ortodoxia religiosa judaica.[xxvi]. E já em 1977, apenas dez anos após o início da Ocupação, tronou-se possível a um partido da direita israelense, com Menachen Begin à frente, vencer as eleições do país baseado em um discurso nacionalista sobre a integridade de Eretz Israel e voltado para a capitalização eleitoral populista de um déficit de integração social que já se verificava nas comunidades de judeus sefaradim. Aliás, um dos efeitos mais perniciosos para o projeto sionista de construção nacional produzidos pela combinação aludida acima entre fronteiras indeterminadas e políticas neoliberais é a impressionante fragmentação interna de Israel, pela qual o país vem se transformando em um conglomerado de “sub-comunidades”, cuja interlocução, dada a precariedade do campo político - isto é, de um espaço comum para o dissenso legítimo -, torna-se progressivamente mais problemática, com sua unidade dependendo cada vez mais do medo frente ao inimigo. Assim, a onda nacionalista e xenófoba que vem tomando conta de Israel, apesar das aparências, não deve ser entendida como uma radicalização do sionismo, mas, ao contrário, como o resultado de sua desagregação e possível falência enquanto projeto histórico de normalização nacional, pois a direita no poder não possui nenhum projeto nacional consistente e nada tem a propor senão a “administração do conflito”, isto é, a perpetuação de uma estado de exceção que só pode ser mantido através do medo, fanatismo e demagogia populista e que, se não for politicamente derrotado, fatalmente acabará transformando Israel – paro o imenso regozijo das tiranias e dos movimentos anti-semitas que têm no “antissionismo” seu principal cavalo de batalha – em um verdadeiro Estado pária, no qual o “apartheid” deixará de ser apenas uma peça de propaganda de seus inimigos.[xxvii] Também o movimento nacional palestino vem sofrendo um processo análogo de decomposição. A identidade nacional árabe-palestina, iniciada com o trauma da Nakba e, nova ironia, consolidada pela vitória israelense na Guerra dos Seis Dias - quando então os territórios de Gaza e Cisjordânia foram unificados pela Ocupação - atingiu seu auge histórico com a eclosão da primeira Intifada, em 1987, ocasião em que, sob o influxo da sublevação popular, a sociedade civil palestina se organizou enquanto comunidade política dotada de uma identidade e um projeto nacional próprios. Dessa perspectiva, a comparação entre as duas Intifadas torna-se esclarecedora. A primeira Intifada pode, com justiça, ser caracterizada como um autêntico movimento popular de libertação nacional, pois, através da organização da desobediência civil, estruturou a sociedade palestina na luta por direitos reconhecidamente universais. Dela não esteve ausente a violência, mas esta foi em grande parte limitada aos soldados israelenses nos territórios ocupados, fato que fez com que fosse considerada - inclusive por não poucos israelenses - como legítima contra-violência. No médio prazo, seu efeito político em Israel foi desmoralizar a retórica nacionalista, maniqueísta e vitimatória da direita, movendo a opinião pública para a esquerda, em direção a uma solução de dois Estados.[xxviii] A Segunda Intifada, que eclodiu em setembro de 2000, embora inicialmente contasse com alguma participação popular, rapidamente estreitou-se e se reduziu a não muito mais do que uma onda de terrorismo contra a população civil de Israel, levada a cabo sobretudo pelo Hamas, grupo islâmico radical que no período de Oslo já promovera uma sequência assassina de atentados terroristas dentro de Israel, visando (com sucesso) torpedear as negociações de paz. Ao contrário do que repete sem cessar certa esquerda esclerosada e incapaz de aprender com a experiência histórica, o Hamas não constitui um movimento de libertação nacional. Em primeiro lugar, porque em seu horizonte político não há libertação alguma, mas sim a instituição de uma ditadura clerical-militar por meio de um programa antissemita de matiz genocida. Em segundo lugar, e isto vem ao encontro do ponto que quero aqui salientar, o Hamas tampouco deve ser considerado um movimento nacional palestino, pois se é verdade que ele é composto de palestinos e visa a “libertação da Palestina” (destruição de Israel), não é menos verdadeiro que ele encarna um braço da “Irmandade Muçulmana” dentro do território palestino, tendo por referência mais ampla, não o povo palestino enquanto nação, mas sim a terra e a Umma islâmicas. Portanto, o crescimento de ideologias irracionais e (auto) destrutivas de ambos os lados não se deve a uma inapetência meramente psicológica dos contendores para o diálogo, nem tampouco à incapacidade da maioria dos israelenses e palestinos para imaginarem-se no lugar do outro, como não se cansa de repetir um bem intencionado, mas infelizmente estéril, mantra pacifista. Com tal afirmação não se pretende de modo algum desvalorizar ou minimizar a importância do diálogo e da imaginação política, mas sim chamar a atenção para o fato de que na raiz tanto da impossibilidade de um quanto do empobrecimento da outra encontra-se a peculiar indeterminação de fronteiras que produz e reproduz sem cessar a barbárie deste conflito. É no lusco-fusco da indistinção entre terra e povo; povo e nação; política e religião; luta de defesa e guerra de conquista que o diálogo é de antemão envenenado e que palavras como “paz”, “justiça”, “liberdade” e “democracia” podem significar a um só tempo a si mesmas e o seu contrário. Além disso, e como se já não bastasse o imbróglio regional, o conflito israelense-palestino é afetado por uma segunda ordem de indeterminação, esta de dimensão global, visto que ocorre de ele ser travado em uma região que se configura, ela mesma, em fronteira de duas civilizações, as quais, segundo a narrativa hegemônica, estariam em guerra. Assim, a ideologia da “guerra de civilizações” – fórmula mistificada do conflito social mundial que, na impossibilidade de expressar-se enquanto tal, é deslocado para a esfera da “cultura” - condensa-se na “questão palestina”, a qual é, então, vicariamente inflada, ganhando com isso o caráter de conflito arquetípico do Bem contra o Mal.[xxix] Mas como a crise da forma política do Estado-nação é geral, bem como a extinção mental que a ela está associada[xxx], o maniqueísmo não está apenas na direita e um processo análogo de mistificação ocorre também com a ideologia de certa esquerda ou extrema-esquerda que, através de uma espécie de gnose antiimperialista, traduziu na novilíngua do antissionismo todos os mais virulentos estereótipos do antissemitismo clássico. Assim é que o sionismo deixa de ser um movimento de libertação nacional, empreendido por um povo universalmente oprimido e massacrado – que deve ser historicamente contextualizado, analisado em seus diversos aspectos e matizes e, evidentemente, também criticado – para tornar-se o produto maligno de um complô Ocidental ou imperialista urdido com o objetivo de submeter os povos árabes. “Inerentemente racista”, portanto, e que possuiria seus tentáculos em toda parte: o “controle judaico da imprensa” se transforma no “lobby sionista sobre a mídia”. Israel, rebento de um desejo impuro, traz o colonialismo em seu DNA. Encarnação da essência do “judeu provocador de guerras”, é absolutamente culpado por todos os confrontos bélicos de que participou, já que promoveria uma “guerra permanente contra os povos”[xxxi]. Não possui história digna de ser narrada; um povo com tradições, conflitos e diversidade; conquistas sociais e culturais a serem reconhecidas nem tampouco quaisquer instituições meritórias. Reduzindo-se a mais pérfida plasmação do poder e dinheiro do imperialismo Ocidental, constituiria um “Estado artificial”[xxxii] ou “entidade sionista” que, por tratar-se de um “corpo estranho” ou “parasita” no Oriente Médio, encarnaria um perigo mortal a todos os povos da região, devendo por isso ser extirpado a todo custo. Como nova figura do caráter cósmico do crime judeu, Israel é a “raiz de todo mal”[xxxiii]: seu pecado original foi ter nascido.[xxxiv] Neste verdadeiro campo minado do conflito palestino-israelense, a questão que se coloca para os socialistas democráticos e, mais amplamente, para a esquerda democrática é a de como desatar os nós que têm impedido que um conflito de raízes sociais e nacionais seja tratado no seu terreno adequado, isto é, no campo político, de modo a evitar o seu deslocamento mistificador para as esferas da religião e da cultura, com as inerentes conseqüências racistas, islamófobas e antissemitas. Neste ponto, é preciso concordar plenamente com o argumento central de V. Safatle[xxxv], muito embora discordemos aqui, ao menos em parte, de sua contextualização histórica e encaminhamento político. E isto por três razões básicas. A primeira é que, embora Safatle ressalte muito justamente o papel que o Ocidente historicamente desempenhou e continua a desempenhar no bloqueio do campo político[xxxvi] no Oriente Médio, ele se esquece de apontar para o papel igualmente importante desempenhado pelos fatores internos às sociedades árabes e muçulmanas. Com efeito, não foi a política norte-americana a responsável pelo fracasso do pan-arabismo nasserista, mas sim seu autoritarismo congênito e seu patente belicismo, que o levariam à derrota de 1967. Da mesma forma, malgrado os EUA tenham apoiado movimentos islâmicos radicais durante a Guerra Fria, não foram eles que os inventaram, nem tampouco seria correto debitar exclusivamente à sua política o atual crescimento e a assustadora popularidade desses movimentos. Com isto, o que se quer dizer aqui é que para a esquerda democrática é fundamental proceder a um crítica impiedosa da mitologia terceiro-mundista e anti-imperialista cujos rescaldos abundam nos movimentos “pró-palestinos” encorpados, quando não encabeçados, por certa esquerda adepta e propulsora da demonologia antissionista. Em suma, quando a crítica se resume apenas à política ocidental, na melhor das hipóteses, ela acaba deixando intacta a ideologia que hoje é a principal responsável pelo envenenamento do possível e necessário diálogo entre os judeus e árabes verdadeiramente pacifistas e internacionalistas. Tal unilateralidade de V. Safatle é correlativa, por sua vez, da fatal subestimação, que parece transparecer em seu texto, tanto da profundidade quanto da amplitude da degradação intelectual e moral dos setores da esquerda mencionados por R. Kurz, com quem ele (Safatle) debate e a quem denuncia pelo que seriam imprecisão e confusão da análise que ele (Kurz), faz do compromisso ideológico dessa esquerda com movimentos totalitários e antissemitas como o Hamas e o Hizbollah, para não falar do regime iraniano. Penso serem tais críticas improcedentes, pelo simples fato de que a confusão não está (neste ponto, ao menos...) na cabeça de Kurz, mas precisamente nas ideologias e movimentos a que ele se refere, justamente caracterizando a mixórdia de (neo)bolchevismo, anti-imperialismo, mitologia terceiro-mundista e culturalismo pós-moderno como “penúria ideológica”.[xxxvii] É bem verdade que Safatle admite a hipótese da existência (mas, nas circunstâncias atuais, admitir apenas uma hipótese será suficiente?) de alguma complacência ideológica de esquerdistas com grupos fundamentalistas e antissemitas como o Hamas, ao que responde que: “não há compromisso possível entre a esquerda e um grupo claramente antissemita e reacionário. Ao contrário, ele representa tudo aquilo contra o qual lutamos, já que foi a esquerda que elevou o antissemitismo a um dos crimes mais inaceitáveis (pensemos no papel maior de Adorno, neste sentido).” Num contexto em que muitos intelectuais de esquerda calam ou tergiversam sobre esta questão, tal declaração de princípios de um intelectual do porte de V. Safatle é certamente muito bem vinda. Contudo, é impossível deixar de notar que há algo de confuso e criticável em sua formulação, na medida em que ela se assenta sobre um “nós” (“a esquerda”) que, após as experiências totalitárias do século XX, penso ser simplesmente insustentável. Senão vejamos. Será que o fato de Adorno ter colocado num plano central a denúncia da barbárie antissemita nos autoriza a creditá-la à “esquerda”, assim genericamente? Quanto da análise e da crítica adornianas ao antissemitismo foram realmente assimiladas e incorporadas à política dos atuais movimentos de esquerda? Será que se desconhece que a tragédia que Adorno considerava central ao século XX, a Shoah, tem sido banalizada sistematicamente por inúmeros grupos de esquerda, os quais não têm escrúpulos em reiteradamente equiparar Israel a um “Estado nazista”?[xxxviii] Ou que surgiu até um negacionismo no interior da esquerda? Ou, ainda, que a palavra de ordem da destruição de Israel tornou-se uma “opinião” aceitável e corrente dentre os movimentos de extrema-esquerda, da mesma forma que teorias conspiratórias de teor antissemita sobre o 11 de Setembro? Para comprovar tais fatos, bastaria uma rápida leitura dos textos e documentos que são publicados nos sites de tais movimentos, ou mesmo a simples participação em apenas uma das inúmeras manifestações “contra a Ocupação” que têm ocorrido durante a última década em todo o mundo. Apenas como exemplo, cito um trecho de documento de um partido trotskista brasileiro bem conhecido e que possui certa penetração nos meios estudantis. O documento aborda a última guerra do Líbano, que opôs o exército israelense ao Hizbollah: “As organizações da esquerda mundial devem responder claramente às seguintes perguntas: estamos a favor de que a atual guerra se desenvolva até derrotar completamente o exército sionista e o Estado de Israel? Estamos a favor de que as ações contra a população do enclave colonial israelense - por parte do Hizbollah, do Hamas e da Jihad Islâmica - aumentem e sejam cada vez mais efetivas? Estamos a favor, ou não, de exigir dos governos árabes, quaisquer que forem suas características, que intervenham nesta guerra para facilitar a derrota do Estado de Israel? Aqueles que responderem negativamente a estas questões deixaram de ser revolucionários para, nas palavras de Lênin, transformarem-se em ‘meros pacifistas pequeno-burgueses’. De nossa parte, reiteramos a resposta afirmativa a cada uma destas questões. Estamos juntos com as massas palestinas, libanesas e árabes na defesa da destruição do Estado de Israel. Contudo, diferentemente das correntes fundamentalistas islâmicas, fazemos esta defesa dentro da mesma perspectiva que existia na raiz da OLP: a criação de uma Palestina laica, democrática e não racista.”[xxxix] Será que podemos incluir um grupo que defende esta monstruosidade – e ao qual obviamente não se pode negar o atributo de ser de esquerda – neste “nós”, de que fala V. Safatle? Da perspectiva de uma esquerda democrática, que compreende que os inimigos de uma Humanidade emancipada, livre e justa, estão tanto à direita quanto à esquerda, certamente não. E é justamente tal distinção crucial entre uma esquerda democrática e outra autoritária ou totalitária que se constitui politicamente urgente, sobretudo no que concerne ao conflito israelense-palestino, pois após anos de militância em movimentos pela paz entre israelenses e palestinos torna-se difícil evitar a forte convicção de que, hoje, o maior inimigo do pacifismo judeu, seja ou não israelense, não é a direita de Israel[xl], mas sim esta esquerda bárbara que atua no sentido de impedir a construção de uma ampla frente internacional apoiada pelas maiorias de ambos os povos, em favor de uma Paz justa e negociada para o conflito. Neste ponto, não se pode deixar de abordar a questão da solução binacional. Como talvez já seja possível perceber, ela se encontra impregnada da mesma indeterminação geral que é responsável pela perenização deste conflito, pois se prestarmos atenção nos daremos conta de que o documento do partido trotskista supracitado também defende uma insólita “solução binacional”, através do que seria a formação de um único Estado democrático pós-Armagedon, a ser constituído pelos supostos vencedores árabes - devidamente apoiados pelas ditaduras e movimentos fundamentalistas da região – junto com os hipotéticos remanescentes judeus... Resta claro que, neste caso, tal “solução” não passa de um eufemismo para o programa genocida da destruição de Israel. É verdade, contudo, que também existem defensores do Estado binacional autenticamente democráticos e universalistas, a exemplo do que foi o falecido intelectual palestino Edward Said e do que é, sem dúvida, o caso de Vladimir Safatle. Ocorre que a defesa desta posição, embora legítima, na realidade acaba por bloquear qualquer solução possível para o conflito. Isto não apenas pela dificuldade prático-política que ela inevitavelmente tem de se dissociar da aludida farsa “binacional”, mas sobretudo pela sua patente incapacidade de responder ao fato de que, na região em questão, os judeus constituem uma minúscula minoria, a qual na ausência de um Estado próprio não possuiria quaisquer meios de autodefesa. Apenas em um Oriente Médio totalmente pacificado e desmilitarizado e no qual fosse impossível sequer pronunciar publicamente o slogan de “morte aos judeus” é que seria plausível uma situação de radical dissociação entre Estado, povo e nação, “ímpeto fundamental do Estado moderno”, como quer Safatle. Ora, como o mais elementar bom senso nos obriga a reconhecer, estamos, na melhor das hipóteses, muito longe de uma situação como esta, a qual demandaria um tempo que os povos da região simplesmente não têm. Embora não deva pairar qualquer dúvida sobre a posição política aqui adotada tanto em relação ao bolchevismo quanto a sua referida mistura com rescaldos da mitologia terceiro-mundista - sua crítica constitui uma das necessidades mais urgentes para o desbloqueio do caminho da paz – neste ponto é tentador lembrar, contra muitos dos leninistas de plantão, uma das (poucas) lições democráticas de Lênin, aquela que diz respeito justamente à questão das nacionalidades e que nos adverte para o fato de que a defesa abstrata da união entre nações em conflito sempre acaba por se interverter no esmagamento da minoria, daí a necessidade incontornável de validade do direito de autodeterminação dos povos.[xli] A obtenção de uma paz justa entre israelenses e palestinos passa, em primeiro lugar, pelo reconhecimento das grandes dificuldades que envolvem este conflito e que o singularizam em relação a qualquer outro conflito de tipo nacional. A necessária restauração do campo político nos obriga a um compromisso anterior com a recuperação das palavras, em sua capacidade de indexar e significar realidades determinadas. Somente assim elas poderão deixar de funcionar como armas verbais para se tornarem as sementes de um autêntico endereçamento ao outro, em sua realidade concreta de dor, mas também de aposta no valor da vida e de esperança de reconciliação. Para enfrentar a indeterminação geral que bloqueia a comunicação e perpetua a barbárie, é preciso que primeiro recuperemos a elementar capacidade de discernir, traçando claras fronteiras éticas e políticas capazes de delimitar um programa comum para as maiorias de ambos os povos que ainda querem viver em paz e com dignidade[xlii]. Tal programa deveria necessariamente incluir, no plano moral, o repúdio incondicional ao terrorismo, às soluções unilaterais de força, ao racismo anti-árabe, à islamofobia e ao antissemitismo - mesmo, ou sobretudo, quando este último vem camuflado de antissionismo; no plano político, o reconhecimento dos direitos nacionais de ambos os povos, o que concretamente implica, nas atuais circunstâncias, em uma solução de dois Estados; e no plano intelectual, uma rigorosa e intransigente desmistificação das ideologias e mitologias responsáveis pela inflação deste conflito e que ameaçam jogar a região inteira na catástrofe. Somente a partir daí se tornará possível para “dois povos igualmente vítimas do exílio, do desterro, da perseguição e da humilhação” o compartilhamento, através de um autêntico diálogo, dessa experiência comum, com o que eles poderão transformá-la na “mola mestra de um novo momento de criatividade política”[xliii]. Oxalá! |
fevereiro #
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[i]Cf. Shlaim, Avi, “A Muralha de Ferro”, Editora Fissus.
[ii]Cf. Beny Morris, “Um muro se fecha sobre Israel”, In: Jornal Estado de São Paulo 01/01/2009.
[iii]Esta visão é expressa de forma dramática por B. Morris na antológica entrevista por ele concedida a Ari
Shavit, publicada, no jornal israelense Ha´aretz em 08/01/04.
[iv]Infelizmente, este é o caso de Benny Morris. Outrora um corajoso ativista contra a ocupação israelense e um crítico lúcido da história de Israel, sua conversão para a doutrina da “guerra de civilizações” conferiu o característico tom exasperante e apocalíptico aos seus escritos, que geralmente justificam toda a política de Israel como “autodefesa”.
[v]É bom lembrar que ainda em 2004 a “Iniciativa de Genebra”, uma iniciativa não oficial articulada por lideranças
políticas de ambos os lados e que propõe uma solução concreta para todos os temas fundamentais do conflito ( fronteiras, Jerusalém, refugiados e segurança ), alcançou 40% de apoio dentro de Israel, em pleno governo de Ariel Sharon, o que, segundo Dov Weiglass, amigo e confidente político do ex-primeiro ministro, teria sido uma das razões principais para que ele lançasse seu plano de retirada unilateral de Gaza, um diversionismo político para consolidar as posições israelenses na Cisjordânia e congelar o processo de paz “até que os palestinos se comportassem como finlandeses”... Cf. Wiglass, D., Haaretz 08/10/2004.
[vi]Safatle, V. “O verdadeiro alvo”, publicado na revista eletrônica “Trópico”. Ver
pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3051,1.shl.
Trata-se de um
artigo cujo grande mérito é expor de forma muito clara e lúcida algumas das problemáticas centrais que envolvem o conflito israelense-palestino. No presente texto, discordarei de algumas das teses de V. Safatle.
[vii]Comunidade Judia da Palestina pré-Estado de Israel.
[viii]Esta denominação para referir-se somente aos árabes da Palestina é obviamente anacrônica para este período, daí as aspas.
[ix]Como é bem sabido, após a derrota da Rebelião Árabe frente aos ingleses, Al-Husseini seria calorosamente recebido na Alemanha por Hitler, que lhe confiaria o comando das SS muçulmanas na Bósnia-Herzegovina, com o qual praticaria notórios massacres e crimes de guerra. Para a participação da liderança árabe-palestina na “solução final nazista”, ver Alan M. Dershowitz -- Hudson New York, 21/08/09.
[x]A possibilidade de um Estado binacional foi defendida antes da criação do Estado de Israel pelo chamado “sionismo classista”, de orientação marxista e que, na época, possuía um grande peso político. Também intelectuais judeus ligados à Universidade Hebraica de Jerusalém, pertencentes ao grupo Brit Shalom, militaram por esta solução, a qual, todavia, estava inviabilizada desde o início pela quase inexistência de grupos árabes que apoiassem uma solução deste tipo. Para a esmagadora maioria das lideranças árabes-palestinas da época, os judeus não deveriam ter qualquer tipo de soberania sobre nenhuma parte da terra em disputa.
[xi]A maioria judaica no Estado de Israel seria posteriormente reforçada pelas sucessivas expulsões de judeus dos países árabes, que se seguiram à guerra de 1948. Grande parte desses refugiados seguiu para Israel e foi absorvida, com imenso esforço coletivo e superando-se grandes dificuldades, como cidadãos no novo Estado.
[xii]Tal fato, que em si é inegável, não isenta Israel da sua parcela de responsabilidade sobre a Nakba.
[xiii]Um erro a se lamentar por gerações”, Ben-Gurion teria dito posteriormente. As razões para a não realização da ofensiva militar sobre Gaza e Cisjordânia em 1949 foi, provavelmente, além do medo de uma intervenção britânica a favor dos árabes, a convicção de Ben Gurion de que não se reproduziriam nessas áreas uma debandada
geral da população árabe. Cf. Shlaim, Avi., “A Muralha de Ferro”, p.p. 67-93.
[xiv]Ao contrário do que afirma V. Safatle no artigo supracitado. Ele o faz, entretanto, por um bom motivo, o de criticar a hipóstase deste conflito através de grandes narrativas maniqueístas e demonizadoras produzidas por ambos os lados. Vale citá-lo. “Melhor seria assumir o conflito por aquilo que ele é: não um conflito de
civilizações, uma reedição das cruzadas ou uma luta do bem contra o mal radical, mas um conflito territorial que assumiu proporções que nunca deveria ter assumido (grifo meu)”. Eu poderia assinar embaixo, mas a questão de fundo permanece: por que este conflito, e justamente este em meio a tantos outros similares (alguns, inclusive, muito mais violentos), adquiriu uma tal proporção apocalíptica? A esta questão fulcral, somente através da qual, a meu ver, podemos entender por que, para citar novamente o Autor, “não há hoje assunto ao mesmo tempo mais urgente e mais bloqueado do que o conflito palestino”, V. Safatle não nos fornece em seu artigo uma resposta satisfatória.
[xv]O fato de que a própria identidade palestina se definiu historicamente em oposição ao “sionismo” (devidamente demonizado) tem dificultado um reconhecimento efetivo, para além de concessões territoriais de ordem tática ou pragmática, da legitimidade histórica dos direitos da nação israelense. Alguns analistas atribuem a recusa de Arafat em Camp David ao fato de que ele teria ficado refém de uma mitologia nacional da qual ele foi a um só tempo um dos principais construtores e símbolos. Ver. Bem-Ami, S. “Qual és el futuro de Israel”, e Demant, P., “O fracasso das negociações de paz Israel-Palestina”, In: “Israel-Palestin: a construção de paz de uma perspectiva global”, orgs. Gilberto Dupas e Tullo Vigevani.
[xvi]Como corretamente Moshe Sharret já sustentava contra Bem-Gurion na década de 1950. Cf. Shlaim,A., op., cit., p.p. 139-190.
[xvii]Neste contexto, os Acordos de Oslo adquirem uma importância simbólica duradoura, para além de seu fracasso momentâneo, pois consistiram na primeira vez que os representantes de ambos os povos reconheceram oficialmente a legitimidade dos direitos nacionais de seus adversários. Entretanto, seria um grande erro pensar que este reconhecimento oficial, por si só, é capaz de encerrar a questão do ponto de vista simbólico, visto tratar-se de um acordo político entre lideranças que, isoladamente, é incapaz de alterar as narrativas básicas de ambas as nações a respeito do “outro”, como ficaria evidente nos fatídicos anos que se seguiriam.
[xviii]Ao contrário do que à época se pensava sobre as revolução socialista que, entretanto, na visão da esquerda sionista, eram ambas a uma só tempo convergentes e indissociáveis. Cf., Ben~Gurion, D., “Os imperativos da Revolução Judaica”, In: “O judeu e a modernidade”, organizado por Jacob Guinsburg, Editor Perspectiva.
[xix]A notar que as comunidades judias religiosas, em sua grande maioria não sionistas, eram vistas pela ampla maioria do movimento sionista como resquícios do passado, isto é, formas de convivência comunitária destinadas pela História à desaparição...
[xx]É bem conhecido o grande interesse de Ben-Gurion pelo bolchevismo. Para uma análise desta questão ver Shlomo Avneri., “The Making of Modern Zionism”, p.p. 198-216.
[xxi]Não é senão a este gênero literário - o da utopia - que pertence o seu livro “New-Old Land”. Ver Avneri, S., idem, p.p. 88-100.
[xxii]Cf. Shlaim, A., “A Muralha de Ferro”.
[xxiii]Safatle, V., op., cit.
[xxiv]Ex-Ministro das Relações Exteriores de Israel sob Ehud Barak, historiador e político ligado ao partido trabalhista.
[xxv]Bem-Ami, S., “Cual es el futuro de Israel”, p. 79.
[xxvi]Segundo o hstoriador Amnon Raz-Krakotzkin, “(...) quando pensadores sionistas religiosos, como o rabino Kook, deram uma formulação religiosa a esta abordagem histórica (o sionismo), a obra deles não derivou da ‘religião’ como tal, mas da interpretação e articulação do mito judaico com o pensamento laico sionista”. Cf. entrevista de Raz-Krakotzkin em “Israel, Terra em Transe”, p. 188.
[xxvii]Avraham Burg, ex-presidente do Parlamento israelense (Knesset) e ex-presidente da Agência Judaica Mundial, publicou, há alguns anos, um corajoso e impactante artigo a este respeito denominado “A sociedade israelense afunda enquanto seus líderes silenciam”, cito: “A revolução sionista sempre se apoiou em dois pilares: uma via justa e uma liderança ética. Os dois desapareceram. A nação israelense hoje se assenta nos andaimes da corrupção, e nas fundações da opressão e injustiça. Como tal, o fim da empresa sionista está a nossas portas. Existe uma chance real de que a nossa seja a última geração sionista. Poderá haver um estado judeu aqui, mas de um tipo diferente, estranho e horrível.” Artigo publicado no jornal Forward em 29/08/03 e traduzido pela lisa Paz-Agora/BR. Disponível em
www.espacoacademico.com.br/028/28paz_agora.htm.
[xxviii]É notável como um movimento popular espontâneo e relativamente pouco violento fez infinitamente mais pela causa nacional palestina do que todo o terrorismo somado da OLP. Basta lembrar que sem a primeira Intifada, os acordos de Oslo seriam impensáveis.
[xxix]Este ponto é corretamente assinalado por Rober Kurz em “A guerra contra os judeus” (jornal Folha de São Paulo, 11/01/09).
[xxx]Cf. “Nação e Reflexão”, P.A. Arantes, In: “0 à esquerda”.
[xxxi]Esta pérola do antissionismo em sua versão “permanentista” pertence ao texto de O. Coggiola denominado “Chega de Mentiras” (ele mesmo uma colagem delas...) elaborado como ataque político aos que criticaram, dentre eles o Paz Agora-BR, o caráter claramente antissemita de alguns grupos que participaram de uma manifestação “pela paz” ocorrida na USP, cujo autor foi um dos principais organizadores. Durante a manifestação “pacifista” em questão, abundavam apoios entusiásticos ao Hizbollah e defendia-se abertamente a destruição de Israel. Uma das entidades organizadoras, o SINTUSP, chegou mesmo a acusar, em seu jornal, os “judeus genocidas” de pretender restringir a democracia na universidade...
[xxxii]Fórmula racista que pressupõe a legitimação do Estado na “naturalidade” do sangue e do solo, da qual o “judeu cosmopolita” estaria excluído...
[xxxiii]Para lembrar a conhecida expressão aplicada ao s judeus pelos famigerados Protocolos dos Sábios de Sião.
[xxxiv]Para algumas análises do fenômeno do antissionismo enquanto antissemitismo de esquerda, ver Poliakov,L., “Do antissionismo ao antissemitismo”; Wistrich, R., Left agaisnt Zion; Taguief, P.A., “La Nouvelle Judeophobie”. Todos eles são estudos de tipo histórico-sociológico. Ainda falta uma análise teórica em profundidade deste
fenômeno, a exemplo das que realizaram sobre o antissemitismo em geral, Sartre, por um lado, e Adorno e Horkheimer por outro, cujas relações entre maniqueísmo, atrofia da experiência e antissemitismo permanecem muitíssimo atuais. Neste contexto, vale a pena citá-los por extenso: “Apenas uma forte prevenção sentimental pode dar uma certeza fulgurante, apenas ela pode manter o raciocínio à margem, apenas ela pode permanecer impermeável à experiência e subsistir durante toda uma vida. O antissemita escolheu o ódio porque o ódio é uma fé; escolheu originalmente desvalorizar as palavras e as razões. (...) Não recorre ao maniqueísmo como um princípio secundário de explicação. Mas a escolha original do maniqueísmo é que explica e condiciona o anti-semitismo”. (Jean Paul Sartre, “Reflexões sobre a questão judaica”). Adorno e Horkheimer chegam a indicar a ocorrência do mesmo fenômeno na esquerda: “É verdade que os indivíduos psicologicamente mais humanos são atraídos pelo ticket progressista, contudo a perda progressiva da experiência acaba por transformar os adeptos do ticket progressista em inimigos da diferença. Não é só o ticket antissemita que é antissemita, mas a mentalidade do ticket em geral.” (Theodor Adorno e Max Horkheimer, “A Dialética do Esclarecimento”).
[xxxv]Ver o seu artigo supracitado.
[xxxvi]Mas este campo tem um nome: democracia.
[xxxvii]Kurz, R., op., cit. Por outro lado, o que me parece condenável neste texto de Kurz é a sua grosseira unilateralidade em resumir a Guerra de Gaza unicamente ao antissemitismo do Hamas, o qual, por sua vez,
constituiria a encarnação local do antissemitismo estrutural da crise capitalista, como se não estivéssemos tratando de um território, que há tempos, encontra-se sob um cerco asfixiante e injustificável. Isto para não falar que observadores como o ex-presidente dos EUA D. Carter alertaram para o fato de que o Hamas estaria disposto a aceitar uma nova trégua, caso pudesse negociar diretamente com Israel.
[xxxviii]A associação entre o Estado de Israel e o nazismo não é apenas, como afirma V. Safatle, uma forma de não querer discutir o assunto, mas sim consiste em peça de uma estratégia maior de deslegitimar Israel a serviço do programa de sua destruição violenta. Como já mencionei acima, trata-se de um discurso que traduz os clichês centrais do antissemitismo clássico numa linguagem mais palatável para a esquerda, visto que não se apresenta em categorias diretamente raciais. Ainda falta uma análise em profundidade deste tipo de antissemitismo, que mantém (mas falseando-a) a referência ao universal.
[xxxix]“Pela destruição do ‘Estado Policial’ de Israel”, 02/08/2006. Ver site:
www.pstu.org.br/internacional_matéria.asp?id=5404&ida=0.
Os grifos são meus.
[xl]Diferentemente do que afirma V. Safatle em seu artigo.
[xli]Slavoj Zizek, malgrado as imensas diferenças que qualquer esquerda democrática deve possuir em relação a este autor - como, de resto, em relação a Lênin - é um dos poucos na extrema-esquerda que ressalta a importância desta lição democrática do líder bolchevique para o conflito israelense-palestino, o que logicamente o leva a defender a continuidade de Israel como Estado Judeu. Cf. “Bem vindo ao deserto do Real”, p. 144 e p. 151. Além disso, os binacionalistas também esquecem - o que profundos conhecedores de Adorno como V. Safatle não deveriam fazer – que os judeus não constituem uma minoria qualquer, dado que historicamente vêm ocupando uma posição que faz com que tenham projetado sobre si o ressentimento geral dos “dominados da dominação da natureza” ( Adorno e Horkheimer, op. cit. ), de modo que desde a “anti-raça” da extrema-direita até a “elite racista”, “sionista” e “imperialista” de “banqueiros cosmopolitas” de certa esquerda, o antissemitismo, atravessando o espectro político de ponta a ponta, é a realização do oximoro de um “racismo universal” que, por isso mesmo, pode até se apresentar na forma do discurso anti-racista. É evidente que isto torna muito mais frágil a posição dos judeus israelenses, dificultando ainda mais uma solução binacional para o conflito, e mais uma vez dando razão a Hegel, para quem – como oportunamente cita V. Safatle – “as piores catástrofes são normalmente feitas com as melhores razões”...
[xlii]Será casual que um dos movimentos israelenses contra a Ocupação de maior impacto simbólico, a saber, o dos soldados objetores de consciência (refusiniks), chame-se justamente “Iesh Gvul”, isto é, “Há um limite”, no duplo sentido de fronteira que não deve ser ultrapassada e de linha ética a qual um soldado tem o direito e o dever de se recusar a transgredir?
[xliii]V. Safatle, op., cit.